Nelson Santander – Dois capítulos perdidos de Memórias Póstumas de Brás Cubas

Capítulo ***

ESCOBAR

À entrada do teatro São Pedro encontrei-me com Escobar, um comerciante do ramo cafeeiro que conheci por intermédio do meu cunhado Cotrim, com quem ele mantinha relações mercantis. Natural de Curitiba, ex-seminarista, Escobar começava a enriquecer na capital – depois de um início tímido de carreira impulsionada com a ajuda financeira aviada pela viúva do ex-Deputado Pedro de Albuquerque Santiago. Não faças mau juízo da viúva, leitor; o próprio Escobar me confessou que ela havia cedido o cabedal a título de empréstimo exclusivamente por ingerência de seu filho único, Bentinho, que vinha de ser o melhor amigo de Escobar desde a época do seminário. Era voz corrente que Escobar tinha um certo talento ou vocação para administrar seus recursos. E os dos outros. Dizia-se no Andaraí que era dado a aventuras amorosas e que frequentava a casa de Bentinho e sua esposa Capitolina com frequência e em horários pouco comuns.

– Escobar, quanto tempo!

– Brás, que satisfação em revê-lo! Estava mesmo precisando falar com você.

Enquanto falava, Escobar me conduziu para um canto reservado sob a marquise do teatro, quase na esquina. Parecia deveras entusiasmado, o que me causou estranheza, pois sempre o tivera por reservado e pouco afeito ao espalhafato.

– Fiquei sabendo que você alugou uma casinha na Gamboa, perguntou.

Tive um sobressalto. Então já se comentava na cidade acerca do lugar que eu reservara para meus encontros com Virgília? Se Escobar estava sabendo era possível que a história também já tivesse chegado aos ouvidos do Lobo Neves. Depois do episódio da carta anônima, Virgília me disse que o marido andava muito desconfiado. Será que ouvira algo da Gamboa?

– Na verdade, a casa não me pertence, respondi; é da dona Plácida, uma senhora que foi agregada em casa de uma velha amiga. Apenas fiz um pequeno empréstimo e subscrevi umas promissórias para que a pobre pudesse dar a entrada.

– Sei, respondeu ele com um meio sorriso; estou eu também à procura de uma casinha como essa para acomodar a criada de uma amiga…

As palavras cuidadosamente escolhidas associadas ao olhar malicioso que ele me lançou ao dize-las não deixavam dúvidas: Escobar buscava travar aquela espécie de relação de cumplicidade que às vezes há entre dois homens que se encontram na mesma situação de ilicitude matrimonial. Eu não tinha a menor vontade de manter tal nível de vínculo com aquele sujeito. Não confiava nele. Um homem que se prestava ao papel de comborço do melhor amigo não era uma pessoa com quem se podia dividir segredos. Para mim Escobar possuía um caráter de alguém perfeitamente capaz de enviar um bilhete anônimo ao Lobo Neves só para ver o teatro em chamas.

– Foi dona Plácida quem fechou pessoalmente o negócio, respondi de forma seca, começando a andar em direção à entrada do teatro.

– Que pena, respondeu ele, olhando divertidamente para mim enquanto me acompanhava; eu tenho uma certa pressa em encontrar algo. A criada a quem pretendo auxiliar não é casada e está no início de uma gravidez. Quero acomoda-la antes que o estado dela se dê a mostrar. Minha amiga não quer escândalos.

Então era verdade! Não havia criada nenhuma. Corria o boato de que dona Capitolina estava grávida. E que Bentinho não era o pai… Não sabia o que pensar daquilo. Embora também mantivesse um consórcio com uma mulher casada, começava a desenvolver, sem entender bem por que, um sentimento desconfortável de aversão por Escobar. Não me ocorria o motivo exato daquela sensação. Pensei a princípio que minhas fidúcias se deviam a um desejo próprio por uma espécie de reserva de mercado no ramo dos amores ilícitos. Logo acudi que tal vaidade era uma impossibilidade: provavelmente havia centenas de homens na corte em situação análoga à minha. Percebi logo que meu asco por Escobar na verdade derivava de um certo ciúme projetivo em relação à situação dos homens traídos em geral. Com efeito, o leitor pode não acreditar mas, às vezes, eu fazia um exercício de projeção mental, colocando-me no lugar do Lobo Neves – embora raramente e despido de remorso. E, conquanto não me identificasse em nada com o Bentinho – um sujeito fechado, mal-humorado e desconfiado com fama de sensível – o que estava acontecendo com ele não me dava nenhuma satisfação particular. Ademais, Escobar se me aparecia como um reflexo mais limitado intelectualmente e menos pretensioso de mim mesmo – e não era uma visão muito bonita de se ver.

– Tenho que entrar, a peça já deve começar, falei começando a me sentir impaciente; pedirei a Dona Plácida que pergunte nas redondezas se alguém sabe de alguma casa para vender ou alugar.

Ele pareceu se lembrar de algo. Disse-me então que estava indo à casa de um amigo a fim de debater sobre um interdito proibitório – calculei logo que o amigo fosse o Bentinho. De saída, pediu-me discrição sobre suas intenções em relação à casa, “para evitar maledicências desnecessárias”. Redargui que não se preocupasse.

Despediu-se e já começava a se retirar, mas se voltou para mim novamente:

– Esquecia-me de contar-lhe; dia desses, em São Cristóvão, encontrei com uma amiga em comum, Virgília…

Olhei-o desconfiado. Ele continuou:

– Ela ia triste, parece que o marido fora obrigado a renunciar à nomeação como presidente de província. Disse-me que você seria Secretário, é verdade?

– Ainda estava avaliando a conveniência…

– Tomamos um café, continuou ele. Ela é uma companhia muito agradável. E que mulher espetacular! Que magníficos braços ela tem! Mas desconfio de uma coisa…

– Do quê?

– Acho que ela não está feliz no casamento, respondeu. Vendo meu olhar desconfiado ele continuou: Como eu sei? Como você sabe, mulheres não costumam abordar certos assuntos, especialmente com homens casados. Mas naquele dia no café Virgília estava particularmente eloquente.

Chegamos a uma das portas de entrada, onde paramos por um momento. Escobar trazia no rosto uma expressão divertida e gaiata. Segurava de leve no meu braço para me impedir de fugir.

– Sabe que ela até me fez uma confissão bastante indiscreta?

– Sim?, acudi eu, já alarmado.

– Disse-me que não tinha um casamento satisfatório, foi sua resposta. Confesso que não me incomodaria em ajuda-la com alguns dos problemas dela…

Tenta imaginar tu, leitor, o pasmo que experimentei! Não era para mim nenhuma surpresa a indiscrição e lubricidade do Escobar. Mas Virgília falando de suas insatisfações matrimoniais com um homem reconhecido por sua infidelidade à esposa e ao melhor amigo? Ela sequer havia-me dito que tinha se encontrado com Escobar. Sobre o que mais teriam conversado os dois? Teria sido ela quem lhe contou sobre a Gamboa? As garras do ciúme enterraram-se-me no coração; sentia-me como uma espécie de Lobo Neves de véspera. Súbito me ocorreu o óbvio: se ela trai o marido por que não haveria também de trair o próprio amante?

