Rodrigo da Silva – Chegará um dia em que o seu coração parará de bater

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater. A sua pupila dilatará. A sua pele ficará pálida e a sua temperatura corporal esfriará. Você ficará inteiramente esquálido; e então roxo. O seu sangue se tornará mais ácido com o acúmulo de dióxido de carbono. E as suas células começarão a se dividir, esvaziando as enzimas dos tecidos. O cálcio endurecerá os seus músculos. E o seu corpo passará a exalar um odor acre, fruto de uma mistura química constituída por mais de quatrocentos compostos orgânicos.

Tudo o que constitui a sua existência entrará em colapso – o que significa dizer que a sua linha do tempo chegará ao derradeiro ponto final. A partir destes preciosos segundos você não deixará mais qualquer rastro nesta bola azul gigante perdida no espaço. Não haverá mais nenhum som. Nem qualquer imagem. Nem tato. Nem cheiro. Restará apenas o inadiável: carne em processo de decomposição, um fenômeno da natureza conhecido como morte, óbito, falecimento, perecimento, fim.

E não se engane, o mundo permanecerá no mesmo lugar. As partidas de futebol não farão um minuto de silêncio em homenagem à sua história. Nas ruas os carros continuarão buzinando aleatoriamente, e nas emissoras de TV os apresentadores de telejornal prosseguirão dando notícias que você jamais ouvirá. Nas esquinas os pedestres insistirão em atravessar as ruas como se você nunca tivesse existido.

No seu círculo social, a implacável indiferença tomará conta do tempo. Os seus amigos permanecerão dedicando vastas horas ao consumo dos milhões de vídeos de gatinhos disponíveis na internet. E nas redes sociais os seus inimigos pleitearão longas batalhas retóricas sobre política com pessoas que eles nunca viram. Os seus entes mais próximos padecerão de sofrimento nas primeiras semanas, mas paulatinamente voltarão a executar os processos naturais da vida, adaptando-se à sua ausência.

Tudo permanecerá intocado: as baladas, os bares, os programas de auditório, o carnaval, os shows de humor, os barulhos ensurdecedores dos carros rebaixados. Virá a primavera, o verão, o outono, o inverno. E então tudo se repetirá num novo ciclo. Você deixará de ser carne para virar memória. E o tempo não falhará em transformar sua existência numa vaga lembrança, um túmulo abandonado no meio de um cemitério, uma refeição ordinária numa quarta-feira entediante para uma porção de bactérias e insetos.

Dentro da gente habita uma bomba relógio invisível. Ninguém sabe exatamente o prazo dela, mas o artefato abstrato atravancado é religiosamente pontual. Cada instante da vida é uma escolha sobre como gastar o tempo que o tempo tem. Mesmo a decisão que levou à leitura deste texto até aqui. Pode parecer clichê de empreendedor de palco, melodrama de parachoque de caminhão, mas você é literalmente a única pessoa no mundo capaz de administrar cada minuto que resta entre o término desta frase e o seu túmulo.

Nesse caminho, tentarão até prometer vagas soluções, parceladas em doze vezes sem juros. Mas acredite: não há outro indivíduo neste planeta apto a salvá-lo da apatia e da improdutividade. Nem quem tenha a capacidade de libertá-lo dos relacionamentos tóxicos, dos subempregos e dos vampiros emocionais. Há um monte de gente bacana lá fora esperando encontrar gente bacana. E há um monte de babaca tentando sugar cada gota da sua energia. Há um monte de coisas grandes prontas para serem conquistadas. E há o tempo perdido. É você quem determina o que fazer com o que resta desse relógio.

Chegará um dia em que o seu coração parará de bater.

Mas não hoje. Não agora.

