Carlos Drummond de Andrade – Desfile

O rosto no travesseiro,
escuto o tempo fluindo
no mais completo silêncio.
Como remédio entornado
em camisa de doente;
como na penugem
de braço de namorada;
como vento no cabelo,
fluindo: fiquei mais moço.
Já não tenho cicatriz.
Vejo-me noutra cidade.
Sem mar nem derivativo,
o corpo era bem pequeno
para tanta insubmissão.
E tento fazer poesia,
queimar casas, me esbaldar
nada resolve: mas tudo
se resolveu em dez anos
(memórias do smoking preto)
O tempo fluindo: passos
de borracha no tapete,
lamber de língua de cão
na face: o tempo fluindo.
Tão frágil me sinto agora.
A montanha do colégio.
Colunas de ar fugiam
das bocas, na cerração.
Estou perdido na névoa,
na ausência, no ardor contido
O mundo me chega em cartas.
A guerra, a gripe espanhola,
descoberta do dinheiro,
primeira calça comprida,
sulco de prata de Halley,
despenhadeiro da infância.
Mais longe, mais baixo, vejo
uma estátua de menino
ou um menino afogado.
Mais nada: o tempo fluiu.
No quarto em forma de túnel
a luz veio sub-reptícia.
Passo a mão na minha barba.
Cresceu. Tenho cicatriz.
E tenho mãos experientes.
Tenho calças experientes.
Tenho sinais combinados.
Se eu morrer, morre comigo
um certo modo de ver.
Tudo foi prêmio do tempo
e no tempo se converte.
Pressinto que ele ainda flui.
Como sangue; talvez água
de rio sem correnteza.
Como planta que se alonga
enquanto estamos dormindo.
Vinte anos ou pouco mais,
tudo estará terminado.
O tempo fluiu sem dor.
O rosto no travesseiro,
fecho os olhos, para ensaio.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/01/2019

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Sharon Olds – As formas

Sempre tive a sensação de que minha mãe
morreria por nós, se atiraria em um incêndio
para nos tirar de lá, seus cabelos flamejando como
uma auréola, pularia na água, seu corpo
branco afundando e girando lentamente,
o astronauta com seu tubo cortado,
caindo
        na
             escuridão. Ela teria nos
coberto com seu corpo, empurraria seus
seios entre nossos peitos e a faca,
teria nos colocado no bolso de seu casaco
para nos proteger das chuvas. Em um desastre, 
uma mãe animal, ela teria morrido por nós,

mas na vida como era
ela tinha que se colocar
em primeiro lugar.
Ela tinha que fazer o que ele 
mandasse fazer com as crianças, ela tinha
que se proteger. Na guerra, ela teria
morrido por nós, eu digo que sim,
e eu sei: eu sou estudante da guerra,
dos fornos a gás, sufocamentos, facas,
afogamentos, queimaduras, de todas as formas
em que experimentei seu amor.

Trad.: Nelson Santander

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The Forms

I always had the feeling my mother would
die for us, jump into a fire
to pull us out, her hair burning like
a halo, jump into water, her white
body going down and turning slowly,
the astronaut whose hose is cut
falling
into
blackness. She would have
covered us with her body, thrust her
breasts between our chests and the knife,
slipped us into her coat pocket
outside the showers. In disaster, an animal
mother, she would have died for us,

but in life as it was
she had to put herself
first.
She had to do whatever he
told her to do to the children, she had to
protect herself. In war, she would have
died for us, I tell you she would,
and I know: I am a student of war,
of gas ovens, smothering, knives,
drowning, burning, all the forms
in which I have experienced her love.

Vinicius de Moraes – Cemitério Marinho

Tal como anjos em decúbito
A conversar com o céu baixinho
Existem cerca de cem túmulos
Num lindo cemiteriozinho
Que eu, a passeio, descobri
Um dia em Sidi Bou Said.

Mal defendidos por uns muros
Erguidos ao sabor da morte
Eu nunca vi mortos tão puros
Mortos assim com tanta sorte
As lajes de cal como túnicas
Brancas, e árabes; não púnicas.