– Se eu fosse você, não me metia com ela, respondi com rispidez; o marido tem fama de valente e já me confessou que não hesitaria em atirar em quem se aproximar da esposa, que ele idolatra.

Escobar sorriu de leve. Percebi por aquele esgar malicioso que ele sabia de tudo: da traição de Virgília e de minha posição privilegiada nesse evento doméstico. De minhas inseguranças com o nosso relacionamento. E de que tudo o que eu podia fazer era inventar essa mentira disparatada sobre o Lobo Neves que apenas no nome carregava algo que vagamente evocava a ferocidade.

Não sei se explico o ódio que senti contra Escobar naquele momento. Desejei que ele se afogasse na praia do Flamengo, onde costumava nadar quase todos os dias, mesmo com o mar bravio.

– Vou levar isso em conta, respondeu – ainda sorrindo daquele jeito velhaco – e se despediu mais uma vez.

Capítulo ****

UM CUBAS! (II)

Fiquei ali, à porta do teatro, sem ânimo para entrar mas com nenhuma vontade de ir embora. Recordava-me a conversa que tivera com Virgília àquela tarde, quando ela me contou sobre a carta anônima que o marido recebera dias antes alertando-o contra mim. Lembrei o gesto de recuo que ela fez quando, à saída, pousei-lhe um beijo à testa. Era evidente que já se cansara de mim. Pensei também no Bentinho, destinado a criar como seu, sem jamais o saber, o filho que, a se dar crédito ao que dizia o vulgo, o amigo fizera em sua esposa. Um turbilhão de sentimentos mal-costurados bulia dentro mim. Ciúme, desesperança, raiva e autocomiseração formavam um todo indigesto que me mantinha prostrado à entrada do teatro.

Enquanto pensava em tais coisas, pude enxergar num vislumbre, através da porta aberta, Nhá-loló, acompanhada de seu pai, o Damasceno. Lembrou-me o dia em que a conheci, naquele jantar em casa de Sabina, de como seus olhos não se despegaram de mim nem por um instante naquela noite. Próximos a eles, vi também um deputado conhecido, ao lado da esposa, filha do ministro da Justiça. Estavam rodeados por um pequeno ajuntamento de sabujos (Damasceno era um deles). A imagem dos rapapés suscitou em mim a nostalgia daquele velho desvanecimento que me acompanhou até a morte e espertou novamente aquela paixão pela notoriedade que, em última instância, acabaria me matando.

Senti meu ânimo se elevar e até esqueci um instante de Virgília quando finalmente decidi entrar no teatro. Quais eram meus reais sentimentos por ela naquela época? Ainda a amaria? Mesmo hoje, aqui na terceira margem do rio, não saberia dizê-lo. Mas a maneira como meu ânimo retornou assim que avistei Nhá-loló sugeria ao menos que minha atenção já não se depositava exclusivamente em Virgília.

Por que me aborrecera então com as insinuações de Escobar? Obviamente, como homem, não gostava de pensar na ideia de ser derrotado na disputa pelo amor de uma mulher, ainda mais porque não poderia recorrer a soluções drásticas – como desafiar o peralta para um duelo – uma vez que a mulher em questão obviamente não me pertencia. O amor-próprio, nessas horas, dilata-se a ponto do apego e do despeito serem confundidos com ciúme. Não o confirmam as Escrituras? “Vaidade de vaidades, tudo é vaidade”

Mas o que me aborrecia mesmo era o fascínio que um sujeito tão vulgar e mal-nascido como Escobar parecia despertar nas mulheres. Como então Virgília estava cogitando substituir um puro-sangue por um matungo? Ocorreu-me que Virgília podia estar repetindo o lance que resultara no xeque-mate de minhas pretensões matrimoniais anos atrás, quando me substituíra, sem maiores explicações, pelo Lobo Neves. A diferença é que então éramos todos solteiros e a preterição de um pretendente por outro não passava de um capricho feminino socialmente aceitável. Virgília estava agora casada e eu era seu amante. Ao aceitar a possibilidade de me substituir por outro, Virgília demonstrava querer explorar outras vias escusas além daquelas que vínhamos percorrendo. E olha que eu não negava à sua atitude um certo espírito empreendedor; só não me agradava ser eu o negócio a ser sucedido para que ela alcançasse a glória…

Veio-me à memória a expressão de indignação que meu pai bradou quando Virgília me substituiu por Lobo Neves:

– Um Cubas!

Aquela frase penetrou em meu pensamento e continuei repetindo-a mentalmente, enquanto procurava sofregamente o camarote de Nhá-loló.

– Um Cubas!

Convém intercalar o presente capítulo e o anterior entre a terceira e a quarta oração do capítulo XCVIII.