Henry Scott Holland – [A morte não é nada]

A morte não é nada*. Ela não conta. Eu apenas passei para a sala vizinha. Nada aconteceu. Tudo permanece exatamente como sempre foi. Eu sou eu, e você é você, e a velha vida que vivemos carinhosamente juntos permanece intocada, inalterada. O que quer que tenhamos sido um para o outro, ainda o somos. Chame-me pelo meu antigo nome. Fale de mim do mesmo jeito simples de sempre. Não mude o timbre da voz. Não vista nenhum ar forçado de solenidade ou de dor. Ria como sempre ríamos das piadas de que desfrutávamos juntos. Brinque, sorria, pense em mim, ore por mim. Que o meu nome seja sempre aquela palavra de todos conhecida que sempre foi. Que ele seja pronunciado sem esforço, sem o fantasma de uma sombra a pairar sobre ele. A vida tem o mesmo significado que sempre teve. É a mesma que sempre foi. Há uma continuidade absoluta e inquebrável. O que é esta morte senão um insignificante acidente? Por que eu deveria ser esquecido se estiver fora do alcance da visão? Estou simplesmente à sua espera, por um intervalo, em um local bem próximo, ao dobrar a esquina. Está tudo bem. Ninguém está ferido. Nada está perdido. Um breve momento e tudo será como era antes. Como riremos das dificuldades da partida quando nos encontrarmos novamente!

Trad.: Nelson Santander

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Death is nothing at all

Death is nothing at all. It does not count. I have only slipped away into the next room. Nothing has happened. Everything remains exactly as it was. I am I, and you are you, and the old life that we lived so fondly together is untouched, unchanged. Whatever we were to each other, that we are still. Call me by the old familiar name. Speak of me in the easy way which you always used. Put no difference into your tone. Wear no forced air of solemnity or sorrow. Laugh as we always laughed at the little jokes that we enjoyed together. Play, smile, think of me, pray for me. Let my name be ever the household word that it always was. Let it be spoken without an effort, without the ghost of a shadow upon it. Life means all that it ever meant. It is the same as it ever was. There is absolute and unbroken continuity. What is this death but a negligible accident? Why should I be out of mind because I am out of sight? I am but waiting for you, for an interval, somewhere very near, just round the corner. All is well. Nothing is hurt; nothing is lost. One brief moment and all will be as it was before. How we shall laugh at the trouble of parting when we meet again!

*N. do T.: “Death Is Nothing At All” é um trecho de um sermão proferido pelo cônego Henry Scott Holland na Catedral de São Paulo, Londres, em 15 de maio de 1910. Este trecho, por vezes modificado e apresentado em forma de verso, é frequentemente erroneamente atribuído a Santo Agostinho. A confusão pode decorrer das semelhanças evidentes entre o texto de Holland e uma das cartas escritas por Santo Agostinho no século IV (Carta 263, endereçada a Sapida). A carta de Santo Agostinho pode ser lida no seguinte link (em inglês. mas o Google Translator dá conta): http://www.newadvent.org/fathers/1102263.htm.

A título de curiosidade e comparação, segue uma das inúmeras versões em português do poema/oração atribuída a Santo Agostinho (que, aliás, ficou muito bonita):

A morte não é nada.
Apenas passei ao outro lado.
Eu sou eu. Tu és tu.
O que fomos um para o outro ainda o somos.

Dá-me o nome que sempre me deste.
Fala-me como sempre me falaste.
Não mudes o tom a um triste ou solene.
Continua rindo com aquilo que nos fazia rir juntos.
Reza, sorri, pensa em mim, reza comigo.
Que o meu nome se pronuncie em casa
como sempre se pronunciou.

Sem nenhuma ênfase, sem rosto de sombra.
A vida continua significando o que significou,
continua sendo o que era.

O cordão de união não se quebrou.
Porque eu estaria fora de teus pensamentos
apenas porque estou fora de tua vida terrena?

Não estou longe,
Somente estou do outro lado do caminho.
Já verás, tudo estará bem.
Redescobrirás o meu coração,
e nele redescobrirás a ternura mais pura.

Seca tuas lágrimas e se me amas.
Não chores mais.

Oscar Wilde – Da vaidade

“Por que você chora?”, perguntaram as Oreiades.

“Choro por Narciso”.

“Ah, não nos espanta que você chore por Narciso”, continuaram elas. “Afinal de contas, todas nós sempre corremos atrás dele pelo bosque, você era o único que tinha a oportunidade de contemplar de perto sua beleza”.

