José Paulo Paes – Revisitação

Cidade, por que me persegues?

Com os dedos sangrando
já não cavei em teu chão
os sete palmos regulamentares
para enterrar meus mortos?
Não ficamos quites desde então?

Por que insistes
em acender toda noite
as luzes de tuas vitrinas
com as mercadorias do sonho
a tão bom preço?

Não é mais tempo de comprar.
Logo será tempo de viajar
para não se sabe onde.
Sabe-se apenas que é preciso ir
de mãos vazias.

Em vão alongas tuas ruas
como nos dias de infância,
com a feérica promessa
de uma aventura a cada esquina.
Já não as tive todas?

Em vão os conhecidos me saúdam
do outro lado do vidro,
desse umbral onde a voz
se detém interdita
entre o que é e o que foi.

Cidade, por que me persegues?
Ainda que eu pegasse
o mesmo velho trem,
ele não me levaria
a ti, que não és mais.

As cidades, sabemos,
são no tempo, não no espaço,
e delas nos perdemos
a cada longo esquecimento
de nós mesmos.

Se já não és e nem eu posso
ser mais em ti, então que ao menos
através do vidro
através do sonho
um menino e sua cidade saibam-se afinal

intemporais, absolutos.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Sarah Lindsay – Origem

A primeira célula não sentiu o impulso de se dividir.
Nutrida por abundantes sais e sol,
delgada ainda, ela simplesmente se espalhou,
balançando sobre a água, agarrando-se à pedra,
uma película de força complacente.
Seu retículo endoplasmático
era algo de incomparável extensão sinuosa;
seu núcleo, aparelho de Golgi, RNA,
magníficos. Sem estar sujeita
a solidão, conflito interior, ou engano,
sem predador nem presa,
ela tinha pouco a fazer, a não ser prosperar,
afastar-se de qualquer calor intenso
ou amargor, e mudar seus tons pastéis
em uma espécie de canção.
Somos descendentes da segunda célula.

Trad.: Nelson Santander

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Origin

The first cell felt no call to divide.
Fed on abundant salts and sun,
still thin, it simply spread,
rocking on water, clinging to stone,
a film of obliging strength.
Its endoplasmic reticulum
was a thing of incomparable curvaceous length;
its nucleus, Golgi apparatus, RNA
magnificent. With no incidence
of loneliness, inner conflict, or deceit,
no predator nor prey,
it had little to do but thrive,
draw back from any sharp heat
or bitterness, and change its pastel
colors in a kind of song.
We are descendants of the second cell.

Nelson Santander – Quatro poemas sobre o tempo

RELIGIO1

o tempo me fascina
o tempo (os ponteiros fascistas)
de horas assassinas
suas facetas, seus lados

cegos
surdos
mudos me atraem
seus mundos

passados/
presentes/
futuros me traem

subtraem
(o tempo perdido
a perda de tempo:
pretextos para a vida

e a morte)
os relógios de hoje são tão

belos
táteis
frágeis
mesmo nas horas mais negras

brilham
glaciais
antiga-
mente, as horas fluíam enferrujadas

sujas
ocas
foscas
opacas
hoje, no ir

e vir elétrico

e silencioso dos pêndulos-dias,
os galos já não mais anunciam a aurora:
com a precisão digital

do sol,
meu coração bate

e observa os anos
que es-
correm, rapidamente
horas
abaixo

05/1988

TEMPO, TEMPO

SINGULARIDADE

LIMIAR

  1. Notas:
    Os poemas acima foram escritos em fases distintas da minha vida: Religio e Tempo, Tempo, aos 21 anos; Singularidade, por volta dos 40; e Limiar, como indicado no próprio texto, no dia em que completei 49 anos.

    O tempo sempre fez parte das minhas reflexões, ainda que, muitas vezes, de forma inconsciente — como uma sombra persistente que molda não apenas o ritmo da minha existência, mas também o pensamento sobre o que significa ser finito em um universo que parece infinito. Essa presença constante, oscilando entre fascínio e resignação, se revela de modos distintos em cada poema, acompanhando a mudança da minha percepção ao longo dos anos.