NOTAS SOBRE ESSA NARRATIVA

Dia desses, em uma página do Facebook, alguém que eu não conhecia nem de vista nem de chapéu postou um trecho curto propondo um exercício imaginativo: e se Machado tivesse promovido um encontro entre Capitu e Brás Cubas?
Comecei a tentar imaginar como seria, mas me ocorreu algo melhor: e se o encontro fosse entre Brás e Escobar? A dinâmica entre o bem nascido Brás, típico representante da aristocracia oitocentista e o arrivista Escobar, arquétipo da burguesia da época (melhor descrita no perfil que Brás traça de seu cunhado Cotrim) me pareceu que poderia resultar em uma cena mais interessante.
Ao iniciar minha narrativa de cara deparei-me com uma dificuldade. Os fatos narrados em Memórias Póstumas de Brás Cubas ocorrem entre 1805 e 1869, respectivamente as datas do nascimento e da morte de Brás. Não é possível precisar por quanto tempo e em que período Brás e Virgília viveram o seu relacionamento ilícito, pois Machado não quis dar datas exatas. Sabemos, todavia, que Brás se encontrou com Virgília uma vez mais, anos depois do término do relacionamento de ambos, em 1855 (Capítulo 130). Sabemos também que, àquela altura, ambos já estavam na fase de madureza pela descrição que Brás faz de sua ex-amante (“A primeira vez que pude falar a Virgília, depois da presidência, foi num baile em 1855.
Trazia um soberbo vestido de gorgorão azul, e ostentava às luzes o mesmo par de
ombros de outro tempo. Não era a frescura da primeira idade; ao contrário; mas ainda estava formosa de uma formosura outoniça, realçada pela noite.”). E também porque, na sequência, ele dedica um capítulo todo aos seus cinquenta anos de idade (Capítulo 134)
Já a história de ciúmes de Bentinho ocorre mais tarde: Machado não aponta a data de seu nascimento, mas nos conta que, em 1857, ele tinha 15 anos (de onde se presume que ele tenha nascido em 1842 – vide Capítulo II). Escobar, por sua vez, era três anos mais velho do que ele (vide Capítulo LVI) , tendo nascido, portanto, em 1839. Morreu em 1871 (Capítulo CXXII), aos 32 anos de idade. Pela leitura da obra, cogita-se que a suposta traição de Capitu não ocorreu antes do casamento dela com Bentinho, que se deu em 1865 (Capítulo CI). Assim, o suposto caso de adultério, se ocorreu, se deu entre 1865 e 1871, quando Virgília já teria mais de 60 anos. Portanto, cronologicamente falando, seria impossível que Escobar, por volta de seus 29, 30 anos de idade, pudesse ter algum interesse sexual por Virgília…
Não importa, a riqueza dessas criaturas de Machado de Assis é tão grande que me vi obrigado a cometer a heresia de antecipar os eventos narrados em Dom Casmurro para ajusta-los cronologicamente aos das Memórias Póstumas.
Do ponto de vista do Memórias Póstumas de Brás Cubas, o capítulo que imaginei se passa logo após o aborto espontâneo que Virgília sofrera e o recebimento de uma carta anônima por Lobo Neves entregando o caso amoroso de sua esposa com Brás. O caso dos dois está prestes a terminar, mas naquele momento os amantes não sabem disso. Não obstante, ao final do capítulo XCVI (“A Carta Anônima”), Brás relata que ao beijar Virgília na testa esta recuou, “como se fosse um beijo de defunto”. No capítulo seguinte, ele esclarece: “Há aí, no breve intervalo, entre a boca e a testa antes do beijo e depois do beijo, há aí largo espaço para muita coisa: a contração de um ressentimento, — a ruga da desconfiança, — ou enfim o nariz pálido e sonolento da saciedade… “
Em relação a Dom Casmurro, em minha narrativa Brás encontra Escobar logo após a gravidez de Capitu. Àquela altura do romance, Bentinho já havia iniciado sua estratégia de descrever fatos que, no clímax de suas memórias, mostrar-se-iam como verdadeiras peças acusatórias da traição e supostas provas do relacionamento entre Capitu e Escobar. São assim os Capítulo CV, CVI e CVIII. Em cada um desses capítulos, Bentinho conta uma passagem no qual fica subentendido de forma muito sutil o relacionamento de sua esposa com seu melhor amigo (Capitu só concorda em deixar de expor seus braços em eventos sociais depois que Bentinho diz que Escobar aprovava seu desagrado com esse fato; Capitu está com o olhar perdido no mar, o que leva a Bentinho a desconfiar de algo; na sequência, ela diz que estava “somando uns dinheiros para descobrir certa parcela que não achava”, o que, no final, leva à revelação de que Escobar fazia corretagens com as economias de Capitu e que naquele dia estivera com ela antes de Bentinho chegar; etc.)
Finalmente, o ponto de contato entre ambos não podia deixar de ser o Cotrim, cunhado de Brás Cubas, um self-made man na área do comércio, como Escobar.
Acho que não preciso mencionar que minha narrativa é apenas uma brincadeira pseudoliterária. Nem eu sou escritor e ainda que fosse não teria talento suficiente para reproduzir ou sequer imitar o estilo machadiano. Ninguém o tem, aliás. Na literatura latino-americana, Machado é incomparável. Coloca no bolso escritores como Guimarães Rosa, Borges ou Gabriel García Márquez. Na verdade, só vamos encontrar quem o ombreie na mais alta e estrita esfera da literatura mundial – falo de gente como Shakespeare, Dostoiévski, Faulkner.
Mas, como diria Quincas Borba, “a inveja não é senão uma admiração que luta”… Assim, ao emular um ou dois capítulos das Memórias Póstumas estou apenas tentando demonstrar empiricamente um dos princípios humanitas mais bem elaborados.
Mas tem mais: se a inveja é uma virtude, como queria Quincas Borba, invejar o maior de todos – a ponto de querer interpolar alguns capítulos desnecessários em sua obra-prima – é sublime. Aliás, tenha ou não gostado de minha narrativa, você já a leu. Se gostou, ótimo; se não, paciência. Não é o fim do mundo. “Verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”, diria Quincas Borba.
Em 20/06/2018

Nelson Santander – Philip Roth

Morreu Philip Roth, meu último grande herói literário. Sua vasta bibliografia explora uma gama enorme de temas, mas a faceta que mais me impressionou foi a que ele abordou em seus últimos livros: a questão da velhice. A leitura de “Homem Comum” – principal obra de Roth sobre o tema – há cerca de 8 anos, quando ainda me considerava jovem demais para pensar nesse assunto, foi um choque, seja pela maneira crua e realista com que ele abordava o tema, seja por me despertar para o fato de que em breve eu mesmo estaria mergulhado nesse universo que não tem nada de ficcional. Uma coisa é certa: sua morte, aos 85, põe fim ao fardo que ele considerava esta fase da vida. Que ele consiga, ao menos, descansar em paz.

“(…) Durante algumas horas depois dos três telefonemas seguidos — e depois da banalidade e inutilidade previsíveis daquela tentativa de levantar ânimos, de fazer reviver o velho esprit de corps relembrando episódios das vidas de seus colegas, tentando encontrar coisas para dizer que pudessem animar os desesperançados e fazê-los recuar da beira do abismo —, o que ele queria fazer era não apenas ligar para sua filha, que encontrou no hospital com Phoebe, mas também reanimar a si próprio telefonando para seus pais e conversando com eles. No entanto, o que ele aprendera não era nada em comparação com a desgraça inevitável que é o final da vida. Se fosse tomar conhecimento do sofrimento mortal de cada homem e mulher que conhecera durante todos os seus anos de vida profissional, da história dolorosa de arrependimento, perda e estoicismo de cada um, de medo, pânico, isolamento e terror, se soubesse que cada coisa que lhes pertencera do modo mais visceral lhes fora arrancada e como estavam sistematicamente sendo destruídos, teria de ficar ao telefone o dia todo, e mais a noite toda, fazendo pelo menos mais umas cem ligações. A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre.(…)” (trecho de “Homem Comum”, Companhia das Letras, Trad. Paulo Henriques Britto, p. 74)

Pós-Tudo (Augusto de Campos) e Postudo (Nelson Santander)

Augusto de Campos – Pós-Tudo:

Augusto de Campos - Pós-Tudo

Nelson Santander – Postudo

Nelson Santander - Postudo

 

Nelson Santander – Postudo (pós-“Pós-Tudo”, Augusto de Campos e Os Hawaianos)

Nelson Santander - Postudo

Nelson Santander – Que a Terra lhe seja Leve

Quando me deparei pela primeira vez com o trabalho de Belchior, a melhor impressão que tive sobre ele não foi em razão da qualidade intrínseca de suas composições. Corriam os anos 80, e, como músico amador que era, eu estava mais ligado no trabalho realizado pela geração pop daquela época – Legião, Titãs, Paralamas, Ira!, etc. Da MPB, apreciava quase que somente Caetano e Chico.

Foi então que caiu em minhas mãos uma fita cassete pirata de um dos últimos álbuns lançados pelo artista na época. Pertencia ao amigo Arlindo Mellão, fã do cearense e de gente como Sá & Guarabyra, 14 Bis e Geraldo Azevedo.

O álbum, até hoje relativamente raro, chamava-se “Um Show: 10 Anos de Sucesso”, e continha nove das principais canções que ele havia composto até então em seus poucos mais de 10 anos de carreira, em arranjos nos quais se destacavam os teclados de Raposo e a guitarra de Sérgio Zurawski – bem ao estilo dos anos 80 – que modernizavam as canções dando-lhes nova roupagem (ainda considero esses arranjos os melhores de todas as versões feitas por ele).

