Paulo Henriques Britto – “Da metafísica”

Ser parte de alguém ou algo
tão grande que não se entenda:
toda crença, ao fim e ao cabo,
se resume a essa lenda –

o mais rematado dislate,
coisa jamais entendida,
que eleva ao sumo quilate
o caco mais reles de vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 04/11/2018

Paulo Henriques Britto – de “Fim de Verão”

VII

Eis que acabou o tempo dos inícios,
tendo durado o exato suficiente
pra formação do hábito (ou vício)
de habitar não um mísero presente,

mas um futuro sempre a exigir
rigorosíssimo planejamento,
até que se escute a ficha cair:
o tempo se esgotou.

                                  Chegou o momento
de enfim viver conforme o planejado,
ou então — se o plano não ficou pronto —
de se pôr todo o projeto de lado

e, improvisando cada gesto e passo,
rodar em círculos, perplexo, tonto,
a repetir o mantra: "Eu sei o que faço".

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XIII

Era o momento? Era. Foi. A hora
exata só se sabe quando já
passou. O tempo nunca se demora
demais. E tudo que acontece está

certo a priori, por definição.
O destino se escreve a posteriori.
A realidade sempre tem razão,
atroz que seja, por mais que piore.

Já o que se esquece deixa de ter sido.
É como uma borracha vindo atrás
do lápis, conservando uma distância

respeitosa, sempre com a mesma ânsia
de apagar. Tinta ou lápis. Tanto faz.
Escreve. Isto também será esquecido.

BRITTO, Paulo Henriques. “Fim de Verão”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

Paulo Henriques Britto – de “Oito sonetos entrópicos”

I

Deixar de ser é coisa natural,
como é natural ser. Pensando bem
(ou só pensando, seja bem ou mal),
o que haverá de natural, porém,
em ser o que se é, e não ser, apenas?
Não haverá um toque de artifício
implícito em escamas, pelos, penas,
nos ossos que sustentam o edifício
todo, na fome que impele essa máquina
furiosa e cega, essa goela ávida,
em direção a seu estado final,
que é como o do silício, ou do feldspato,
de tudo que é só no sentido lato,
franco, de ser — este, sim, natural?

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III

Podar as que ainda restam — expecitativas
que, sabe-se lá como, deram um jeito
de sobreviver, mais ou menos vivas,
à imolação das ilusões. Bem feito —
é o pensamento cruel reservado
pra esta hora dura e inabitável.
Quem mandou ousar o plano abusado
de uma felicidade inaceitável
pra esses deuses sequiosos de vingança
que nos invejam, com ódio, a existência?
E se até a mais mínima esperança
pra esses putos for uma insolência?
Não espere coisa alguma. Jogue limpo.
Todo cuidado é pouco com o Olimpo.

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VII

Não pode ser tão complicado assim.
Porque afinal de contas não é mais
que o fechar de uma conta, mais um fim
numa longa sequência de finais
felizes ou não. — Não, não pode ser
mais difícil que um dos muitos começos
a que se conseguiu sobreviver
quase inteiro, sem maiores tropeços.
E não é muito pior estar no meio
de tudo, sem o glamour dos inícios
e o frisson dos finais, diante do feio
e abissal dia a dia, com seus vícios
banais? O fim — em verdade vos digo —
é prêmio muito mais do que castigo.

BRITTO, Paulo Henriques. “Oito Sonetos Entrópicos”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

Paulo Henriques Britto – Bálsamo

Seja hoje um dia igual a qualquer outro,
um dia besta, esvaziado e amorfo,

o tipo de data que é esquecida
antes mesmo de virada a folhinha,

e esteja você completamente imerso
neste dia, como um peixe dessas espécies

das regiões abissais, isentas de luz,
longe do ar e seus azuis,

que nas funduras de silêncio e noite
falta não sente do que nunca soube —

pois nesse dia insosso e timorato
esteja você, absorto, atarefado,

imune a tudo que é êxtase ou angústia.
Seja isso a sua vida. O seu mundo.