    Em Religio, escrito na juventude, o tempo emerge como uma entidade mecânica e opressora, personificada no relógio — ou “religio” (palavra latina do qual deriva religião, e que significava originalmente respeito, reverência ou culto a algo divino), trocadilho que tenta fundir o sagrado e o cronológico. O fascínio inicial (“o tempo me fascina”) logo dá lugar à inquietação diante da efemeridade, em imagens de horas “assassinas” e anos que “escorrem/correm” rapidamente em direção à última volta do ponteiro. Com a diagramação fragmentária, com versos e palavras isolados, eu quis criar um fluxo visual que imita o tique-taque de um relógio. O poema presta tributo ao concretismo e neoconcretismo (minha porta de entrada para a poesia), organizando o texto como se escorresse pela página — feito de areia de ampulheta. Curiosamente, a inspiração do poema não veio de especulações metafísicas, mas da troca de um velho despertador de corda, tiquetaqueante, por um silencioso e compacto relógio a pilha. Às vezes, a beleza e o silêncio são aliados da poesia.

    Em Tempo, Tempo, também aos 21, a reflexão se expande para o cósmico: as pegadas humanas na Lua — aparentemente eternas — tornam-se metáfora de uma permanência ilusória. São comparadas a uma “velha fotografia”, imóveis e imunes ao tempo ou ao vento, até que o verso final afirma: “a eternidade inexiste”. Aqui, o tempo não é mais pessoal, mas uma força estéril que congela o movimento, revelando um temor implícito diante da insignificância humana no vazio espacial. A estrutura em três blocos pretende emprestar ao texto ritmo de silogismo poético, e o espaço em branco aqui não é apenas pausa, mas vazio físico — ecoando o próprio vácuo lunar.

    Singularidade, gestado por volta dos meus 43, é um dos poemas de que mais gosto, dentre os poucos que escrevi. Nele, tempo e espaço se entrelaçam, inspirados na cosmologia: Big Bang, expansão do universo, o nada que contém o tudo. A existência surge reduzida a um “sopro” ou “espasmo” infinitesimal no meio de “tanto tempo / tanto espaço”. É um momento de escala relativística e de aceitação filosófica da brevidade e da insignificância, em que a ansiedade juvenil se transforma em meditação sobre o absurdo — e também a beleza — da vida como “um curto espaço de tempo”. No plano formal, a palavra “expandindo” literalmente se expande pela página, emulando a expansão do espaço-tempo; já “in- / finite- / si- / mal” — que designa uma existência de extrema pequenez, infinitamente pequena; mínima, ínfima; e que, na matemática, é uma quantidade mais próxima de zero do que qualquer número real, mas diferente de zero — se fragmenta para revelar sentidos ocultos: in (palavra inglesa polissêmica que significa, dentre outras coisas, o que vive dentro e dentrofinite (finito ou limitado, em inglês), si (o eu), mal (no contexto do poema, imperfeição, dor ou limite inerente à vida). O branco e o preto participam ativamente da narrativa visual: a página simula tanto uma explosão cósmica quanto um mapa do universo, com o tempo à esquerda, o espaço à direita e, no centro, a existência — minúscula, como um náufrago em mar aberto. É o poema mais explicitamente visual da série e herdeiro direto das vanguardas concretas.

    Por fim, Limiar, aos 49, traz o tempo de volta ao plano íntimo, agora filtrado pelo humor e pela ironia. A epígrafe de Woody Allen lembra que a vida é mais obra do acaso do que do controle, e o poema registra, com simplicidade, o instante entre o “quase” e o “ocaso”. Aqui, a angústia inicial se converte em resignação bem-humorada, como se, depois de tanto refletir sobre o tempo, restasse apenas celebrá-lo — mesmo sabendo que ele é finito. ↩︎

Ron Koertge – Espaço vazio

Meu pai me ensinou a fazer as malas: colocar tudo à vista. Guardar metade. Enrolar o que pode ser enrolado. As peças que amarrotam vão sobre as de algodão. Depois, calças, da cintura às barras. Cantinhos e frestas para as meias. Cintos nas laterais, como cobras. Plástico por cima. Depois, os sapatos. Usar as roupas pesadas no avião.
Começamos quando eu era pequeno. Eu enrolava as meias. Então ele fingia me colocar na mala, e a gente ria. Alguns caras criam laços com seus pais jogando basquete ou falando sobre Chevrolets. Nós fizemos isso através de bagagens.
Quando fiz doze anos, se ele estivesse ocupado, eu fazia as malas para ele. Mamãe até tentava, mas não tinha o mesmo jeito. Ele chegava a algum lugar, abria a mala e me mandava uma mensagem: ”Perfeito”. Aquela única palavra dele significava muito.
O funeral foi terrível — ele estendido naquela caixa enorme, e eu chorando, pensando: Olha só todo esse espaço vazio.