Trazia canções como:

“Paralelas” (sucesso na voz de Vanusa, com o poderoso refrão: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu / Copacabana, esta semana, o mar sou eu / Como é perversa a juventude do meu coração / Que só entende o que é cruel, o que é paixão”);

“Comentário a respeito de John” (“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho / Deixem que eu decido a minha vida. / Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol / Porque bate lá o meu coração”);

“Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais” (clássicos absolutos na voz de Elis);

“A Palo Seco” (“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava / De olhos abertos lhe direi: / Amigo, eu me desesperava…”);

“Galos, Noites e Quintais” e o seu maior sucesso (junto com “Apenas um Rapaz Latino Americano”): “Medo de Avião”.

Na época, eu tinha apenas 18 anos. E estava apaixonado por aquela que viria a se tornar minha esposa. Precisava desesperadamente de uma desculpa para encontrar o objeto de meus desejos e pareceu uma boa ideia ir até a casa do Mellão à noite para pedir-lhe a fita de empréstimo. Na volta, eu poderia encontrar com ela – o que acabou acontecendo.

No dia seguinte, coloquei a fita para ouvir. E foi uma revelação. Belas melodias e letras absurdamente boas que eram uma mistura de poesia, erudição e ironia. Belchior sabia compor. E como. A maioria das canções acima mencionadas são clássicos absolutos da MPB e não envelheceram nada desde que foram escritas.

A descrição acre que ele faz da juventude de sua época, em “Como Nossos Pais”, poderia ser aplicada aos jovens de hoje, sem mexer em nenhuma linha da canção. “Velha Roupa Colorida” permanece como uma das melhores canções já escritas sobre a passagem do tempo:

(…) Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
“Assum Preto, ‘passo’ preto, black bird, o que se faz?”
E raven, never, raven, never, never, never, never, never, raven,
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“Tudo já ficou atrás”
E never, never, never, never, never, never, raven
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“O passado nunca mais…”

Contudo, naquela época, a música que mais me impactou não foi nenhuma dessas. Eu tinha apenas 18 anos e estava apaixonado pela primeira vez na vida. Por isso, a canção que mais me marcou daquela fita foi uma verdadeira ode ao amor erótico chamada “Divina Comédia Humana”:

“(…) Aí um analista amigo meu
Me disse que desse jeito
Não vou viver satisfeito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um transa sensual

Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo de novo e dizendo sim! à paixão, morando na filosofia

Quero gozar no seu céu,
Pode ser no seu inferno
Viver a divina comédia humana
Onde nada é eterno (…)”

A habilidade de Belchior em traduzir sentimentos complexos em melodias e letras era extraordinária. Amor, sexo, paixão, tempo, medo. Morte. Todos esses temas foram explorados com maestria pelo artista. Esse último e mais assustador, enfim, o alcançou e o derrotou no dia de ontem.

Fica um buraco enorme na música brasileira, até porque o mercado da música não tem conseguido repor compositores com a mesma qualidade de um Belchior, de um Chico ou de um Caetano. Cada vez que morre um gênio desses, ficamos mais órfãos de artistas com a capacidade que eles têm de ler e reinterpretar nosso tempo através de seus trabalhos.

Mas para mim não é nem isso o que mais incomoda. Como tudo na vida, o que mais nos afeta é aquilo que nos diz mais de perto. Minha dor é perceber que, com a morte de Belchior, vai também – simbolicamente enterrado com o artista – um pedaço de minha vida. Aquele pedaço mais febril, intenso, irracional e louco a que chamamos juventude.

Diante desta perda, desesperadamente eu grito em português, recorrendo aos conselhos do compositor, que me responde – não sem uma pitada de ironia – através de “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum”:

– Que a terra lhe seja leve…

Nelson Santander – Limiar

LIMIAR

A maior parte de sua existência é mais
sorte do que você gostaria de admitir.
Woody Allen

quase
que
por
acaso

na casa
dos quarenta
e nove:

já é
quase
o ocaso

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Este poema é comentado e interpretado em profundidade no podcast Singularidade Poética.
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Nelson Santander – Saindo do Armário da Sacristia