BRITTO, Paulo Henriques.”Bálsamo”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

Paulo Henriques Britto – Sobre o real

Há motivos bem sérios para não
se acreditar em nada de específico,
quanto mais em geral. Pois se a razão
tem algum valor, é ponto pacífico

que conclusões geradas pela mente
só podem validar ulteriores
conclusões, porém rigorosamente
nada nas regiões inferiores,

menos nefelibatas, da suposta
realidade, em que as coisas têm peso
e consistência. Aqui tudo é uma aposta

mais ou menos às cegas. Sim. Bem-vindo
ao mundo do que há. Ficou surpreso?
É estranho? Assustador? Eu acho lindo.

BRITTO, Paulo Henriques.”Sobre o real”. In:_ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022

Paulo Henriques Britto – de “Ao Leitor”

V

Sofro dos nervos, como se dizia
antigamente — ou, mais antigamente
ainda, mergulho (mesmo de dia)
numa “noche oscura del alma” (ou “mente”,

para aliviar o peso asfixiante
de dois milênios de neura cristã),
estado em que a existência por um instante
(que às vezes dura toda uma manhã)

é um mal desnecessário, uma arrastada
(talvez interrompível) epopeia
sem herói — e que, no entanto, não é nada

que não se renda (quase) por completo
às armas novas da farmacopeia
ou ao rigor secular do soneto.

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X

É a velha história de sempre,
com este ou aquele acréscimo:
você fingindo que entende,
sem entender um centésimo.

E no entanto segue em frente,
irresponsável, intrépido,
se entregando simplesmente
ao mero acaso e seu séquito

de implicações impensadas,
catando coisas bonitas,
chegando a uma espécie de termo.

Aí confere as pepitas
amealhadas. Não é nada,
Não é nada — não é nada, mesmo.

BRITTO, Paulo Henriques.”Ao leitor – V”. In:_____ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Paulo Henriques Britto – de “Dez Sonetoides Mancos”

VI

Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.
Sentidos, sentimentos e outros moluscos

não passam pela finíssima peneira
do funcional. E o sofrimento, ai,
esse nefando pinguim de louça

sobre o que deveria ser, na quiti-
nete do eu, uma austera geladeira…

Que ninguém nos ouça: guarda esse escafandro, meu
filho. Só o raso é cool. A dor é kitsch.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 19/09/2017

Paulo Henriques Britto – Envoi

O tempo, que a tudo distorce,
às vezes alisa, conserta,
e a golpes cegos acerta:

em seu tosco código Morse
de instantes sem rumo e roteiro
então dá forma a algo de inteiro.

Não um verso, que em folha esquiva
a gente retoca e remenda
até ser coisa que se entenda,

mas algo que na carne viva
se esboça, se traça, se inscreve
bem mais a fundo, ainda que breve —

pois todo poema é murmúrio
frente ao amor e sua fúria.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 01/08/2017

Paulo Henriques Britto – Geração Paissandu

Vim, como todo mundo
do quarto escuro da infância,
mundo de coisas e ânsias indecifráveis,
de só desejo e repulsa.
Cresci com a pressa de sempre.

Fui jovem, com a sede de todos,
em tempo de seco fascismo.
Por isso não tive pátria, só discos.
Amei, como todos pensam.
Troquei carícias cegas nos cinemas,
li todos os livros, acreditei
em quase tudo por ao menos um minuto,
provei do que pintou, adolesci.

Vi tudo que vi, entendi como pude.
Depois, como de direito,
endureci. Agora minha boca
não arde tanto de sede.
As minhas mãos é que coçam –
vontade de destilar
depressa, antes que esfrie,
esse caldo morno de vida.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 18/03/2017

Paulo Henriques Britto – de “Nenhuma Arte”

Os deuses do acaso dão, a quem nada
lhes pediu, o que um dia levam embora;
e se não foi pedida a coisa dada
não cabe se queixar da perda agora.
Mas não ter tido nunca nada, não
seria bem melhor — ou menos mau?
Mesmo sabendo que uma solidão
completa era o capítulo final,
a anestesia valeria o preço?
(Rememorar o que não foi não dá
em nada. É como enxergar um começo
no que não pode ser senão o fim.
Ontem foi ontem. Amanhã não há.
Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 04/02/2017