“Mas Narciso era belo?”, quis saber o lago.

“Quem melhor do que você poderia saber?”, responderam, surpresas, as Oreiades.

“Afinal de contas, era em suas margens que ele se debruçava todos os dias”.

O lago ficou algum tempo quieto. Por fim, disse:

“Eu choro por Narciso, mas jamais havia percebido que era belo. Choro por ele porque, todas as vezes que ele se deitava sobre minhas margens, eu podia ver, no fundo dos seus olhos, a minha própria beleza refletida”.

Philip Roth – Patrimônio (excerto 2)

Ele morreu três semanas depois. Durante uma provação de doze horas, que começou pouco antes da meia-noite de 24 doutubro de 1989 e terminou logo após o meio-dia, ele lutou por cada sorvo de ar com uma erupção impressionante, uma derradeira exibição da tenacidade férrea que havia demonstrado ao longo da vida. Algo digno de ser visto.

Cedinho na manhã de sua morte, quando cheguei ao quarto de primeiros socorros para o qual ele fora levado de casa às pressas, me defrontei com um médico de plantão preparado para tomar “medidas extraordinárias” e ligá-lo a uma máquina de respiração artificial. Sem isso não haveria a menor esperança, embora, desnecessário dizer – acrescentou o médico –, a máquina não pudesse reverter o progresso do tumor, que aparentemente começara a atacar sua função respiratória. O médico também me informou que, por lei, uma vez acoplado à máquina, papai não seria desconectado a menos que voltasse a respirar por conta própria. A decisão precisava ser tomada de imechato e, uma vez que meu irmão ainda estava vindo de Chicago de avião, ela só cabia a mim.

E eu, que havia explicado a papai as cláusulas daquele testamento de saúde e o levara a assiná-lo, não sabia o que fazer. Como dizer não à máquina, se isso significava que ele não precisaria continuar a sustentar aquela batalha estertorante para respirar? Como eu poderia assumir a decisão de que papai diria adeus à vida, a esta vida que só nos é dado conhecer uma única vez? Longe de invocar a declaração que ele assinara, eu estava prestes a ignorá-la e dizer: “Qualquer coisa! Qualquer coisa!”.

Pedi ao médico que me deixasse a sós com meu pai, ou tão a sós quanto era possível em meio à azáfama da sala de emergência. Sentado ali e observando seu combate para continuar a viver, tentei me concentrar no que o tumor já lhe causara. Isso não era difícil, porque naquela maca ele parecia ter lutado cem assaltos com Joe Louis. Pensei nos horrores que inevitavelmente viriam pela frente, mesmo supondo que ele pudesse ser mantido vivo num pulmão de aço. Vi tudo, tudo, e mesmo assim tive de continuar sentado lá por um longo tempo antes de chegar o mais perto dele que pude e, com os lábios quase tocando seu rosto encovado e arruinado, finalmente encontrar forças para sussurrar: “Papai, vou ter que deixar você ir embora”. Ele já estava inconsciente havia horas e era incapaz de me ouvir, mas, em choque, aturdido, chorando, repeti aquilo muitas e muitas vezes até eu mesmo acreditar no que dizia.

Depois disso, só me restou seguir sua maca até o quarto onde o puseram e me sentar ao lado da cama. Morrer dá trabalho, e ele era um trabalhador. Morrer é pavoroso, e papai estava morrendo. Peguei sua mão, que ao menos eu ainda sentia como sendo sua mão, afaguei sua testa, que ao menos ainda parecia ser sua testa, e lhe disse todo tipo de coisas que ele não podia mais registrar. Por sorte, de tudo que eu lhe disse nessa manhã, nada havia que ele já não soubesse.

