I
A seletividade da memória —
a cor exata da pele, a textura,
o odor de cada côncavo e orifício,
o lábio, a língua, o dente, o plexo
solar, a sola do pé, o suor e a
saliva, a coxa arisca, a dobra escura,
o beijo salobro, o sabor difícil,
a carne assombrada, o esperma perplexo
— falsa perfeição, mero artifício
do tempo, a desmaiar todos os tons
do que destoaria do desejo
como um menino a retirar sem pejo
da caixa que lhe deram os bombons
de que ele abre mão sem nenhum sacrifício.
(…)
IV
Só não dói mais porque não é preciso.
Se fosse o caso, a dor era pior.
Não há nada nisso de extraordinário:
A natureza odeia o desperdício,
tal como o vácuo. Sem tirar nem pôr.
É exatamente a conta necessária,
até que alguma solução se encontre.
O que aliás não acontece nunca.
E isso também é natural. No entanto
há sempre um tralalá, um deus, um bálsamo
pra não perder a esperança e o bonde:
A caixa de bombons. A “Marcha húngara”
de Liszt. Ou Brahms. Um dos dois. Ou não. Tanto
faz. A dor continua. Hoje é sábado.
REPUBLICAÇÃO: poemas publicados no blog originalmente em 16 e 17/01/2017