Sim, porque cemiteriozinho
Nunca se viu assim tão árabe
Feito o beduíno que é sozinho
Ante o deserto que lhe cabe
E mudo em face do horizonte
Sem uma sombra que o confronte.

Pequenos paralelepípedos
Fendidos uns, conforme o sexo
Eis suas lápides: antípodas
Das que se vêem num cemitério
De gente do nosso pigmento:
Os nossos mortos de cimento.

Quem se deixar de tarde ali
Isento de mágoa ou conflito
A olhar o mar (sem Valéry!)
Como um espelho de infinito
E o céu como um anti-recôncavo:
Como o convexo de um côncavo

Acabará (comigo deu-se!)
Ouvindo os mortos cochicharem
Alegremente, eles e Deus
Mas não o nosso: o Deus dos árabes
Que não fez Sidi Bou Said
Para os prazeres de André Gide

Mas sim porque a vida segue
E o tempo pára, e a morte é um canto
Porque morrer é coisa alegre
Para quem vive e sofre tanto
Como no cemiteriozinho, ali
Ao céu de Sidi Bou Said.

Sidi Bou Said, outubro de 1963
Florença, novembro de 1963

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/01/2020

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Alberto Ríos – Cinco anos depois

Eu era, e agora sou.
Há tanto a expressar nessas poucas palavras.

Às vezes, essa mudança é doçura,
Um beijo, um afago. Às vezes,

Nada nos alerta. Não podemos prever.
É imposto a nós. Uma arma,

Um terremoto, uma inundação — qualquer um dos terríveis
Horrores deste mundo.

Nesses momentos, não pedimos,
Não temos a chance de respirar fundo,

É simplesmente o fim de um capítulo
E a primeira página do próximo. Somos lançados

Em águas profundas e ficamos com raiva,
Estamos com raiva, estamos com raiva.

Não sabíamos nadar, mas agora nadamos —
Precisamos nadar.

Não é justo. Nunca é justo.
Não temos chance de participar da decisão

Que nos transforma.
Nós éramos, e agora somos. Lamentavelmente,

Não estamos sós. Se é um de nós,
Somos todos nós, são muitos de nós.

Nós éramos, e agora somos.
Doçura ou crueldade, subitaneidade, choque,

Um toque áspero que pode significar:
Nós mudamos.

Se foi um beijo, nossas vidas são poderosamente direcionadas
Para a leveza.

Mas quando não é doçura, não é um beijo,
vivemos o resto da vida como alguém diferente,

Mas alguém que ainda somos nós.
Se tivéssemos uma arma, ou porque tínhamos uma arma,

Se as coisas tivessem sido diferentes, melhores,
Se a reabilitação tivesse sido mais eficaz,

Se Deus tivesse intervindo, se alguém tivesse ouvido:
Estaríamos vivendo no mundo normal.

Poderíamos olhar para os coelhos ao longo da rodovia
E para as montanhas azuis e desgastadas ao longe

Como qualquer um.
Mas cinco anos depois de algo ter nos acontecido,

Não somos mais qualquer um.
As lebres e as montanhas de Tucson —

As amamos, não facilmente, mas intensa, intensamente
Do novo jeito que tivemos que encontrar.

As amamos como quem agora somos.
Amamos porque isso é o que resta.

Trad.: Nelson Santander

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Five Years Later

I was, and now I am.
So much goes into the saying of those few words.

Sometimes this change is sweetness,
A kiss, a caress. Sometimes,

Nothing warns us. It cannot be thought by us.
It is done to us. A gun,

An earthquake, a flood—any of the muscular
Horrors of this world.

In those instances, we don’t ask for it,
We don’t get to take a deep breath,

It is simply the end of the chapter
And page 1 of the next. We are thrown

Into the deep water and we are angry,
We are angry, we are angry.

We could not swim, but now we are swimming—
We have to swim.

It is not fair. It is never fair.
We have no chance to be part of the decision

That changes us.
We were, and then we are. Regrettably,

We are not alone. If it is one of us,
It is all of us, so many of us.

We were, and now we are.
Sweetness or cruelty, suddenness, shock,

A rough touch that could be either:
We are changed.

If it has been a kiss, our lives are turned powerfully
Toward lightness.