Philip Roth – Patrimônio (excerto)

“Quando se visita uma sepultura, todo mundo tem pensamentos mais ou menos iguais, que, abstraída a questão da eloquência, não diferem muito daqueles que Hamlet expressou ao contemplar o crânio de Yorick. Há muito pouco para se pensar ou dizer que não seja uma variante de “Ele me carregou nos ombros mil vezes”. Num cemitério, a gente costuma se dar conta de como são limitados e banais nossos pensamentos sobre o assunto. Ah, pode-se tentar conversar com o morto, caso você acredite que isso possa ser útil; pode-se começar, como fiz naquela manhã, dizendo: “Muito bem, mamãe…”, porém é difícil não pensar – mesmo que se tenha ido além da primeira frase- que você poderia, do mesmo modo, estar conversando com a coluna vertebral pendurada no consultório de alguma osteopata. Você pode fazer promessas a eles, pô-los a par das últimas notícias, implorar que o compreendam, que o desculpem ou que lhe deem seu amor – ou pode optar por uma abordagem oposta, mais efetiva, arrancando as ervas daninhas, ajeitando os cascalhos, passando o dedo pelas letras gravadas na lápide; pode até se abaixar e pôr as mãos diretamente sobre os vestígios deles – tocando a terra, a terra deles, pode fechar os olhos e recordar-se de como eram quando ainda estavam ao seu lado. Mas nada se modifica com tais recordações, exceto que os mortos parecem ainda mais distantes e fora do alcance do que estavam quando você dirigia o carro dez minutos antes. Se não há ninguém no cemitério para observá-lo, você pode fazer algumas coisas bem doidas a fim de conseguir que os mortos pareçam algo mais do que são. Mas, mesmo que você tenha êxito e se motive suficientemente para sentir a presença deles, ainda assim irá embora sem eles. O que os cemitérios provam, ao menos para gente como eu, não é que os mortos estão presentes, mas que se foram de vez. Eles se foram, enquanto nós, por enquanto, não fomos. Isso é fundamental e, embora inaceitável, bem fácil de compreender.”

Henri Michaux – Nós dois ainda

1948

Música do fogo, tu não soubeste tocar.

Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.

*

De esperança tinha-me bastado um fio de água. Mas tu levaste tudo. O som que vibra foi-me retirado.

*

Tu não soubeste tocar. Pegaste nas cordas. Mas não soubeste tocar. Estragaste logo tudo. Partiste o violino. Lançaste sobre a pele de seda uma chama para fazer um horrível pântano de sangue.

*

A felicidade ria-lhe na alma. Mas era tudo engano. Não foi por muito tempo que riu.

*

Ela ia num comboio que avançava em direcção ao mar. Ia dentro de um projéctil que seguia em cima do rochedo. Embora imóvel, dirigiu-se impetuosa para a serpente de fogo que a devia destruir. E aí de súbito foi agarrada, enquanto desprevenida penteava os cabelos, contemplando a felicidade ao espelho.

*

E quando viu a chama chegar junto de si, oh…

*

No mesmo instante, a taça foi-lhe arrancada das mãos. Que não seguraram mais nada. Viu que a atiravam para um canto. Nele se deteve como num enorme objecto de meditação a resolver antes de mais nada. Dois segundos mais tarde, dois segundos demasiado tarde, fugia para a janela a pedir socorro.
Toda a chama então a envolveu.

*

Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu, sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.

*

O hospital dorme. A queimadura desperta. O seu corpo, como um parque abandonado…

*

Defenestrada de si mesma, procura a maneira de entrar. O vazio em que paira não responde aos seus movimentos.

*

Lentamente, na granja, o seu trigo arde.

*

Cega, através da longa barragem de sofrimento, durante um mês ela torna a subir, nadando com um esforço atroz, o rio da vida.
Paciente, volta, a traçar as formas elegantes no inominável inchaço, tece de novo a camisa da sua pele fina. Está próxima a cura. Tira amanhã o último penso. Amanhã…

*

Música do sangue, tu não soubeste tocar. Também tu não soubeste. Lançaste subitamente, estupidamente, o teu tolo pequeno coágulo para obstruir uma nova aurora.
No mesmo instante ela já não encontrou lugar. Teve mesmo que se voltar para a Morte.
Quase não deu pelo caminho. O primeiro segundo mostrou o abismo. O seguinte precipitava-a nele.

*

Do lado de cá ficámos atónitos. Não tivemos tempo para dizer adeus. Não tivemos tempo para uma promessa.
Ela tinha desaparecido do filme desta terra.