Dias atrás, jantávamos, eu e minha esposa, com um casal de amigos. O cardápio, caprichosamente preparado por nosso anfitrião, contou com uma entrada de queijos diversos, patês, pães e pelo menos cinco tipos de azeites especiais. O prato principal foi um risoto diferente de tudo o que eu já havia experimentado antes. Tudo regado a vinho. Muito vinho. Na verdade, encerramos a noite após acabar com três garrafas e meio de uma carta que contava com dois belos chilenos e dois exemplares do melhor vinho brasileiro.
A conversa estava agradável e, em um dado momento, derivou para assuntos envolvendo o sobrenatural. Nosso anfitrião – segundo ele mesmo confessa – morre de medo de fantasmas, espíritos ou qualquer tipo de manifestação do “outro mundo”. Morrer de medo é pouco: ele diz que literalmente se borra todo quando imagina estar diante de uma manifestação sobrenatural – e contou várias histórias supostamente inexplicáveis que teria presenciado. Depois, como era de se esperar, nossos anfitriões quiseram saber minha opinião sobre o assunto. Costumo ser discreto sobre esses temas, para evitar ferir susceptibilidades. Mas o papo camarada e, principalmente, a quantidade de vinho que havia mandado goela abaixo me destravou a língua. Expliquei que não acredito em manifestações sobrenaturais. Naturalmente, o assunto evoluiu para questões religiosas e, mais uma vez, tive que (ou quis) ser sincero quando nossa anfitriã me perguntou:
– Mas e quando a gente morre, o que você acha que acontece?
– Nada. Simplesmente acaba. Temos apenas esta vida. Morreu, acabou.
Meus amigos são teístas: ele, cristão; ela eu ainda não descobri em que acredita, mas parece que em algo ligado ao espiritismo, pois em um dado momento deixou transparecer que acredita na reencarnação. Obviamente eles não se contentaram com a minha resposta e o assunto se estendeu por mais uns 20 ou 30 minutos, envolvendo todos os temas que são abordados quando teístas debatem respeitosamente com céticos (a existência ou não de Deus; a santidade de Cristo; a própria existência histórica de Cristo; se existem almas, espíritos e fantasmas; como as pirâmides foram construídas(!), etc.). Ao final, meu anfitrião, falando entre brincando e sério, me disse algo assim:
– Putz, Nelson. As coisas que você disse deram um tilt aqui na minha cabeça. Acho que nem vou dormir hoje…
Respondi que ele deveria manter a sua crença, se isso o fazia feliz. E a conversa terminou aí.
Não sei se ele realmente conseguiu dormir naquela noite. Espero realmente que sim. Eu ficaria muito consternado em saber que, de alguma maneira, afetei negativamente a vida de alguém apenas por emitir opiniões pessoais sobre temas que tocam tão profundamente as pessoas.
Enfim, é isso: sou um cético em relação a questões sobrenaturais e religiosas. Ou ateu, como queiram. E não é de hoje. Obviamente, como todo brasileiro, fui um cristão (católico) exemplar na infância até a adolescência. Fui batizado, crismado e participei ativamente de uma comunidade de jovens católicos. Tocava violão no coro da Igreja São Benedito, em Avaré. No entanto, à medida que, por curiosidade própria e muita leitura, aprimorava meus conhecimentos sobre ciência, história, literatura, filosofia, etc., “os velhos mitos pretéritos” – como diria Drummond – que eu um dia abraçara foram sendo abandonados, um a um. Primeiramente, as crenças mais frágeis (como aquelas no poder das cartomantes e benzedeiras, em tarô, em sonhos proféticos, na parapsicologia, etc.). Depois, aquelas que diziam mais de perto acerca dos dogmas de minha religião (a existência de Satanás; o nascimento virginal de Jesus; os milagres que ele supostamente realizou; a ressurreição; etc.). Finalmente, lá por volta dos meus 15 ou 16 anos, encarei o mito final: Deus. Não houve uma grande batalha entre a fé e a razão. Nada disso. Quando faceei uma das questões mais fundamentais da humanidade – a existência ou não de um ser todo poderoso que criou todo o universo –, eu já havia chegado a um ponto em que não havia mais como manter a crença na existência de tal divindade.
Abandonei minha fé com o alívio de quem carregou um fardo muito pesado por muito tempo. Sim, alívio. Sim, um fardo. No momento em que concluí que tudo não passava de um grande engodo, me senti livre, solto, em paz. Livre do medo do sobrenatural; livre do medo de nunca saber se seria ou não acolhido em “Sua morada” pelo fato de haver sonegado um wafer da Tostines do meu irmão ou porque havia olhado as pernas de uma colega de escola repleto de pensamentos não muito cristãos; em paz por não precisar mais tentar conciliar o Deus infinitamente bondoso descrito em minha religião com a realidade nua de um mundo cruel que todos os dias se apresentava aos meus sentidos: o mal que não poupava culpados ou inocentes; a total ausência de justiça no mundo; a aleatoriedade com que justos e injustos eram “punidos”; a existência de lugares como Auschwitz ou a persistência da fome na Somália. A questão “como Deus permitia um mundo como esse?” foi definitivamente solucionada para mim quando encarei a verdade da resposta mais simples de todas: não há Deus nenhum.
Não, não houve mágoas na despedida. Minha descrença não nasceu de uma revolta qualquer contra Deus (apesar de todo o espanto que eu experimentava diante das questões acima mencionadas). Ela foi fruto de todo o conhecimento que deliberadamente adquiri somado a uma observação aguda do que acontecia (e acontece) no mundo.
Obviamente, no exato momento em que inúmeros pontos de interrogação foram solucionados, várias outras novas questões surgiram como consequência lógica do fato de não existir um deus sobrepairando o cosmos – e confesso que ainda hoje não tenho a resposta para todas elas. Como surgiu o universo? Qual o sentido da vida? Se não há um Deus vigiando meus passos, se não há um paraíso celeste a ser alcançado se eu só fizer o bem e me arrepender dos pecados, o que me impede de fazer o mal? O que vem depois da morte?
Não sei como surgiu o universo. Ninguém o sabe ainda. Mas a ciência tem avançado bastante sobre o tema e tenho certeza de que logo, logo teremos uma resposta. E mesmo que nunca tenhamos, a colocação de um deus na origem de tudo é tão arbitrária quanto a colocação de qualquer outra coisa no lugar (um buraco negro, por exemplo), sem comprovação fática de tais afirmações.
Qual o sentido da vida? Penso que não há nenhum sentido predeterminado para a existência das pessoas. Cada um de nós deve encontrar o sentido que deve emprestar à sua existência (e, não, isso não é algo fácil de se alcançar) e fazer o melhor que puder com isso.
Por que eu não faço o mal? Pode parecer estranho para algumas pessoas, mas a religião NÃO detém a exclusividade dos padrões morais. Fazer o certo ao invés do errado, o bem ao invés do mal, está muito mais ligado a regras de bom senso que se impõem ao convívio em sociedade do que ao atendimento a certos ditames bíblicos e religiosos. Aliás, quando a religião se arvora em ditar regras morais, o caldo entorna – principalmente quando ela se julga a verdadeira intérprete das vontades de deus aqui na terra. Para ficar apenas em um exemplo, basta analisar como quase todas as religiões tratam os homossexuais. A biologia, a neurociência e a sociedade já avançaram o suficiente para concluir que a homossexualidade é apenas uma expressão da sexualidade humana. Nada além disso. Não é uma doença. E não é um pecado, como quer fazer crer quase que a totalidade de todas as religiões. Mesmo as mais “generosas” delas, como a igreja católica, quando o assunto é homossexualidade costumam manifestar sua contrariedade em frases cheias de condescendência como “ame o pecador, odeie o pecado”. E o fazem com um ar de superioridade moral que faria o Cristo da fábula cristã corar de vergonha…
Sim, as religiões, de uma forma geral, tratam a homossexualidade como um pecado e transformam um grupo enorme de pessoas (segundo estatísticas, cerca de 10% da população mundial) em seres humanos de segunda classe, fadados a sublimar seus desejos ou, se professarem a fé que os condena, a viver com a sensação de estar pecando eternamente, em pensamentos ou atos. Os reflexos nas vidas destas pessoas são incalculáveis para nós, heterossexuais: expulsão ou rejeição da família, virar vítima de preconceito ou de chacota, dificuldade em arranjar emprego e a obrigação de se manter no armário para não chocar familiares e amigos são apenas alguns dos desafios que esses seres humanos têm que enfrentar em seu dia-a-dia apenas pelo fato de sentirem atração por alguém do mesmo sexo.
Então, respondendo à pergunta: eu procuro ter uma vida honesta e digna, e procuro tratar meus semelhantes e dessemelhantes da maneira como gostaria de ser tratado (antes que alguém diga que foi Cristo quem disse isso eu respondo: não, foi Buda, quinhentos anos antes dele) porque isso é a coisa certa a fazer. Porque assim fui educado. E porque, ética e moralmente, essa é a obrigação de todo ser humano. Aliás, existe todo um sistema filosófico, denominado Humanismo Secular, em que se sustenta minha postura. Se alguém tiver curiosidade é só dar uma olhada na Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Humanismo_secular
A essa altura alguém pode estar-se perguntando o porquê de só agora eu ter resolvido “sair do armário” da sacristia. Por que revelar minha descrença?
Eu poderia responder que é porque me cansei de omitir esse aspecto de minha vida, o que sempre me causa a sensação de não estar sendo totalmente sincero com as pessoas – e que talvez até fizesse a diferença para algumas delas. Não sei. Como se sabe, há quem baseie toda sua vida em suas crenças pessoais e a algumas destas pessoas repugna a amizade de um ateu. Sob esse aspecto, sair do armário me ajudaria a filtrar certas amizades: obviamente, eu não quero que gostem de mim por aquilo em que creio ou não creio, mas por quem sou.
Poderia dizer também que abri o jogo porque estou de saco cheio de certas coisas que estão acontecendo no mundo e no Brasil por culpa exclusiva da religião e de seus preceptores. E estou mesmo. Puto. É frustrante, em pleno século XXI, ver um grupo de pessoas que se julgam “fiéis” a um deus vingativo e obtuso, e que, em nome desta crença, praticam as maiores barbaridades e os maiores crimes contra a humanidade de que se tem notícia desde a inquisição católica. O Estado Islâmico é o exemplo mais acabado do nível de maldade e de corrupção humana a que a fé cega pode nos conduzir.
E é triste, frustrante, assistir impotente o avanço das correntes cristãs mais conservadoras na vida dos brasileiros (crentes ou não) e na política nacional. Líderes de diversas denominações neopentecostais – pastores que se tornaram milionários à custa de pessoas absolutamente carentes de tudo e que doam aos seus templos o pouco que têm na esperança de obter uma vida melhor com a ajuda de Deus (que, no caso, ajuda apenas os pastores dessas seitas caça-níquel) – gradativamente ocupam espaços públicos, como redes de televisão, teatros e cinemas falidos e o Congresso Nacional, e os usam para tentar impor a todos – inclusive àqueles que não compartilham de suas crenças – uma moral torta e atrasada, como que querendo levar o Brasil de volta à Idade Média. Pautas progressistas vão sendo gradativamente abandonadas em detrimento da adoção de medidas que parecem saídas de um livro de Nathaniel Hawthorne: redução da maioridade penal; alteração do estatuto do desarmamento; alteração do estatuto da família de modo a impedir o reconhecimento de núcleos familiares que não sejam aqueles constituídos de homem e mulher; a aprovação de um “Estatuto do Nascituro”, que impedirá o aborto até mesmo em caso de estupro; a definição do aborto como crime hediondo (!); criminalização da heterofobia (seja lá o que isso signifique); a instituição do Dia do Orgulho Hétero (!!!); etc. É desolador.
Mas não foi por isso. Ou pelo menos não exclusivamente por isso. Embora minhas preocupações políticas e humanitárias não possam ser descartadas, a questão é mais íntima e pessoal.
Poucas pessoas conhecem minha forma de pensar sobre este tema. Pouquíssimas na verdade. Mas em minha convivência com algumas dessas pessoas ocorreu o que sempre acontece nas interações humanas: meu ponto de vista não só foi muitas vezes aceito como se tornou o fator transformador na maneira com que elas viam o mundo. Como tudo na vida, no entanto, há consequências. O fardo de viver uma vida sabendo que ao morrer tudo estará acabado ou de que não existe uma força superior que irá nos amparar nos momentos de sofrimento e dor não é para qualquer um carregar. Alguns sucumbem e voltam às suas crenças anteriores. Outros não podem se dar a este luxo, pois, como um exército que queima as pontes após atravessá-las, o conhecimento que adquiriram inviabiliza acreditar de novo na existência de uma vida pós-morte ou um paraíso além-túmulo.
E me entristece profundamente saber que alguém a quem eu amo mais do que tudo esteja sofrendo ante a ausência de uma certeza metafísica. E que eu possa ser o causador, ainda que indireto, de tal sofrimento.
Então, esse texto é para você. Para dizer que não, eu não posso lhe devolver o paraíso perdido, pois você nunca o teve. Não tenho como deixá-la confortavelmente aos cuidados de um ente cuja existência é absolutamente indefensável, pois você se sentiria lograda. E não posso prometer que você nunca mais será acometida de certas angústias já que isso, muitas vezes, é a essência da vida de quem teve a coragem de encarar o abismo de frente.
Mas posso, se você me permitir, dar-lhe alguns conselhos.
Primeiro, procure não pensar no assunto. Algumas verdades somente podem ser suportadas com a armadura semi-inviolável que apenas os anos são capazes de nos conceder. Comigo pelo menos foi assim. Dia virá em que você poderá encarar o tema de frente e com desassombro. Por enquanto, apenas viva sua vida da melhor maneira possível, plenamente e sem medo.
Segundo, faça muitos amigos. Aprofunde suas amizades. Curta cada momento com seus companheiros de viagem. A convivência com amigos fiéis é a receita certa para a felicidade e nos ajuda a esquecer a dor da existência.
Terceiro: viaje. O quanto puder. Nem vou perder meu tempo nesse tópico porque você mesma já descobriu o efeito “mágico” que as viagens proporcionam ao nosso bem-estar.
Quarto: aprimore seus conhecimentos. Investigue. Descubra. Não se limite às matérias da faculdade. Seja curiosa: leia romances de boa qualidade, leia filosofia, ciência. Ouça muita música. Assista a bons filmes.
E leia poesia. Muita poesia. Como disse o filósofo norte-americano Richard Rorty, ao descobrir-se portador de um câncer terminal inoperável no pâncreas: “Gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida com versos. Isso não é porque tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem a afirmadas em prosa. (…) Ao contrário, é porque teria vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhos poemas – da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamente humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos”.
E, principalmente, divirta-se. A vida é curta mesmo. Não vale a pena vive-la se não houver diversão.
E se tudo isso não funcionar, venha pra cá. Não há angústia que não ceda a uma volta de meia hora de carro pela cidade sem destino certo, não é mesmo?

