Yehuda Amichai – Outra Vez o Amor Terminou

Outra vez o amor terminou, como uma boa safra de laranjas,
ou como uma boa temporada de escavações, que extraiu das profundezas
coisas comovidas que buscavam o esquecimento.

Outra vez o amor terminou. E como depois de se demolir
uma casa grande e retirar os escombros, visitamos
o terreno vazio e quadrado e dizemos: como era pequeno
o lugar onde ficava a casa
com tantos andares e tantas pessoas.

E dos vales distantes chega
o som de um trator solitário,
e do passado distante chega o bater
do garfo no prato de porcelana, misturando
e batendo gema de ovo com açúcar para o menino,
e bate e bate.

Paulo Henriques Britto – de “Nenhuma Arte”

Os deuses do acaso dão, a quem nada
lhes pediu, o que um dia levam embora;
e se não foi pedida a coisa dada
não cabe se queixar da perda agora.
Mas não ter tido nunca nada, não
seria bem melhor — ou menos mau?
Mesmo sabendo que uma solidão
completa era o capítulo final,
a anestesia valeria o preço?
(Rememorar o que não foi não dá
em nada. É como enxergar um começo
no que não pode ser senão o fim.
Ontem foi ontem. Amanhã não há.
Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

Konstantinos Kaváfis – A Origem

Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

trad.: Jorge de Sena

Ezra Pound – E os dias…

Walter de la Mare – Os que Ouviam

‘Tem alguém em casa?’ indagou o Viajante
Defronte à porta enluarada;
Seu cavalo no silêncio ruminava o capim
Da forragem fértil e enfolhada:
E uma ave voou para muito além da torre,
Acima de sua cabeça:
E de novo a porta ele outra vez castigou;
‘Tem alguém em casa?’ ele disse.
Mas ninguém desceu para atender o Viajante;
Do peitoril ninguém nem nada
Inclinou-se para olha-lo nos olhos cinzentos,
Onde ele estava, pasmo e mudo.
Somente uma horda vigilante de fantasmas
Que habitava tal casa então
Ficou ouvindo em silêncio, à luz da lua,
A voz vinda do humano chão:
Imóveis à luz do luar sobre a escada escura
Que dava num salão sem nada,
Ouvindo, atentos, num ar revolto e agitado
O apelo que dele emanava.
E sentiu em seu peito como eram diferentes,
Eles quietos, ele exaltado,
Seu cavalo inquieto a pastar na relva escura,
Sob o denso céu estrelado;
De repente então ele bateu na porta, ainda
Mais alto, e a cabeça ergueu: -
‘Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu,
Que fui correto’, esclareceu.
Nem o menor meneio fizeram os que ouviam,
Conquanto as palavras cortantes
Ditas rompessem as sombras da casa silente
Para longe do Viajante:
Sim, eles ouviram seus pés por sobre os estribos,
Sons de ferraduras no chão,
E o sutil silêncio que suavemente ascendeu,
Enquanto os cascos se afastavam.

Trad.: Nelson Santander

Walter de la Mare – The Listeners

‘Is there anybody there?’ said the Traveller,
Knocking on the moonlit door;
And his horse in the silence champed the grasses
Of the forest’s ferny floor:
And a bird flew up out of the turret,
Above the Traveller’s head:
And he smote upon the door again a second time;
‘Is there anybody there?’ he said.
But no one descended to the Traveller;
No head from the leaf-fringed sill
Leaned over and looked into his grey eyes,
Where he stood perplexed and still.
But only a host of phantom listeners
That dwelt in the lone house then
Stood listening in the quiet of the moonlight
To that voice from the world of men:
Stood thronging the faint moonbeams on the dark stair,
That goes down to the empty hall,
Hearkening in an air stirred and shaken
By the lonely Traveller’s call.
And he felt in his heart their strangeness,
Their stillness answering his cry,
While his horse moved, cropping the dark turf,
’Neath the starred and leafy sky;
For he suddenly smote on the door, even
Louder, and lifted his head:—
‘Tell them I came, and no one answered,
That I kept my word,’ he said.
Never the least stir made the listeners,
Though every word he spake
Fell echoing through the shadowiness of the still house
From the one man left awake:
Ay, they heard his foot upon the stirrup,
And the sound of iron on stone,
And how the silence surged softly backward,
When the plunging hoofs were gone.