____________________
Lou
Lou
Lou, no retrovisor de um breve instante
Lou, não me vês?
Lou, o destino de ficarmos juntos para sempre em que tanto acreditavas
Que é dele?
Não vais ser como as outras que nunca mais dão sinal, submergidas no silêncio.
Não, uma morte não deve chegar para apagar o teu amor.
Na horrível espiral
que te afasta até não sei que milésima diluição procuras ainda, procuras um lugar para nós
Mas tenho medo
Não se tomaram precauções bastantes
Devíamos estar mais informados
Alguém escreve que és tu, mártir, quem vai velar por mim agora.
Oh! Duvido.
Quando toco o teu fluido tão delicado
que permanece no quarto e os teus objectos familiares que aperto nas mãos
esse fluido ténue que tanto urge proteger
Oh, duvido, duvido e tenho medo por ti,
impetuosa e frágil, à mercê das catástrofes
Todavia, vou a repartições, à procura de certificados
desperdiçando momentos preciosos
que devíamos antes gastar connosco precipitadamente
ao mesmo tempo que tu tremes de frio
aguardando na tua maravilhosa confiança que eu venha ajudar a libertar-te, pensando «Ele vem de certeza
Teve talvez um contratempo, mas não deve tardar
Há-de vir, eu conheço-o
Não vai deixar-me sozinha
Não é possível
não vai deixar-me sozinha, a sua pobre Lou…»

*

Eu não conhecia a minha vida. A minha vida passava através de ti. Esse grande problema complicado tornava-se simples. Apesar da inquietação, tornava-se simples.
A tua fraqueza ao apoiar-se em mim dava-me força.

*

Diz, será que não vamos realmente encontrar-nos nunca mais?

*

Lou, falo uma língua morta, agora que já não te falo. Já vês como em mim resultaram os teus esforços de trepadeira. Vês isso, ao menos? É verdade que tu nunca duvidaste. Era necessário um cego como eu e era-lhe necessário tempo, era-lhe necessária a tua longa doença, a tua beleza, a ressurgir da magreza e das febres, era necessária essa luz em ti, essa fé, para enfim furar a parede teimosa da sua autonomia.

*

Foi tarde que vi. Foi tarde que soube. Tarde que aprendi a palavra «juntos», que não parecia estar no meu destino. Mas não demasiado tarde.
Os anos foram a nosso favor, não contra nós.

*

As nossas sombras respiraram juntas. A nossos pés as águas do rio dos acontecimentos deslizavam quase em silêncio.
As nossas sombras respiravam juntas e com elas tudo ficava resguardado.

*

Tive frio com o teu frio. Bebi goladas do teu sofrimento. Perdíamo-nos no lago das nossas trocas.

*

Rico de um amor imerecido, rico que ignorava sê-lo, com a inconsciência dos possidentes, perdi ser amado. A minha fortuna derreteu-se num dia.

*

Árida, a minha vida continua. Mas não regresso a mim. O meu corpo permanece no teu corpo delicioso e dentro do meu peito há plumas que se agitam ao vento da distância e me fazem sofrer. A que já não é, exige, e a sua ausência absorvente devora-me e invade-me.

*

Chego a ter saudades dos dias do teu sofrimento atroz na cama de hospital, quando através de corredores nauseabundos atravessados de gemidos me dirigia para a múmia densa do teu corpo envolto em ligaduras e de súbito ouvia emergir como que o «tom» da nossa aliança, a tua voz, doce, musical, controlada, resistindo com orgulho à fealdade do desespero, quando por tua vez ouvias o meu passo, e murmuravas, tranquilizada: «Ah, estás aí».
Punha a mão no teu joelho, por cima, do cobertor sujo e tudo desaparecia então, o mau cheiro, a horrível indecência do corpo tratado como um barril ou um esgoto, por estranhos afadigados e cuidadosos, tudo ficava para trás, deixando, os nossos dois fluidos, através das ligaduras, tornarem a encontrar-se, juntar-se, misturar-se, num aturdimento do coração, no auge da desgraça, no auge da doçura.
As enfermeiras, o interno, sorriam; os teus olhos cheios de fé apagavam os dos outros.