Trad.: Nelson Santander

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Negative Space

My dad taught me to pack: lay out everything. Put back half. Roll things that roll. Wrinkle-prone things on top of cotton things. Then pants, waist-to-hem. Nooks and crannies for socks. Belts around the sides like snakes. Plastic over that. Add shoes. Wear heavy stuff on the plane.
We started when I was little. I’d roll up socks. Then he’d pretend to put me in the suitcase, and we’d laugh. Some guys bond with their dads shooting hoops or talking about Chevrolets. We did it over luggage.
By the time I was twelve, if he was busy, I’d pack for him. Mom tried but didn’t have the knack. He’d get somewhere, open his suitcase and text me — ”Perfect.” That one word from him meant a lot.
The funeral was terrible—him laid out in that big carton and me crying and thinking, Look at all that wasted space.

Ivan Junqueira – Morrer

Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto;

é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito;

é despedir-se em surdina,
sem epitáfio melífluo
ou testamento sovina;

é talvez como despir
o que em vida não vestia
e agora é inútil vestir;

é nada deixar aqui:
memória, pecúlio, estirpe,
sequer um traço de si;

é findar-se como um círio
em cuja luz tudo expira
sem êxtase nem martírio.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Eavan Boland – A douradora

Ela amava prata, ela amava ouro,
minha mãe. Ela falava sobre a influência
dos metais, a congruência dos átomos,
as aulas de arte onde aprendera
essas coisas: imagine só
ela me dizia ao contar
que, para dourar qualquer superfície, um mestre artesão
precisava fundir ouro com mercúrio,
aquecer os dois para que um se tornasse volátil,
o outro não,
e para fazer direito
tinha que separá-los e então
queimar, queimar, queimar o mercúrio
até que desaparecesse, deixando para trás
uma camada de luz. O único problema, acrescentou —
mas o que disse depois eu esqueci.

O que ela passou uma vida esquecendo
poderia ser meu tema:
as aldeotas muradas de Leinster,
os vilarejos costeiros onde a linguagem
do mar era transmitida,
frases feridas por tormentas,
por naufrágios. Mas não é.
Meu tema é o papel do desejo
na forma como os vilarejos são feitos
para desaparecer, na forma como aprendi
a separar memória de conhecimento,
então um era volátil, o outro não,
e como comecei a escrever,
luz ardente,
gerando calor até que de repente
eu era a douradora
pronta para espalhar esplendor,
pronta para decorar aconteceu
com nunca aconteceu quando
de repente lembro o que foi
que ela disse: o único problema é que
é extremamente perigoso.

Trad.: Nelson Santander

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The Fire Gilder

She loved silver, she loved gold,
my mother. She spoke about the influence
of metals, the congruence of atoms,
the art classes where she learned
these things: think of it
she would say as she told me
to gild any surface a master craftsman
had to meld gold with mercury,
had to heat both so one was volatile,
one was not
and to do it right
had to separate them and then
burn, burn, burn mercury
until it fled and left behind
a skin of light. The only thing, she added—
but what came after that I forgot.

What she spent a lifetime forgetting
could be my subject:
the fenced-in small towns of Leinster,
the coastal villages where the language
of the sea was handed on,
phrases bruised by storms,
by shipwrecks. But isn’t.
My subject is the part wishing plays in
the way villages are made
to vanish, in the way I learned
to separate memory from knowledge,
so one was volatile, one was not
and how I started writing,
burning light,
building heat until all at once
I was the fire gilder
ready to lay radiance down,
ready to decorate it happened
with it never did when
all at once I remember what it was
she said: the only thing is
it is extremely dangerous.

Ivan Junqueira – Esse Punhado de Ossos

Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.

Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.

Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.

