John Donne – Em despedida: proibindo o pranto

Como esses santos homens que se apagam
Sussurrando aos espíritos: “Que vão…”,
Enquanto alguns dos amigos amargos
Dizem: “Ainda respira.” E outros: “Não.” —

Nos dissolvamos sem fazer ruído.
Sem tempestades de ais, sem rios de pranto,
Fora profanação nossa ao ouvido
Dos leigos descerrar todo este encanto.

O terremoto traz terror e morte
E o que ele faz expõe a toda a gente,
Mas a trepidação do firmamento,
Embora ainda maior, é inocente.

O amor desses amantes sublunares
(Cuja alma é só sentidos) não resiste
A ausência, que transforma em singulares
Os elementos em que ele consiste.

Mas a nós (por uma afeição tão alta,
Que nem sabemos do que seja feita,
Interassegurado o pensamento)
Mãos, olhos, lábios não nos fazem falta.

As duas almas, que são uma só,
Embora eu deva ir, não sofrerão
Um rompimento, mas uma expansão,
Como ouro reduzido a aéreo pó.

Se são duas, o são similarmente
Às duas duras pernas do compasso:
Tua alma é a perna fixa, em aparente
Inércia, mas se move a cada passo

Da outra, e se no centro quieta jaz,
Quando se distancia aquela, essa
Se inclina atentamente e vai-lhe atrás,
E se endireita quando ela regressa.

Assim serás para mim que pareço
Como a outra perna obliquamente andar.
Tua firmeza faz-me, circular,
Encontrar meu final em meu começo.

Tradução: Augusto de Campos

Cassiano Ricardo – Missa de Corpo Presente

O seu corpo tão alvo, o seu corpo presente
é a coisa mais ausente, é uma ilusão
pensar que a rosa ou o fruto já colhidos
ainda soluçam desprendidos da haste.

O seu corpo é já um fruto neutro e frio.
Não obstante jovem, tem a mesma idade
de todos os que morreram antes, ou mesmo
na mais remota origem babilônica.

Todos os mortos tem a mesma idade.
Que me adiante chorar sobre a argila ainda tenra,
que esfriou não faz, senão, apenas um minuto?
Todo cadáver é uma coisa já longínqua.

Embora tenha esfriado apenas há um minuto
é algo que regressou súbita e automaticamente
à noite que existiu antes de Deus.
Todo cadáver é anterior ao sol e a Deus.

Mas por que sofro tanto? Não será justamente
por estar sendo vista, ser um corpo presente
aquela que voltou ao nunca ter nascido
e me deixou ausente, eternamente?

Aquela que voltou à fonte, ao horizonte
de quando antes de tudo e me deixou ausente
para que eu vá matando em mim sua presença
até morrê-la quanto o dia morre a estrela?

Se eu fosse Júpiter me converteria
em chuva de ouro sobre sua imagem.
Se eu fosse Glauco me transformaria
num peixe azul no índico da imemória.

De “João Torto e a Fábula”, nova edição, 1963, Livraria José Olympio Editora

Ricardo Reis – Odes: 153 – Como este infante que alourado dorme

Como este infante que alourado dorme
  Fui. Hoje sei que há morte,
Lídia, há largas taças por encher
  Nosso amor que nos tarda.
  Qualquer que seja o amor ou a taça, cedo
   Cessa. Receia, e apressa.

Ricardo Reis – Odes: 144 – Uns, com os olhos postos no passado,

Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

Ricardo Reis – Odes: 105 – Quando, Lídia, vier o nosso Outono

Quando, Lídia, vier o nosso outono
Com o inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
  Primavera, que é de outrem,
Nem para o estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa –
O amarelo atual que as folhas vivem
  E as torna diferentes.

Ricardo Reis – Odes: 80 – A nada imploram tuas mãos já coisas,

A nada imploram tuas mãos já coisas,
Nem convencem teus lábios já parados,
  No abafo subterrâneo
  Da húmida imposta terra.
Só talvez o sorriso com que amavas
Te embalsama remota, e nas memórias
  Te ergue qual eras, hoje
  Cortiço apodrecido.
E o nome inútil que teu corpo morto
Usou, vivo, na terra, como uma alma,
  Não lembra. A ode grava,
  Anónimo, um sorriso.

Ricardo Reis – Odes: 63 – Tão cedo passa tudo quanto passa!

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Ricardo Reis – Odes: 63 – Tão cedo passa tudo quanto passa!

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
   Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe
   E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis – Odes: 61 – De uma só vez recolhe

   De uma só vez recolhe
   Quantas flores puderes.
Não dura mais que até à morte o dia.
   Colhe de que recordes.

   A vida é pouco e cerca-a
   A sombra e o sem remédio.
Não temos regras que compreendamos,
   Súbditos sem governo.

   Goza este dia como
   Se a Vida fosse nele.
Homens nem deuses fadam, nem destinam
   Senão o que ignoramos.

Ricardo Reis – Odes: 40 – Não sem lei, mas segundo leis diversas

Não sem lei, mas segundo leis diversas
Entre os homens reparte o fado e os deuses
   Sem justiça ou injustiça
Prazeres, dores, gozos e perigos.

Bem ou mal, não terás o que mereces.
Querem os deuses a isto obrigar
   Porque o Fado não tem
Leis nossas com que reja a sua lei.

Quem é rei hoje, amanhã escravo cruza
Com o escravo de ontem que é depois rei.
   Sem razão um caiu,
Sem causa nele o outro ascenderá.

Não em nós, mas dos deuses no capricho
E nas sombras p’ra além do seu domínio
   Está o que somos, e temos,
A vida e a morte do que somos nós.

Se te apraz mereceres, que te apraza
Por mereceres, não porque te o Fado
   Dê o prémio ou a paga
De com constância haveres merecido.

Dúbia é a vida, inconstante o que a governa.
O que esperamos nem sempre acontece
   Nem nos falece sempre,
Nem há com que a alma uma ou outra cousa espere.

Torna teu coração digno dos deuses
E deixa a vida incerta ser quem seja.
   O que te acontecer
Aceita. Os deuses nunca se rebelam.

Nas mãos inevitáveis do destino
A roda rápida soterra hoje
   Quem ontem viu o céu
Do transitório auge do seu giro.