*

O que está só volta-se para a parede à noite, para te falar. Ele sabe o que te animava. Vem partilhar o dia. Observou com os teus olhos. Ouviu com os teus ouvidos. Tem sempre coisas para ti.

*

Não me vais responder um dia?

*

Mas talvez a tua pessoa se tenha transformado numa espécie de ar de neve, que entra pela janela que tornamos a fechar, tomados de arrepios ou de um mal-estar prenúncio de drama, como me aconteceu há semanas atrás. O frio concentrou-se-me de súbito nos ombros cobri-me precipitadamente e afastei-me quando eras tu talvez e o mais quente que podias mostrar-te, à espera de ser bem acolhida; tu, tão lúcida, já não conseguias exprimir-te de outra maneira. Quem sabe se neste preciso momento tu não estás à espera, ansiosa, que eu enfim compreenda, e que venha, longe da vida onde já não estás, juntar-me a ti, pobremente, pobremente, decerto, sem meios, mas nós dois ainda, nós dois… »

Trad.: Rui Caeiro

Peguei aqui: http://vida-escrita.blogspot.com/2006/05/ns-dois-ainda_15.html

A história por trás do poema: http://vida-escrita.blogspot.com/2006/05/marie-louise.html

Nelson Santander – Mudança Singular

Resolvi mudar o blog. De hoje em diante, além de umas perfumarias que fiz na página, o blog passará a se chamar “singularidade”.

Por quê?

Primeiro, porque o nome anterior era muito feio. A ideia de criar um blog para divulgar poemas (principalmente), textos, vídeos, traduções e outras coisas de que gosto, veio meio de repente.

Na verdade, no começo tudo o que eu queria era um lugar onde pudesse armazenar textos que eu mantinha comigo há anos em recortes, anotações e arquivos .doc que viviam se perdendo. O pensamento de poder também, além de armazenar, compartilhar as coisas literárias de que gosto foi sedutora demais para que eu pudesse resistir.

O nome então veio de improviso, sem pensar muito, fruto de uma espécie de brainstorming individual no momento em que eu abria a conta no Tumbrl (em fevereiro de 2012), posteriormente migrada para o WordPress. Obviamente, não tinha como dar certo.

O segundo motivo é que publiquei um poema de minha autoria há alguns anos, denominado justamente “singularidade”. É um dos textos que escrevi de que gosto mais.

Finalmente, por um tempo, eu publiquei também vários poemas que divulguei nesse blog em uma página do Facebook, a qual também dei o nome de “singularidade”.

Ou seja, a ideia já vinha amadurecendo há algum tempo.

Portanto, resolvi mudar. Mudei. E assim fica, por enquanto.

No mais, o propósito inicial do blog continua o mesmo.

Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo ***

ESCOBAR

À entrada do teatro São Pedro encontrei-me com Escobar, um comerciante do ramo cafeeiro que conheci por intermédio do meu cunhado Cotrim, com quem ele mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba, ex-seminarista, Escobar começava a enriquecer na capital – depois de um início tímido de carreira impulsionada com a ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, leitor; o próprio Escobar me confessou que ela havia cedido o cabedal a título de empréstimo exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde a época do seminário. Era voz corrente que Escobar tinha um certo talento ou vocação para administrar seus recursos. E os dos outros. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com frequência e em horários pouco comuns.

– Escobar, quanto tempo!

– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.

Enquanto falava, Escobar me conduziu para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Parecia deveras entusiasmado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao espalhafato.

– Fiquei sabendo que você alugou uma casinha na Gamboa, perguntou.

Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ouvira algo da Gamboa?

– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada em casa de uma velha amiga. Apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi umas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.

– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casinha como essa para acomodar a criada de uma amiga…

As palavras cuidadosamente escolhidas associadas ao olhar malicioso que ele me lançou ao dize-las não deixavam dúvidas: Escobar buscava travar aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor vontade de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era uma pessoa com quem se podia dividir segredos. Para mim Escobar possuía um caráter de alguém perfeitamente capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves só para ver o teatro em chamas.