Source: The Collected Poems of Walter de la Mare (1979)

Sobre o poeta, o poema e a tradução

Walter de la Mare nasceu em 25 de abril de 1873, em Charlton, Kent, Inglaterra, e morreu em 22 de junho de 1956, em Twickenham, Middlesex, Inglaterra. Começou a escrever por volta de 1890 e nunca mais parou. Sua produção foi enorme, incluindo romances, novelas, contos, poemas, antologias, ensaios, críticas e comentários. Pouco conhecido no Brasil, ele é lembrado, principalmente nos países de língua inglesa, como um poeta das primeiras letras e um contador de histórias de fantasmas, o que, segundo seus críticos, desviaria a atenção da busca espiritual, que é o ponto central da escrita.
O poema acima, com cuja tradução eu contribuí, é o seu trabalho mais conhecido. “The Listeners”, com efeito, figura em inúmeras antologias de poemas e foi, durante décadas, o poema preferido dos professores ingleses para ensinar recitação a seus alunos.
No poema, que foi publicado pela primeira vez em “The Listeners, and Others Poems” (1912), um incógnito viajante chega com seu cavalo a uma casa (castelo? Château?) que parece deserta. Ele bate à porta, mas ninguém responde. Ele insiste, mas os fantasmas que aparentemente ocupam a casa escutam mas nunca respondem aos apelos do Viajante. O viajante insiste, mas ninguém responde. Perplexo, ele volta a bater na porta, com mais força ainda, e, levantando a cabeça grita: “Diga-lhes que eu vim, e que ninguém me respondeu, que fui correto”. Ainda sem respostas, o Viajante vai embora. Os fantasmas ouvem o viajante indo embora e o silêncio que retorna quando os cascos do cavalo se afastam.
Ao final da leitura do poema, inúmeras questões surgem, como bem resumiu Braulio Tavares:
“Que lugar é este? Que mansão é esta? Não sabemos. Vemos o desfecho de uma história que não nos foi contada, mas que ressoa dentro de nós como as batidas do cavaleiro noturno ressoam à porta da casa deserta. Por que esse homem voltou? Por que os fantasmas lá dentro se escondem, silenciam, fazem de conta que não o ouvem chamar? Quem é esse Viajante que vem de tão longe, a essa hora, somente para cumprir uma palavra dada?”
A internet está repleta de interpretações acerca do poema. Há de tudo: o visitante queria dizer aos seus fantasmas – pessoas que ele amava, hoje já mortas – que quitou alguma dívida que tinha para com eles em vida. Que, ao contrário, o viajante é quem seria o fantasma que bate insistentemente à porta da casa sem se fazer ouvir pelos habitantes, pessoas vivas como nós (à semelhança do que ocorre no filme “Os Outros”, de Alejandro Amenábar). Em uma viagem psicanalítica, o viajante seria a voz interior de alguém, tentando nos alertar acerca de algum perigo. Há os que digam também que o poema seria uma metáfora para os mistérios com os quais nos defrontamos na vida, seja como “visitantes”, seja como ouvintes. Nós passaríamos nossas vidas fazendo perguntas, sem nem sempre conseguir obter as respostas.
Não importa a mensagem em si – ou importa, mas apenas para quem lê. O que realmente importa é que, do ponto de vista do fazer poético, o poema é extremamente bem construído. Seu mérito está em conseguir evocar com eficiência uma atmosfera fantasmagórica que permanece no espírito do leitor mesmo depois de horas após a leitura do poema. Para tanto, o autor se vale de todos os recursos poéticos disponíveis – aliterações, anáforas, metáforas, metonímias, paradoxos – que emprestam ao poema uma força insuspeita.
Ao decidir traduzi-lo, procurei na internet em busca de alguma tradução, para fins de comparação. Nada encontrei. Pode até ser que exista, mas não logrei êxito em localizar. Talvez pelo fato do nome do autor não estar no panteon dos grandes poetas, ou pela fama que o poema granjeou como literatura escolar (mal comparando, seria o equivalente, no Brasil, a um poema de J G de Araújo Jorge), o fato é que, aparentemente, ninguém se aventurou a traduzi-lo (se alguém conhecer uma tradução, por favor me mande).
Ao fazê-lo, procurei manter o esquema das rimas (ABCB, DEFE, e assim por diante). Na métrica, enquanto o original segue um esquema não muito rígido e alternado que vai de seis a quatorze sílabas, predominando, quanto ao ritmo, os pés anapestos e jambos, optei por manter um esquema rígido na metrificação (para facilitar para mim, é claro), alternando versos bárbaros de treze sílabas com octassilábicos. Quanto ao ritmo, tentei manter, tanto quanto pude, a opção original pelos anapestos e jambos.