But when it is not sweetness, not a kiss,
We live the rest of our lives as someone else,

But someone who is still us.
If we had a gun, because we did have a gun,

If things had gone differently, better,
If the rehab had been more effective,

Had God stepped in, had anyone heard:
We would be living in the regular world.

We could look at the rabbits along the highway
And the blue, ragged mountains in the distance

Like anyone.
But five years after something has happened to us

We are not the anyone.
The jackrabbits and the Tucson Mountains—

We love them, not easily but fiercely, fiercely
In the new way we have had to find.

We love them as who we are now.
We love because that’s what’s left.

Paul Valéry – Cemitério Marinho

          Ó min’alma não aspires
          A uma existência imortal,
          Mas goza plenamente
          Tudo o que estiver ao teu alcance.

            Píndaro
            Píticas III

Este teto tranquilo, onde caminham pombas,
Palpita entre pinheiros e tumbas;
Compõe-lhe de luz o meio dia justo
O mar, o mar, sempre recomeçado!
Que recompensa após meditação
N’um longo olhar sobre a calma dos deuses!

Puro lavor de finos lampejos consuma
Tanto diamante de imperceptível espuma,
Que imensa paz então parece haver,
Quando no abismo um sol vai repousar!
Obras tão puras de uma causa eterna,
O tempo cintila e o Sonho é saber.

Tesouro!
        templo a Minerva,
Massa tranquila,
        clara reserva,
Fonte!…
        Olho que em ti escondes
Profundo sono
        Num véu de luz.
O meu silêncio!
        Castelo n’alma,
Mas cúpula de ouro de mil telhas,
Teto!

Templo do Tempo, que um suspiro só resume,
Ascendo a esta pura elevação,
A ela me habituo,
Todo envolto em meu olhar marinho;
E como aos deuses minha suprema oferenda,
A cintilação semeia serena
Sobre a profundidade um desdém soberano.

Como o fruto em sabor se funde,
Com em delícia muda sua ausência,
Em uma boca onde a forma se morre,
De meu futuro o fumo aqui aspiro,
E o céu canta à alma consumida
A mudança dos mundos em murmúrio.

Belo céu, vero céu, vê, me transmudo!
Após tanto orgulho, tanto estranho ócio,
Mas cheio de poder,
Abandono-me a este espaço brilhante;
Sobre as casas dos mortos passa minha sombra,
Que me acostuma ao seu leve mover.

Alma exposta às tochas do solstício,
Detenho-te, admirável justiça da luz
de armas implacáveis!
Devolvo-te pura à tua origem primeira;
Acautela-te!… Iluminar obriga
Uma triste metade encher de sombra.

Só para mim, em-mim, por-mim somente,
Junto d’um coração, nas fontes do poema,
Do incriado á pura criação,
Espero o eco de minha íntima grandeza,
Amarga, sombria e sonora cisterna,
A soar n’alma um vazio sempre futuro!

Sabes, falso cativo das ramagens,
Golfo devorador destes finos gradis,
Segredos deslumbrantes a meus olhos cegados,
Que ânimo me traz a este fim remorado,
Que amor o atrai a esta óssea terra?
Dele um lampejo lembra os meus ausentes.

Fechado,
     Sagrado,
          pleno de ardentias
Pedaço desta terra oferecido à luz,
Praz-me este lugar dominado de archotes,
Feito de ouro, pedra e árvores sombrias,
Onde mármores tremem sobre tantas sombras;
Junto a minhas tumbas dorme fiel o mar!

Esplêndido molosso, afasta o idólatra!
Enquanto, solitário qual pastor,
Pastoreio carneiros misteriosos,
Branco rebanho de tranquilas tumbas.
Afastai as divinas pombas,
Os sonhos vãos,
          Estranhos anjos!

Aqui vindo o futuro é lentidão.
O claro inseto aranha na aridez;
Tudo queimado, levado ao ar, desfeito…
Em não sei que elementar essência…
A vida é vasta, ébria de ausência,
A mente é clara e doce a amargura.

