V
Sofro dos nervos, como se dizia
antigamente — ou, mais antigamente
ainda, mergulho (mesmo de dia)
numa “noche oscura del alma” (ou “mente”,
para aliviar o peso asfixiante
de dois milênios de neura cristã),
estado em que a existência por um instante
(que às vezes dura toda uma manhã)
é um mal desnecessário, uma arrastada
(talvez interrompível) epopeia
sem herói — e que, no entanto, não é nada
que não se renda (quase) por completo
às armas novas da farmacopeia
ou ao rigor secular do soneto.
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X
É a velha história de sempre,
com este ou aquele acréscimo:
você fingindo que entende,
sem entender um centésimo.
E no entanto segue em frente,
irresponsável, intrépido,
se entregando simplesmente
ao mero acaso e seu séquito
de implicações impensadas,
catando coisas bonitas,
chegando a uma espécie de termo.
Aí confere as pepitas
amealhadas. Não é nada,
Não é nada — não é nada, mesmo.
BRITTO, Paulo Henriques.”Ao leitor – V”. In:_____ Fim de Verão. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.