– Foi dona Plácida quem fechou pessoalmente o negócio, respondi de forma seca, começando a andar em direção à entrada do teatro.

– Que pena, respondeu ele, olhando divertidamente para mim enquanto me acompanhava; eu tenho uma certa pressa em encontrar algo. A criada a quem pretendo auxiliar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomoda-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não quer escândalos.

Então era verdade! Não havia criada nenhuma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar daquilo. Embora também mantivesse um consórcio com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não me ocorria o motivo exato daquela sensação. Pensei a princípio que minhas fidúcias se deviam a um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação análoga à minha. Percebi logo que meu asco por Escobar na verdade derivava de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar mas, às vezes, eu fazia um exercício de projeção mental, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado com fama de sensível – o que estava acontecendo com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me aparecia como um reflexo mais limitado intelectualmente e menos pretensioso de mim mesmo – e não era uma visão muito bonita de se ver.

– Tenho que entrar, a peça já deve começar, falei começando a me sentir impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.

Ele pareceu se lembrar de algo. Disse-me então que estava indo à casa de um amigo a fim de debater sobre um interdito proibitório – calculei logo que o amigo fosse o Bentinho. De saída, pediu-me discrição sobre suas intenções em relação à casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.

Despediu-se e já começava a se retirar, mas se voltou para mim novamente:

– Esquecia-me de contar-lhe; dia desses, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…

Olhei-o desconfiado. Ele continuou:

– Ela ia triste, parece que o marido fora obrigado a renunciar à nomeação como presidente de província. Disse-me que você seria Secretário, é verdade?

– Ainda estava avaliando a conveniência…

– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de uma coisa…

– Do quê?

– Acho que ela não está feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Como você sabe, mulheres não costumam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. Mas naquele dia no café Virgília estava particularmente eloquente.

Chegamos a uma das portas de entrada, onde paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava de leve no meu braço para me impedir de fugir.

– Sabe que ela até me fez uma confissão bastante indiscreta?

– Sim?, acudi eu, já alarmado.

– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…

Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma surpresa a indiscrição e lubricidade do Escobar. Mas Virgília falando de suas insatisfações matrimoniais com um homem reconhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela quem lhe contou sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me como uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não haveria também de trair o próprio amante?

– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com rispidez; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximar da esposa, que ele idolatra.

Escobar sorriu de leve. Percebi por aquele esgar malicioso que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças com o nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves que apenas no nome carregava algo que vagamente evocava a ferocidade.

Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.

– Vou levar isso em conta, respondeu – ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu mais uma vez.

Capítulo ****

UM CUBAS! (II)

Fiquei ali, à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhuma vontade de ir embora. Recordava-me a conversa que tivera com Virgília àquela tarde, quando ela me contou sobre a carta anônima que o marido recebera dias antes alertando-o contra mim. Lembrei o gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais o saber, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo fizera em sua esposa. Um turbilhão de sentimentos mal-costurados bulia dentro mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração formavam um todo indigesto que me mantinha prostrado à entrada do teatro.

Enquanto pensava em tais coisas, pude enxergar num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina, de como seus olhos não se despegaram de mim nem por um instante naquela noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido, ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno ajuntamento de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até a morte e espertou novamente aquela paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria me matando.

Senti meu ânimo se elevar e até esqueci um instante de Virgília quando finalmente decidi entrar no teatro. Quais eram meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amaria? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Mas a maneira como meu ânimo retornou assim que avistei Nhá-loló sugeria ao menos que minha atenção já não se depositava exclusivamente em Virgília.

Por que me aborrecera então com as insinuações de Escobar? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, ainda mais porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão obviamente não me pertencia. O amor-próprio, nessas horas, dilata-se a ponto do apego e do despeito serem confundidos com ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”

Mas o que me aborrecia mesmo era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como então Virgília estava cogitando substituir um puro-sangue por um matungo? Ocorreu-me que Virgília podia estar repetindo o lance que resultara no xeque-mate de minhas pretensões matrimoniais anos atrás, quando me substituíra, sem maiores explicações, pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, Virgília demonstrava querer explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos percorrendo. E olha que eu não negava à sua atitude um certo espírito empreendedor; só não me agradava ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…

Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me substituiu por Lobo Neves:

– Um Cubas!