E ali, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos não choram.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Seamus Heaney – Posfácio

E reserve um tempo para ir até o oeste
Rumo a County Clare, pela Flaggy Shore,
Em setembro ou outubro, quando o vento
E a luz interagem entre si,
De modo que o oceano de um lado se torna selvagem,
Com espuma e brilho, e terra adentro, entre as pedras,
A superfície de um lago cinza ardósia é iluminada
Pelo clarão terrestre de um bando de cisnes,
Suas penas ásperas e revoltas, branco sobre branco,
Suas cabeças plenas, de aparência obstinada,
Curvadas ou erguidas ou atarefadas sob a água.
Inútil pensar que ao parar você irá capturar tudo
De uma só vez. Você não está aqui nem lá,
Um fluxo onde conhecido e desconhecido se encontram,
Enquanto grandes e suaves rajadas atingem o carro de lado,
Pegam o coração desprevenido e o fazem se abrir.

Trad.: Nelson Santander

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Postscript

And some time make the time to drive out west
Into County Clare, along the Flaggy Shore,
In September or October, when the wind
And the light are working off each other
So that the ocean on one side is wild
With foam and glitter, and inland among stones
The surface of a slate-grey lake is lit
By the earthed lightning of a flock of swans,
Their feathers roughed and ruffling, white on white,
Their fully grown headstrong-looking heads
Tucked or cresting or busy underwater.
Useless to think you’ll park and capture it
More thoroughly. You are neither here nor there,
A hurry through which known and strange things pass
As big soft buffetings come at the car sideways
And catch the heart off guard and blow it open.

Ivan Junqueira – A Sagração dos Ossos

Considerai estes ossos
– tíbios, inúteis, apócrifos –
que sob a lápide dormem
sem prédica que os conforte.

Considerai: é o que sobra
de quem lhes serviu de invólucro
e agora já não se move
entre as tábuas do sarcófago.

Dormem sem túnica ou toga
e, quando muito, um lençol
lhes cobre as partes mais nobres
(as outras quedam-se à mostra,

não dos que estão aqui fora,
mas dos ácidos que o roem
ou do lodo que lhes molha
até a polpa esponjosa).

De quem foram tais despojos
tão nulos e sem memória,
tão sinistros quanto inglórios
em seu mutismo hiperbólico?

Onde andaram? Em que solo
deitaram sêmen e prole?
Foram químicos, astrólogos,
remendões, físicos, biólogos?

Ou nada foram? Que importa
não haja um só microscópio
lhes cevado a magra forma
ou a mais ínfima nódoa?

Existiram. Esse é o tópico
que aqui, afinal, se aborda.
E eis que o faço porque, ao toque
de meus dedos em seus bordos,

tais ossos como que imploram
a mim que os chore e os recorde,
que jamais os deixe à corda
da solidão que os enforca,

nem à sanha do antropólogo
que os vê, não como o espólio
do que foi amor ou ódio,
lascívia, miséria e glória,

mas como a lívida prova
de que o sonho foi-se embora
e dele só resta a escória
numa urna museológica.

E então me pergunto, a sós:
por que desdenhar o outrora
se nele é que ecoa a voz
do que, no futuro, aflora?

Não bastaria uma rótula
para atestar esse cogito,
ergo sum, aqui e agora,
alheio a qualquer prosódia

ou língua em que se desdobre
essa falácia que aposta
no fundo abismo sem orlas
entre o que vive e o que morre?

Baixa uma névoa viscosa
sobre as pálpebras da aurora.
E ali, de pé, sob a estola
de um macabro sacerdote,

sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Kenneth Rexroth – Ar e Anjos: Apenas Esta Noite

Luar agora em Malibu
A noite de inverno as poucas estrelas
Distantes milhões de milhas
O mar seguindo sempre
Eternamente ao redor da Terra
Tão distante quanto próximos estão seus lábios
Banhados da mesma luz dos seus olhos
Amada amada amada
O futuro ficou para trás
E o passado nunca acontecerá
Temos apenas este
Nosso único para sempre
Tão pequeno tão infinito
Tão breve tão vasto
Imortal como nossas mãos que se tocam
Imorredouro como o vinho iluminado que bebemos
Onipotente como este único beijo
Que não tem começo
Que nunca nunca
Terá
Fim

Trad.: Nelson Santander

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Air and Angels: This Night Only

Moonlight now on Malibu
The winter night the few stars
Far away millions of miles
The sea going on and on
Forever around the earth
Far and far as your lips are near
Filled with the same light as your eyes
Darling darling darling
The future is long gone by
And the past will never happen
We have only this
Our one forever
So small so infinite
So brief so vast
Immortal as our hands that touch
Deathless as the firelit wine we drink
Almighty as this single kiss
That has no beginning
That will never
Never
End