A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.
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Daniel Faria – Infância
e jogava o pião com Deus
enquanto minha mãe estendia roupa
e o meu pai mendigava o pão
e minha alegria nesse tempo
era muito próxima da dos meninos
e de Deus que ganhava sempre
e não sei quem perdi primeiro:
o pião ou Deus
apenas sei que Deus continua
a jogar com outros meninos
e que no Outono quando saio à praça
nos sentamos e falamos muito
do suave rodopiar das folhas
Manuel António Pina – Sexta-feira Santa
A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.
Anne Sexton – Frágil Fio
Minha fé
é um grande peso
suspenso por um frágil fio,
como a aranha
suspende seu bebê em uma fina teia,
como a videira,
galhos finos e madeira,
sustenta as uvas
como globos oculares,
como muitos anjos
dançam na cabeça de um alfinete.
Deus não precisa
de muito fio para manter-Se lá,
apenas uma veia fina,
com o sangue pulsando,
e um pouco de amor.
Como já se disse:
O amor e a tosse
não podem ser disfarçados.
Nem mesmo uma pequena tosse.
Nem mesmo um pequeno amor.
Então, se você tiver apenas um fino fio,
Deus não se importa.
Ele penetrará em suas mãos
tão facilmente quanto dez centavos costumavam
pagar uma Coca.
Trad.: Nelson Santander
Anne Sexton – Small Wire
My faith
is a great weight
hung on a small wire,
as doth the spider
hang her baby on a thin web,
as doth the vine,
twiggy and wooden,
hold up grapes
like eyeballs,
as many angels
dance on the head of a pin.
God does not need
too much wire to keep Him there,
just a thin vein,
with blood pushing back and forth in it,
and some love.
As it has been said:
Love and a cough
cannot be concealed.
Even a small cough.
Even a small love.
So if you have only a thin wire,
God does not mind.
He will enter your hands
as easily as ten cents used to
bring forth a Coke.
Cassiano Ricardo – A Cidade Confusa
I
A cidade chora
lágrimas elétricas
sobre o corpo anônimo
do eletrocutado.
As figuras tétricas
que residem, mudas,
na parede do templo,
me cercam, na rua.
Como se eu fosse, acaso,
o culpado de algum acontecimento
na noite confusa.
II
O deus unicórnio
que há no escudo do rei,
e que lhe defende
a coroa, me acusa.
Os anjos da guerra
têm rostos cubistas.
Monstros estão nascendo
como animais dourados.
O perfil das coisas
está, agora, sendo
substituído por outro,
doloroso e polêmico.
As ingênuas figuras
dos meus livros de infância
mudaram de rosto…
Como reconhecê-las?
III
Faço das palavras
meu reduto anti-aéreo.
Cada minuto é o fruto
de um difícil relógio.
Toda a fauna do escombro
no chão onde caiu
a estrela voadora
vem chorar no meu ombro.
O habitante da Terra
traz no rosto o estigma
de quem, como o infeliz rei,
decifrou o enigma.
Onde crime mais grave
que alterar-se a silhueta
de uma criatura, de uma
simples borboleta,
não por arte, magia,
ou graça de pintura,
mas por lesão dos seres,
em sua argila obscura.
Quando voltarão
os pombos ao navio?
As palavras ao léxico
hoje tão acerbo?
Deus não fez a linguagem
do homem à sua imagem?
Como no começo,
no fim não será o verbo?
IV
Uma Salomé alva
me traz, em sua salva,
a cabeça de João,
degolado às cinco horas.
Há, em cada sol falso,
uma aurora abolida…
A noite leva o sol,
fica o cadafalso.
Mas, de quem a culpa?
Não o sei; o que sei
é que não fui eu
quem matou os símbolos.
Emil Cioran – Deus é um desespero…
Jim Holt – Por que o Mundo Existe? (excerto)
Já se disse que a pergunta Por que existe algo e não apenas o nada? é tão profunda que só ocorreria a um metafísico, mas também é tão simples que só ocorreria a uma criança. Na época, eu não tinha idade para ser metafísico. Mas por que a pergunta não me ocorreu na infância? Revendo a questão, a resposta era óbvia. Minha curiosidade metafísica natural tinha sido sufocada pela educação religiosa. Desde a mais tenra infância me haviam dito – minha mãe e meu pai, as freiras que foram minhas professoras no ensino fundamental, os monges franciscanos do mosteiro na colina perto da qual morávamos – que Deus criara o mundo e que o criou a partir do nada. Por isso o mundo existia. Por isso eu existia. Mas ficava um pouco vago o motivo pelo qual Deus existia. Ao contrário do mundo finito que Ele criara, Deus era eterno. Também era todo-poderoso e dotado de toda perfeição em grau infinito. Assim, talvez Ele não precisasse de uma explicação para sua existência. Sendo onipotente, podia ter criado sozinho a própria existência. Era, para empregar uma expressão latina, causa sui.
Era essa história que me contavam na infância. Nela ainda acredita a grande maioria das pessoas. Para esses que creem, não existe um “mistério da existência”. Se lhes perguntarmos por que o universo existe, eles dirão que existe porque Deus o fez. E, se lhes perguntarmos por que Deus existe, a resposta dependerá do grau de sofisticação teológica do interlocutor. Ele poderá dizer que Deus é a causa de Si mesmo, que é o fundamento do próprio ser, que Sua existência está contida em Sua própria essência. Ou então poderá dizer que as pessoas que fazem tais perguntas heréticas queimarão no fogo dos infernos.