Estão bem nesta terra os mortos escondidos
Que os aquece e seca o seu mistério.
Pleno sol no céu, meio dia imóvel,
De si pensa e consigo mesmo acorda…
Mente completa e diadema perfeito,
Eu sou em ti a secreta mutação.

Só a mim tens para deter teus temores!
Meus remorsos, dúvidas, receios
São a jaça do teu grande diamante…
Mas na noite, de mármores pesada,
Um vago povo, na raiz das árvores,
Para o teu Ser caminha lentamente.

Dissolveram-se numa espessa ausência;
Bebeu a terra rubra a clara espécie,
Passou às flores a fonte do viver!
Dos mortos onde estão as frases familiares,
Os modos pessoais, as almas singulares?
A larva corre onde corria o pranto.

O grito agudo, as jovens afagadas,
Os olhos, dentes, pálpebras molhadas,
O seio encantador que brinca com o fogo,
Sangue que brilha, lábios que se entregam,
Últimos dons e os dedos que refregam,
Tudo se enterra e volta ao mesmo jogo!

E vós, grande alma, esperais um sonho
Que já não tenha as cores da mentira,
Que ouro e paixões a nossos olhos fazem?
Cantareis quando fordes vaporosa?
Tudo se esvai!
Minha presença é porosa,
A santa impaciência morre também!

Magra imortalidade, negra e dourada,
Consoladora horrível e louvada,
Qual seio maternal fazes da morte.
Bela mentira,
Piedoso engodo!
Quem não conhece,
          Quem não detesta
Esse olhar vazio e esse riso eterno!

Pais soterrados, cabeças desabitadas,
Que sob o peso, tantas pás de terra,
Sois terra e confundis os nossos passos,
O verdadeiro roedor, verme irrefutável,
Não é para vós que dormis sob a lousa,
Vive da vida e nunca me abandona!

Ódio, ou de mim amor?
O seu dente secreto está de mim tão perto
Que lhe podem convir os nomes todos!
Que importa! Vê, deseja, sonha e palpa!
Apraz-lhe minha carne, e até mesmo no leito,
A este ser vivo, vejo pertencer!

Zenão, cruel Zenão, Zenáo de Eléia!
Atravessou-me a tua flecha alada
Que vibra, voa e não se move!
O som me cria e a flecha me mata!
O sol… sombra de tartaruga para a alma,
Aquiles imóvel a grandes passos!

Não, não… de pé nas eras sucessivas!
Deixa, meu corpo, a atitude pensativa!
Aspira meu peito, o levantar do vento!
Brisa fresca exalada pelo mar,
Devolve-me min’alma… salso poderoso!
Mergulhar e redivivo ressurgir!

Sim grande mar, cheio de delírios,
Pele de pantera, clâmide perfurada
De milhões de imagem do mesmo sol formada,
Hidra absoluta, ébria da tua carne azul,
Que remordes a cauda flamejante
Num rumor ao silêncio semelhante.

Levanta-se o vento… é preciso viver!
O ar imenso reabre e refecha meu livro,
A vaga em pó ousa jorrar das rochas!
Perturbadoras páginas, revoai soltas!
Destruí, vagas?! destruí águas festivas
Esse teto tranquilo onde bebericavam velas!

Trad.: Edmundo Vasconcelos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 17/01/2019

Paul Valéry – Le Cimetière Marin

Ce toit tranquille, où marchent des colombes,
Entre les pins palpite, entre les tombes ;
Midi le juste y compose de feux
La mer, la mer, toujours recommencée
Ô récompense après une pensée
Qu’un long regard sur le calme des dieux !

Quel pur travail de fins éclairs consume
Maint diamant d’imperceptible écume,
Et quelle paix semble se concevoir !
Quand sur l’abîme un soleil se repose,
Ouvrages purs d’une éternelle cause,
Le Temps scintille et le Songe est savoir.

Stable trésor, temple simple à Minerve,
Masse de calme, et visible réserve,
Eau sourcilleuse, œil qui gardes en toi
Tant de sommeil sous un voile de flamme,
Ô mon silence… ! Édifice dans l’âme,
Mais comble d’or aux mille tuiles, Toit !