Aquela frase penetrou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.

– Um Cubas!

Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.

NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA

Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?
Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se o encontro fosse entre Brás e Escobar? A dinâmica entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia da época (melhor descrita no perfil que Brás traça de seu cunhado Cotrim) me pareceu que poderia resultar em uma cena mais interessante.
Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855.
Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de
ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134)
Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…
Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.
Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “
Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.)
Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.
Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.
Mas, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”… Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando demonstrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados.
Mas tem mais: se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime. Aliás, tenha ou não gostado de minha narrativa, você já a leu. Se gostou, ótimo; se não, paciência. Não é o fim do mundo. “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”, diria Quincas Borba.
Em 20/06/2018

Machado de Assis – Último Capítulo (excerto)

“Há entre os suicidas um excelente costume, que é não deixar a vida sem dizer o motivo e as circunstâncias que os armam contra ela. Os que se vão calados, raramente é por orgulho; na maior parte dos casos ou não têm tempo, ou não sabem escrever. Costume excelente: em primeiro lugar, é um ato de cortesia, não sendo este mundo um baile, de onde um homem possa esgueirar-se antes do cotilhão; em segundo lugar, a imprensa recolhe e divulga os bilhetes póstumos, e o morto vive ainda um dia ou dois, às vezes uma semana mais.”

A fina ironia de Machado de Assis: parágrafo inicial do conto “Último Capítulo” (in Histórias sem Data, Editora Garnier, Rio de Janeiro, 1884)

Stig Dagerman – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tampouco me legaram o disfarçado furor do cético, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.

 

Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a!

Mas tenho o que entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!

As formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. Sussurram odiosas. Enchem-me o quarto de murmúrios.
O prazer: “Entrega-te sem restrições”!
O talento: “Usa-me tão mal como a mim mesmo”!
A minha sede de gozo: “Só os gulosos sabem viver”!
A solidão: “Despreza os homens”!
Este desejo de morte: “Fere, Mata”!»

Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a ávida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesma se alimenta.

E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus atos, por isso tudo me pode ser desculpado.

O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exatamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem refletida do desespero. De fato, assim que o desespero me diz – “perca a esperança, o dia não passa de um momento de luz entre duas noites”, há uma falsa voz que me grita – “tenha confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias”.

A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau — agir como se todos os atos fossem defensáveis — deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos para sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece…

Noites há em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objetos pontiagudos que me rodeiam, no peso do teto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o fato de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!

Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de uma forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: “Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis”! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o fato da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!

Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o fato de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.

Dir-se-á que preciso ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus atos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objetivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitetei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam? Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anônima chamada população mundial, sou também uma unidade autônoma.

Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.

Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem senão viver? Faz máquinas? Escreve livros? Faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa. Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. Importa é saber-se um fim autônomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.

Posso até isentar-me do poder da morte. É verdade que não consigo afastar a ideia que ela se me cola constantemente aos calcanhares. Muito menos sou capaz de lhe negar realidade. Mas posso aniquilar a sua ameaça, evitando escorar a minha vida em pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória.

Aqui é que não é lugar de permanência: eternamente voltado para o mar a comparar a sua liberdade com a minha. Chegará o momento de retomar o caminho da terra e enfrentar os responsáveis pela opressão que me faz vítima. Serei forçado a reconhecer que o homem deu vida a formas que, pelo menos na aparência, se revelam mais fortes do que ele. Mesmo a minha recente liberdade não é suficiente para as fatigar, mas somente para suspirar sob o seu peso.

Entretanto, entre as exigências que pesam sobre o homem, sei distinguir as exigências absurdas das inelutáveis. E absurdo é termos perdido para sempre uma forma de liberdade: a que advém de se possuir um elemento próprio. O peixe, tal como o pássaro e o animal terrestre, têm o seu. Thoreau ainda podia contar com a floresta de Walden – mas onde está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?

Sou obrigado a responder: em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será limitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.

É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.