Nelson Santander – Singularidade

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Nelson Santander – Renata Maria

O episódio em que Chico Buarque foi xingado por um grupo de jovens aparentemente bêbados no final do ano passado suscitou uma série de discussões nas redes sociais, colocando em polos opostos, uma vez mais, de um lado, os defensores do PT e da esquerda de um modo geral, além dos fãs do compositor, e, de outro, os que querem ver o PT – e todos os que se identificam com o partido, como o compositor – varridos da face do planeta.

Acho que o assunto já foi exaustivamente debatido e acredito que a grosseria cometida contra o artista foi devidamente repudiada por aqueles que são detentores de um mínimo de bom senso: o fato de o Chico ter uma postura defensiva em relação ao PT não autoriza ninguém a xingá-lo na rua (“Você é um merda!”, vociferou um dos playboys).

No meio dos inúmeros impropérios bradados contra o artista pelos que defendiam os playboys nas redes sociais, chamou-me a atenção aqueles que diziam respeito à sua obra. Não foram poucos os que tacharam o compositor de “medíocre” e seu trabalho de “chato” ou de baixa qualidade. Provavelmente a maioria dos que emitiu sua opinião contra o Chico artista não conhece nada de seu trabalho. E se conhecem, realmente não gostam. A arte de Chico, de fato, não é para todos. Melodias pouco óbvias e letras mais elaboradas do que o habitual na música brasileira tornam seu trabalho praticamente inacessível ao grande público. Os demais críticos simplesmente não tiveram a habilidade de separar o Chico cidadão e eleitor do PT do Chico artista, e atacaram este pela orientação política daquele.

E houve aqueles que, embora reconheçam que o artista é detentor “de um certo talento”, suscitaram a existência de uma espécie de corte temporal na qualidade de seu trabalho. Para estes, a última canção de boa qualidade do Chico foi composta nos anos 80 e nada do que ele produziu de lá para cá prestaria. Será mesmo?