Temple du Temps, qu’un seul soupir résume,
À ce point pur je monte et m’accoutume,
Tout entouré de mon regard marin ;
Et comme aux dieux mon offrande suprême,
La scintillation sereine sème
Sur l’altitude un dédain souverain.

Comme le fruit se fond en jouissance,
Comme en délice il change son absence
Dans une bouche où sa forme se meurt,
Je hume ici ma future fumée,
Et le ciel chante à l’âme consumée
Le changement des rives en rumeur.

Beau ciel, vrai ciel, regarde-moi qui change !
Après tant d’orgueil, après tant d’étrange
Oisiveté, mais pleine de pouvoir,
Je m’abandonne à ce brillant espace,
Sur les maisons des morts mon ombre passe
Qui m’apprivoise à son frêle mouvoir.

L’âme exposée aux torches du solstice,
Je te soutiens, admirable justice
De la lumière aux armes sans pitié !
Je te rends pure à ta place première,
Regarde-toi… ! Mais rendre la lumière
Suppose d’ombre une morne moitié.

Ô pour moi seul, à moi seul, en moi-même,
Auprès d’un coeur, aux sources du poème,
Entre le vide et l’événement pur,
J’attends l’écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l’âme un creux toujours futur !

Sais-tu, fausse captive des feuillages,
Golfe mangeur de ces maigres grillages,
Sur mes yeux clos, secrets éblouissants,
Quel corps me traîne à sa fin paresseuse,
Quel front l’attire à cette terre osseuse ?
Une étincelle y pense à mes absents.

Fermé, sacré, plein d’un feu sans matière,
Fragment terrestre offert à la lumière,
Ce lieu me plaît, dominé de flambeaux,
Composé d’or, de pierre et d’arbres sombres,
Où tant de marbre est tremblant sur tant d’ombres ;
La mer fidèle y dort sur mes tombeaux !

Chienne splendide, écarte l’idolâtre !
Quand solitaire au sourire de pâtre,
Je pais longtemps, moutons mystérieux,
Le blanc troupeau de mes tranquilles tombes,
Éloignes-en les prudentes colombes,
Les songes vains, les anges curieux !

Ici venu, l’avenir est paresse.
L’insecte net gratte la sécheresse ;
Tout est brûlé, défait, reçu dans l’air
À je ne sais quelle sévère essence…
La vie est vaste, étant ivre d’absence,
Et l’amertume est douce, et l’esprit clair.

Les morts cachés sont bien dans cette terre
Qui les réchauffe et sèche leur mystère.
Midi là-haut, Midi sans mouvement
En soi se pense et convient à soi-même…
Tête complète et parfait diadème,
Je suis en toi le secret changement.

Tu n’as que moi pour contenir tes craintes !
Mes repentirs, mes doutes, mes contraintes
Sont le défaut de ton grand diamant…
Mais dans leur nuit toute lourde de marbres,
Un peuple vague aux racines des arbres
A pris déjà ton parti lentement.

Ils ont fondu dans une absence épaisse,
L’argile rouge a bu la blanche espèce,
Le don de vivre a passé dans les fleurs !
Où sont des morts les phrases familières,
L’art personnel, les âmes singulières ?
La larve file où se formaient les pleurs.

Les cris aigus des filles chatouillées,
Les yeux, les dents, les paupières mouillées,
Le sein charmant qui joue avec le feu,
Le sang qui brille aux lèvres qui se rendent,
Les derniers dons, les doigts qui les défendent,
Tout va sous terre et rentre dans le jeu !

Et vous, grande âme, espérez-vous un songe
Qui n’aura plus ces couleurs de mensonge
Qu’aux yeux de chair l’onde et l’or font ici ?
Chanterez-vous quand serez vaporeuse ?
Allez ! Tout fuit ! Ma présence est poreuse,
La sainte impatience meurt aussi !

Maigre immortalité noire et dorée,
Consolatrice affreusement laurée,
Qui de la mort fais un sein maternel,
Le beau mensonge et la pieuse ruse!
Qui ne connaît, et qui ne les refuse,
Ce crâne vide et ce rire éternel !

