Jorge Luis Borges — Pátio

Com a tarde
Cansaram-se as duas ou três cores do pátio.
A grande franqueza da lua cheia
Já não entusiasma o seu habitual firmamento.
Hoje que o céu está frisado,
Dirá a crendice que morreu um anjinho.
Pátio, céu canalizado.
O pátio é a janela
por onde Deus olha as almas.
O pátio é o declive
Por onde se derrama o céu na casa.
Serena
A eternidade espera na encruzilhada das estrelas.
Lindo é viver na amizade obscura
De um saguão, de uma aba de telhado e de uma cisterna.

Trad.: Manuel Bandeira

Jorge Luis Borges – Everness

Só uma coisa há. É o esquecimento.
Deus, que salva o metal, salva a escória
E cifra na sua profética memória
as luas que serão e que hão sido.

Já tudo está. Os mil reflexos,
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando nos espelhos
e os que irá deixando ainda.

E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores

E as portas se fecham a teu passo,
Só do outro lado do ocaso
Verás os Arquétipos e Esplendores.

Jorge Luis Borges – Cosmogonia

Nem treva nem caos. A treva
Requer olhos que vêem, como o som.
E o silêncio requer o ouvido,
O espelho, a forma que o povoa.
Nem o espaço nem o tempo. Nem sequer
Uma divindade que premedita
O silêncio anterior à primeira
Noite do tempo, que será infinita.
O grande rio de Heráclito o Escuro
Seu irrevogável curso não há empreendido,
Que do passado flui para o futuro,
Que do esquecimento flui para o esquecimento.
Algo que já padece. Algo que implora.
Depois a história universal. Agora.

Jorge Luis Borges – Aqui. Hoje.

Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.

Trad.: Charles Kiefer

Jorge Luis Borges – São os Rios

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heráclito o Obscuro.
Somos a água, não o diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos aquele grego
que se olha no rio. Seu semblante
muda na água do espelho mutante,
no cristal que muda como o fogo.
Somos o vão rio prefixado,
rumo a seu mar. Pela sombra cercado.
Tudo nos disse adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha sua moeda.
E no entanto há algo que se queda
e no entanto há algo que se queixa.

Trad.: Pepe Escobar

Jorge Luis Borges – As Coisas

A bengala, as moedas, o chaveiro,
a fechadura dócil, as tardias
notas que não lerão os poucos dias
que me restam, o naipe, o tabuleiro,
um livro e dentro dele a emurchecida
violeta, monumento de uma tarde
por certo inesquecível já esquecida,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma aurora ilusória. Quantas coisas,
atlas, limas, umbrais, taças e cravos
nos servem como tácitos escravos –
cegas e estranhamente sigilosas.
Durarão muito mais que nosso olvido,
não saberão quando tivermos ido.

Jorge Luis Borges – Outras Inquisições (excerto)

Negar a sucessão temporal, negar o Eu, negar o universo astronômico, são desesperos aparentes e consolos secretos. Nosso destino não é assustador por ser irreal; é assustador porque é irreversível e ferrenho. O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me devora, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo. O mundo, infelizmente, é real; e eu, infelizmente, sou Borges.

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Jorge Luis Borges – O Suicida

Não ficará na noite uma estrela.
Não ficará a noite.
Morrerei e comigo a suma
Do intolerável universo.
Apagarei as pirâmides, as medalhas,
Os continentes e as caras.
Apagarei a acumulação do passado. 
Farei pó a história, pó o pó.
Estou olhando o último poente.
Ouço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.

Trad.: Antonio Cícero

Jorge Luis Borges – Remorso por qualquer morte

Livre da memória e da esperança,
Ilimitado, abstrato, quase futuro,
O morto não é um morto: é a morte.
Como o Deus dos místicos,
A quem se devem negar todos os predicados,
O morto, onipresentemente alheio,
Não é senão a perdição e a ausência do mundo.
Tudo lhe roubamos,
Não lhe deixamos nem uma cor, nem uma sílaba:
Aqui está o pátio que seus olhos já não compartilham,
Ali a calçada onde espreitava suas esperanças.
Até o que pensamos talvez o pensasse ele também;
Repartimos, como ladrões,
O tesouro das noites e dos dias.

Trad.: Nelson Santander

Remordimiento por cualquier muerte

Libre de la memoria y de la esperanza,
Ilimitado, abstracto, casi futuro,
El muerto no es un muerto: es la muerte.
Como el Dios de los místicos,
De quien deben negarse todos los predicados,
El muerto ubicuamente ajeno
No es sino la perdición y ausencia del mundo.
Todo se lo robamos,
No le dejamos ni un color ni una sílaba:
Aquí está el patio que ya no comparten sus ojos,
Allí la acera donde acechó sus esperanzas.
Hasta lo que pensamos podría estarlo pensando él también;
Nos hemos repartido como ladrones
El caudal de las noches y de los días.

Jorge Luis Borges – Nuvem (1)

Não haverá uma só coisa que não seja
uma nuvem. São nuvens as catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo aplanará. São nuvens a Odisséia
que muda como o mar. Algo há distinto
cada vez que a abrimos. O reflexo
de tua cara já é outro no espelho
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem que se desfaz no poente
é nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte noutra rosa.
És nuvem, és mar, és olvido.
És também aquilo que perdeste.