Olhando a discografia do Chico dos anos 90 até hoje, podemos ver que ele lançou cinco discos de canções inéditas (com algumas regravações): Paratodos (1993), As Cidades (1998), Cambaio (2001), Carioca (2006) e Chico (2011). Os dois primeiros são de altíssimo nível, e contam com canções que, se não superam, rivalizam com o que de melhor o compositor produziu nos anos anteriores. São de Paratodos (1993) as obras primas “Paratodos” (em que o compositor faz sua profissão de fé), “Choro Bandido”, “Tempo e Artista”, “De Volta ao Samba” (cuja aparente simplicidade melódica esconde um samba de melodia extremamente sofisticada), “A Foto da Capa” e aquela que é uma das mais belas canções compostas pelo artista, “Futuros Amantes”:

Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios no ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafandristas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

De As Cidades (1998), destacam-se: “Sonhos Sonhos São”, “A Ostra e o Vento” (que tem essa linda estrofe: “Se o mar tem o coral / A estrela, o caramujo / Um galeão no lodo / Jogada num quintal / Enxuta, a ostra guarda o mar / No seu estojo”), “Assentamento” e a belíssima “Cecília”, que tinha versos como estes:

(…)
Me escutas, Cecília?
Mas eu te chamava em silêncio
Na tua presença
Palavras são brutas
Pode ser que, entreabertos,
Meus lábios de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí

Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores,
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo,
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir

Para Carioca (2006), Chico Buarque compôs (em parceria – a primeira – com Ivan Lins) uma verdadeira pérola chamada “Renata Maria”, que será objeto de análise deste artigo.

Para Luca Bacchini (in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos, organizado por Rinaldo de Fernandes), a letra de Renata Maria, “aparentemente insignificante”, chama a atenção pela sofisticação de sua construção, que contrastaria com a trivialidade da temática.

De que temática estamos falando?

De fato, a canção retrata uma história absurdamente simples: um homem vê uma mulher na praia (a quem ele chama de Renata Maria) e fica encantado por ela, passando a procura-la todos os dias na praia, em vão. Apenas isso. Mas, por baixo da aparente simplicidade do enredo, temos uma verdadeira ourivesaria na construção da letra da música, escancarando o talento do compositor no fazer poético.

A canção começa com uma descrição pictórica da primeira visão que o narrador tem de Renata Maria:

Ela era ela era ela no centro da tela daquela manhã
Tudo o que não era ela se desvaneceu
Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês

Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar
Pássaros cristalizados no branco do céu
E eu, atolado na areia, perdia meus pés

Já de início, percebemos a obsessão do narrador pela musa da canção na repetição da palavra “ela” (inclusive nas rimas internas encontradas nas palavras  “tela” e “aquela”). O encantamento causado pelo surgimento da mulher objetificada prossegue a ponto de causar o desvanecimento de tudo o que estava ao alcance da vista do homem (Cristo, montanhas, florestas, acácias, ipês) e a imposição de uma percepção onírica da realidade (Pranchas coladas na crista das ondas, as ondas suspensas no ar / Pássaros cristalizados no branco do céu). A visão, a se crer no narrador, é de tirar o fôlego e de fazer perder o chão, o que se reflete no duplo sentido contido no verso E eu, atolado na areia, perdia meus pés.

A canção prossegue alterando o foco narrativo antes voltado para o contexto da visão do narrador para o seu eu interior, retornando em seguida, uma última vez, para o exterior. Acentua-se, também, a sensação de incapacidade de reação do personagem, que fica sem palavras diante da fulgurosa visão de sua musa saindo do mar:

Músicas imaginei
Mas o assombro gelou
Na minha boca as palavras que eu ia falar
Nem uma brisa soprou
Enquanto Renata Maria saía do mar

Na sequência, vemos que o narrador passa a buscar sua musa, obsessivamente, dia após dia na mesma praia em que a viu saindo do mar:

Dia após dia na praia com olhos vazados de já não a ver
Quieto como um pescador a juntar seus anzóis
Ou como algum salva-vidas no banco dos réus

É notável a força da qualidade poética contida no primeiro verso que, em poucas e bem colocadas palavras, dá a exata medida do estado de ânimo do narrador. Se, de um lado, a expressão dia após dia indica que o narrador visita a mesma praia por vários dias sucessivos, a menção aos olhos vazados de não a ver sugerem que o personagem não enxerga mais nada nem ninguém nesses longos dias, alimentados exclusivamente pela busca do objeto de seu desejo.

Os versos seguintes indicam que a busca é de uma quietude obstinada, mas inócua: o pescador que junta seus anzóis voltou de mãos vazias da pescaria; o salva-vidas no banco dos réus (que metáfora linda) nada fez o dia todo além de esperar.

A sequência de versos seguinte é primorosa:

Noite na praia deserta, deserta, deserta daquela mulher
Praia repleta de rastros em mil direções
Penso que todos os passos perdidos são meus

Luca Bacchini assim interpreta este trecho da canção:

“É noite e o homem fica sozinho na praia. Andando contra qualquer princípio da arte venatória, aproveita a escuridão para abandonar a posição passiva de espera e passar à procura ativa. Mas Renata Maria continua a escapar-lhe. Ainda nesses versos o significado expresso pelas palavras resulta enriquecido por sofisticadas engenharias linguísticas. O adjetivo “deserta”, repetido três vezes, assemelha-se a uma voz que ecoa dentro de um espaço vasto, vazio e paradoxalmente fechado. Embora a praia seja habitualmente um espaço aberto onde não se realiza o fenômeno do eco, estamos aqui numa paisagem surreal, petrificada e asfíxica, fechada em cada lado: atrás pelas montanhas, de frente pelas ondas suspensas, em cima pelo branco do céu e pelos pássaros cristalizados e embaixo pela areia. Ao mesmo tempo o adjetivo “deserta”, mesmo que se referindo ao lugar, fornece informações também sobre o protagonista. A sua repetição devolve também a angústia da busca infrutífera do homem que persegue, sem nunca achar, a personificação de uma obsessão. De fato, do ponto de vista prosódico e musical, a passagem do si bemol das primeiras sílabas ao mi da última – de(si b.)-ser(si b.)-ta(mi) – reproduz, cada vez que a palavra “deserta” é pronunciada, um efeito ofegante, como se quem fala tivesse apenas terminado uma corrida, ficando sem o ar suficiente para pronunciar a última sílaba.”

É noite, como o próprio protagonista deixa claro. A praia, vazia, está repleta de rastros em mil direções como seria de se esperar de um lugar que é, durante o dia, frequentado por inúmeras pessoas. O personagem, todavia, está tão obcecado em sua busca que afirma, categoricamente, que todos os passos perdidos são dele. Os versos têm um efeito imagético muito forte, mas sua força maior reside naquilo que revela sobre o estado de espírito do narrador: o de alguém completamente perdido por conta de sua obstinação.

A canção termina da mesma maneira com que acordamos de um sonho bom: com uma resignação encharcada de um sentimento de perda; perda de algo que se sabe inalcançável ou talvez inexistente.

Eu já sabia, meu Deus
Tão fulgurante visão
Não se produz duas vezes no mesmo lugar
Mas que danado fui eu
Enquanto Renata Maria saía do mar

Há uma resignação amarga na constatação de que, embora o personagem já soubesse disso de antemão, a fulgurante visão de Renata Maria não se reproduziria novamente naquela praia.

Os dois últimos versos indicam o destino do narrador. O adjetivo substantivo danado comporta, no contexto, ao menos duas interpretações.

A primeira delas tem a ver com a acepção mais vulgar do termo, no sentido de alguém que é muito esperto, malandro, travesso, arteiro. Nesse sentido, os versos mas que danado fui eu enquanto Renata Maria saía do mar adicionam um elemento novo à interpretação: o de que a visão da musa suscitou no narrador outro tipo de obsessão: a da lubricidade.