Pères profonds, têtes inhabitées,
Qui sous le poids de tant de pelletées,
Êtes la terre et confondez nos pas,
Le vrai rongeur, le ver irréfutable
N’est point pour vous qui dormez sous la table,
Il vit de vie, il ne me quitte pas!

Amour, peut-être, ou de moi-même haine?
Sa dent secrète est de moi si prochaine
Que tous les noms lui peuvent convenir !
Qu’importe ! Il voit, il veut, il songe, il touche !
Ma chair lui plaît, et jusque sur ma couche,
À ce vivant je vis d’appartenir!

Zénon ! Cruel Zénon ! Zénon d’Êlée !
M’as-tu percé de cette flèche ailée
Qui vibre, vole, et qui ne vole pas !
Le son m’enfante et la flèche me tue !
Ah ! le soleil… Quelle ombre de tortue
Pour l’âme, Achille immobile à grands pas !

Non, non… ! Debout ! Dans l’ère successive !
Brisez, mon corps, cette forme pensive !
Buvez, mon sein, la naissance du vent !
Une fraîcheur, de la mer exhalée,
Me rend mon âme… Ô puissance salée !
Courons à l’onde en rejaillir vivant.

Oui ! Grande mer de délires douée,
Peau de panthère et chlamyde trouée,
De mille et mille idoles du soleil,
Hydre absolue, ivre de ta chair bleue,
Qui te remords l’étincelante queue
Dans un tumulte au silence pareil,

Le vent se lève… ! Il faut tenter de vivre !
L’air immense ouvre et referme mon livre,
La vague en poudre ose jaillir des rocs !
Envolez-vous, pages tout éblouies !
Rompez, vagues ! Rompez d’eaux réjouies
Ce toit tranquille où picoraient des focs !

Obs.: “O Cemitério Marinho” foi eleito o 3º melhor poema do século 20 em votação realizada pela Folha de São Paulo, no início dos anos 2000, por um júri formado pelos poetas e críticos brasileiros Alcir Pécora, Aleksandar Jovanovic, Augusto Massi, Décio Pignatari, Irlemar Chiampi, Ivo Barroso, José Lino Grünewald, Leonardo Fróes, Nelson Ascher e Sebastião Uchoa Leite.

Sobre o poeta e o poema, resumiu a Folha: “Valéry foi grande ensaísta e se via sobretudo como um homem devotado à inteligência. Daí viria sua relação tensa com a poesia que o tornaria um “poeta-não poeta”, na expressão de Augusto de Campos. “Cemitério Marinho” é a prova cabal do acerto de um de seus aforismos, que diz que poema é aquilo que não pode ser resumido.”

Mais em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0201200005.htm

Walt Whitman – Uma meia-noite clara

Esta é tua hora, ó Alma, teu voo livre rumo ao inexprimível,
Longe dos livros, da arte, o dia desfeito, a lição concluída,
Tu emergindo plenamente, silente, contemplativa, refletindo sobre os temas que mais amas:
A noite, o sono, a morte e as estrelas.

Trad.: Nelson Santander

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A Clear Midnight

This is thy hour O Soul, thy free flight into the wordless,
Away from books, away from art, the day erased, the lesson done,
Thee fully forth emerging, silent, gazing, pondering the themes thou lovest best,
Night, sleep, death and the stars.

Berta Piñán – Duas Garças

Chegaram no sábado. Vimo-las
cedo porque nesse dia chegou
também o frio e passamos
a manhã falando do tempo.
São duas, e me pergunto que
destino imprevisto as trouxe
a esta árvore precisa, a este exato
lugar onde o tempo delas
cruza, como um enigma confuso,
nosso tempo.
À tarde, conversamos sobre elas:
“Esta espera delas, imóvel, paciente – dizes -,
não sei que imagem estranha e antiga ela traça
da vida”.
Depois ficamos em silêncio, observando,
espiando sua perfeita quietude
sobre as águas que fluem
no inverno, e assim,
por um momento, resumem
para nós a
contemplação
do mundo: este rio, estas árvores,
o céu de outono, o calor,
o frio.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 16/01/2019