Nelson Santander, 02/02/2017

Gale, Cengage Learning – A Study Guide for Walter de la Mare’s “The Listeners”; https://books.google.com.br/books?id=_7Y3DQAAQBAJ&pg=PT13&dq=the+listeners+la+mare+meter&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwjWlLzv_PHRAhUCgZAKHZ2QCPMQ6AEIGjAA#v=onepage&q=the%20listeners%20la%20mare%20meter&f=false (consultado em 02/02/2017)

Tavares, Braulio. Os que Escutavam. Texto publicado no blog Mundo Fantasmo, do escritor Braulio Tavares. Em http://mundofantasmo.blogspot.com.br/search/label/Walter%20de%20la%20Mare (consultado em 02/02/2017)

Affonso Romano de Sant’Anna – Eppur Si Muove

Não se pode calar um homem
Tirem-lhe a voz, restará o nome.
Tirem-lhe o nome
e em nossa boca restará
a sua antiga fome.

Matar, sim, se pode.
Se pode matar um homem.
Mas sua voz, como os peixes,
nada contra a corrente
a procriar verdades novas
na direção contrária à foz.

Mente quem fala que quem cala consente.
Quem cala, às vezes, re-sente,
Por trás dos muros dos dentes,
edifica-se um discurso tranparente.

Um homem não se cala
com um tiro ou mordaça. A ameaça
só faz falar nele
o que nele está latente.

Ninguém cala ninguém,
pois existe o inconsciente.
Só se deixa enganar assim
quem age medievalmente.
Como se faz para calar o vento
quando ele sopra
com a força do pensamento?
Não se pode cassar a palavra a um homem,
como se caçam às feras o pêlo e o chifre
na emboscada das savanas.
Não se pode, como a um pássaro,
aprisionar a voz humana
A gaiola só é prisão
para quem não entende
a liberdade do não.
Se a palavra é uma chave,
que fala de prisão, o silêncio
é uma ave- que canta na escuridão.

A ausência da voz
é, mesmo assim, um discurso.
É um rio vazio, cujas margens sem água
dão notícia de seu curso.

No princípio era o Verbo
– bem se pode interpretar:
no princípio era o Verbo
e o Verbo do silêncio
só fazia verberar.
Na verdade, na verdade vos digo:
mais perturbador que a fala do sábio
é seu sábio silêncio,
con-sentido.

O que fazer de um discurso interrompido?
Hibernou? Secou na boca, contido?
Ah, o silêncio é um discurso invertido,
modo de falar alto
– o proibido.

O silêncio
depois da fala
não é mais inteiro.
Passa a ter duplo sentido.
É como o fruto proibido, comido
não pela boca,
mas pela fome do ouvido.

Se um silêncio é demais,
quando é de dois, geminado,
mais que silêncio
– é perigo,
é uma forma de ruído.

Por isso que o silêncio
de algumas consciências,
quando passa a ser ouvido
não é silêncio
– É estampido.