No entanto, danado é também sinônimo de condenado, o que implica dizer que o narrador reclama o seu destino de ter sido amaldiçoado para sempre assim que colocou os olhos naquela mulher que não mais retornará àquela praia. Ele sabe que teve uma breve visão da beleza absoluta e que a deixou escapar para nunca mais, tornando-se, assim, vítima de um momento de danação que se perpetuará no tempo, em sua memória.

Alguém ainda acha que o melhor Chico ficou nos anos 80?

Post Scriptum, em 07/02/16: Chico nunca esteve sozinho. Charles Baudelaire, há dois séculos, já havia escrito um poema magistral sobre o tema do encontro fortuito com a mulher desconhecida que fica gravada para sempre na memória do artista:

A Uma Passante – Charles Baudelaire

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu de seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho… e a noite depois! – Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! “nunca” talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

Trad.: Guilherme de Almeida

Nelson Santander – Sonho Sertanejo

Não gosto de música sertaneja. Quem me conhece sabe que é um estilo musical que não me atrai nem um pouco. Segundo penso, 99% das composições musicais sertanejas não passam de canções simplórias, de melodias pobres enfeitadas com letras mais pobres ainda. E não estou falando só do estilo sertanejo da moda – o tal “sertanejo universitário”, com suas melodias monocórdias, suas letras de rimas pobres, metáforas de mau gosto (“meteoro da paixão”) e temáticas insípidas. Meu desgosto se estende também ao sertanejo que explodiu nos anos 80 – uma vertente mais romântica, cujos expoentes são a dupla Zezé de Camargo e Luciano – e alcança a tal “música sertaneja de raiz” (seja lá o que isso signifique).

Não posso deixar de reconhecer, todavia, que mesmo esse gênero musical legou, em quase todas as suas fases, algumas canções que se não podem ser equiparadas aos melhores trabalhos de Chico, Caetano ou Tom Jobim, não fazem feio em relação ao grosso da MPB. De memória posso citar “Mágoa de Boiadeiro”, de Índio Vago e Nonô Basílio; “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira; “Vida Vida Marvada”, do Rolando Boldrin; “Fogão de Lenha”, de Carlos Colla, Maurício Duboc e Xororó; e “Evidências”, de José Augusto e Paulo S Valle.
Mas o fato é que, pra mim, a maior parte do que já foi composto nesse estilo não presta. Por isso não sou daqueles que gritam “Aêêêê!!!” quando o cantor de barzinho dedilha a introdução daquela canção que começa com o verso “Doente de amor procurei remédio na vida noturna…” Minha reação, nessas horas, está mais pra chamar o garçom e pedir a conta…
Por isso estranhei quando acordei hoje cedo com o refrão de uma música sertaneja que eu não conhecia na cabeça. Ainda na cama fiquei vasculhando na memória para ver se me lembrava de alguma música com a melodia sonhada. Nada. Peguei então o fiapo da letra de que me lembrava no sonho (algo parecido com “vi você com uma toalha embrulhada no corpo”) e joguei no nosso oráculo futurista, que não me decepcionou. Na tela de resultados do google lá estava a canção do meu sonho: “24 Horas de Amor”, de Carlos Cezar e José Fortuna, gravada por Mato Grosso e Mathias nos anos 90, e, mais recentemente, por Bruno e Marrone.
Vocês sabem como são os sonhos: eles brotam do e dialogam diretamente com o nosso subconsciente e por isso quando são bonitos, são absurdamente bonitos, pois revolvem nossos desejos e anseios mais profundos. Portanto, a canção que soava em minha cabeça quando acordei era absolutamente maravilhosa. Arrebatadora. Será que a canção do mundo real também o seria? Teria ela como competir com um sonho?
Foi com essas questões na cabeça que coloquei o fone de ouvidos do smartphone e toquei o play.
Ouvi primeiro a versão de Mato Grosso e Mathias e, na sequência, a de Bruno e Marrone, ambas ao vivo. A versão de Bruno e Marrone é bem melhor do que a da outra dupla, seja pelo registro vocal dos goianos, que é superior tecnicamente, seja pela banda de apoio que acompanha a dupla – muito competente e profissional. Diante disso, ouvi uma vez mais a mesma música nessa versão. E outra. E outra.
Ok, se formos analisar a composição com olhos críticos implacáveis chegaremos à conclusão de que estamos diante de uma simples canção romântica, com uma melodia razoável e uma letra singela. Mas, no meu caso, a memória afetiva falou mais alto. A música real não rivalizou com a do sonho. Mas também não perdeu de goleada.
Eu devo ter escutado esta música em algumas oportunidades em bares ou restaurantes com música ao vivo, sem nunca ter reparado na melodia e na letra. Não conscientemente. Mas meu subconsciente tem vida própria e ficou trabalhando na surdina, como um ladrão que arma uma tocaia.
Na letra – simples – o eu-lírico dos compositores descreve uma cena prosaica: ele desperta de manhã sentindo o cheiro do perfume da mulher amada – que está ausente há muito tempo – mas, ao procurá-la olhando ao redor e apalpando o lugar na cama onde ela dormia, só encontra o vazio. O eu-lírico então chora ao lembrar que tudo está acabado. Em seguida constata que o cheiro do perfume é real, o que o faz acreditar que o objeto de seu desejo está ali. Até este ponto da canção, a melodia é suave e cadenciada. O refrão – que acompanha a surpresa revelada neste trecho da letra – é forte e reproduz musicalmente a emoção experimentada pelo eu-lírico ao fazer a grande revelação da música: a mulher amada aparece de repente no quarto, como que por encanto.

“E de repente eu vi
Você sair com a toalha no seu corpo
E se agarrar em mim
Como nos velhos tempos de amor tão louco.

Nada mais sei de nós
Porque morremos abraçados no desejo
Na doação total
Perdidos na loucura destes beijos”

A segunda parte da canção descreve então o encontro amoroso do casal, que vivencia sua paixão por “24 horas sem sair de nossa alcova”, e previsivelmente termina com o casal vivendo feliz para sempre.
Como eu disse, prosaica. Brega, até. Mas por que me comoveu tanto? Tenho alguns palpites.
O primeiro é que a letra narra aquilo que é uma espécie de fantasia adolescente que quase todo mundo tem: a de reencontrar um grande amor perdido de forma semelhante à da canção.
A melodia também, embora simples, é bem bonita, principalmente o refrão, que tem uma força insuspeita e uma mudança de sol para si bemol que empresta um efeito bem interessante à música.
Provavelmente é isso. Não sei.
Mas sei de duas coisas: primeiro, não devemos negligenciar o poder do nosso subconsciente. Ele filtra o mundo de uma maneira cuja lógica só ele entende. Às vezes ele resolve apresentar as conclusões a que chegou ao seu eu consciente. Mas quando isso ocorre, nem sempre o resultado é algo esperado. No caso do meu sonho sertanejo, por exemplo, eu terminei gostando de uma música que faz parte de um estilo musical que eu francamente desprezo.
A segunda coisa de que tenho certeza é a seguinte: vou ficar com a desgraça dessa música na cabeça por um bom tempo…