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Berta Piñán – Dos Garzas

Llegaron el sábado. Las vimos
temprano porque ese día comenzó
también el frío y echamos
la mañana charlando del tiempo.
Son dos, y me pregunto qué
destino imprevisto las trae
a este árbol preciso, a este lugar
exacto en que su tiempo
atraviesa, como un signo confuso,
nuestro tiempo.
Por la tarde hablamos de ellas:
“Esta espera suya, inmóvil, terca – dices -,
no sé qué extraña, antigua imagen
traza de la vida”.
Después quedamos en silencio, mirando,
espiando su perfecta quietud
sobre las aguas que pasan
del invierno, y entonces,
por un momento, resumen
para nosotras la
contemplación
del mundo: este río, estos árboles,
el cielo de otoño, el calor,
el frío.

Ama Codjoe – Por que deixei o Jardim

Depois que perdi meu seio, tornei-me uma mulher
suturada por um tipo de sabedoria.

Ao longo do dia eu me movia como se caminhar não fosse diferente
de cair. Eu possuía os buracos
e o céu crivado. Eu não tinha absolutamente nada.

Mesmo à distância,
eu conseguia ouvir o disco pulando.
O tempo escorria
das mãos. Dos rostos.

Na primeira vez em que um amante traçou
minha cicatriz, acariciou seu rio
e beijou seu sulco, acordei cedo
na manhã seguinte e, silenciosamente, parti.

Trad.: Nelson Santander

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Why I Left the Garden

After I lost my breast, I became a woman
sutured by a kind of knowledge.

All day I moved as if walking was no different
from falling. I owned the potholes
and the riddled sky. I owned nothing at all.

Even from far away,
I could hear the record skipping.
Time was running out  
of hands. Of faces.

The first time a lover traced
my scar, fingered its river  
and kissed its groove, I woke early
the next morning and, quietly, I left.

Helder Moura Pereira – “Eu não tinha nada de felino…”

Eu não tinha nada de felino, tu sabias
que eu não tinha nada de felino.
Nenhum de nós se admirou quando
medi mal a distância e falhei o salto.
Enquanto ia no ar parecia que era
um salto bom, porém houve qualquer
coisa que correu mal e caí com estrondo
no chão. Ninguém riu. Não era caso
para rir. Grande ilusão ir pelo ar a pensar
que o salto podia ser bom, sem eu ter
nada de felino, sem nunca ter treinado,
sem fazer sequer aquecimento, sem
olho para medir distâncias. Saber medir
distâncias é uma coisa muito importante,
pode falhar-se a vida por milímetros.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 13/01/2019

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Sean Borodale – Carta a um latifundiário

Aprendi certa noite o que é ter estrelas
semeadas pela utilidade do corpo.

O sol, ele se fora –
cidades, redes, estradas chegavam a lugar nenhum.

Montei minha capela de lona, deitei-me sob seu céu
e senti o quão profundamente eu era efêmero –
ouvindo o capim branco dos brejos, os cavalos, o ar –.

Naquela noite, ouvi com uma nova aptidão
para o silêncio – unindo-me aos rebanhos de estrelas,
rastros de cascos cruzando o céu sobre sua propriedade –.

E o rangido de um espinho, e o silêncio do feldspato,
e o orvalho se acumulando em caliptras de musgo

conduziam ao meu corpo ligado à terra
sua antítese a todas as outras perdas.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: em uma nota sobre o poema acima, o autor esclareceu: “O camping selvagem é um remanescente frágil e desgastado de um envolvimento mais profundo, e a escrita deste poema é um apelo contra a crença de que paisagens poderosas são exclusivas para os ricos, reservadas para tipos específicos de recreação – caça, tiro – ou como oportunidades passageiras para fotos”.

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Letter to a Land Owner

I learnt one night what it is to have the stars
sown through the utility of the body.

The sun, it went –
cities, networks, roads came to nowhere.

I set up my chapel of the canvas, lay under its sky
and felt how deeply I was momentary –
hearing bog cotton grass, the horses, the air –.

That night I heard with a new aptitude
for the silence – joined with the star herds,
hoof marks crossing the sky over your estate –.

And the creak of a thorn, and the feldspar’s quiet,
and the dew swelling on calyptras of moss

conducted into my earthed body
their antithesis to every other loss.