Arthur Schopenhauer – Bolhas de Sabão (excerto)

O homem só vive no presente, que se converte no passado, e afunda-se na morte. Exceto as consequências que podem influir no presente, e que são filhas de sua vontade, ou de seus atos, a sua vida passada já não existe. Devia portanto ser-lhe indiferente que esse passado fosse de prazeres ou tristezas. O presente foge-lhes das mãos, transformando-se no passado. O futuro é incerto. Fisicamente, o andar não é mais do que uma queda evitada a cada instante; da mesma maneira a existência é a morte suspensa, adiada, e a atividade de nosso espírito não é mais que uma luta constante contra o tédio. É pois fatal que a morte alcance a vitória. Por haver nascido lhe pertencemos, e durante nossa vida não faz senão brincar com a presa antes de a devorar. E assim como quem faz bolhas de sabão, e apesar da segurança de que acabará por rebentar, se entretém em fazê-la aumentar de volume, assim seguimos o curso de nossa existência, prodigalizando-lhe cuidados e atenções.

Tony Connor – Na Alameda dos Carvalhos

Velha e sozinha, à noite ela adormece
sentada diante da televisão.
A casa está quieta agora. Ela tece,
ergue-se para ferver a infusão,

assiste a um cowboy ser assassinado,
lê na gazeta quem nasceu ou morreu,
dorme em ‘Mísseis nucleares estocados’.
Um mundo que um mal pior prometeu

some. Sonha com uma vida passada
na mesma casa: de novo o sofrimento,
pobreza, doença, a sorte negada,
a morte de um filho, o derretimento

do cérebro de um irmão que enlouqueceu.
Setenta anos de aflições; a chaleira
chia. À meia-noite, ela ora, servil,
tira a dentadura e junta suas tranqueiras.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

In Oak Terrace

Old and alone, she sits at nights
nodding before the television.
The house is quiet now. She knits,
rises to put the kettle on,

watches a cowboy’s killing, reads
the local Births and Deaths, and falls
asleep at ‘Growing stockpiles of war-heads’.
A world that threatens worse ills

fades. She dreams of a life spent
in the one house: suffers again
poverty, sickness, abandonment,
a child’s death, a brother’s brain

melting to madness. Seventy years
of common trouble; the kettle sings.
At midnight she says her silly prayers,
and takes her teeth out, and collects her night-things.

Jules Laforgue – Mediocridade

No infinito coberto de eternas belezas,
Como átomo perdido, incerto, solitário,
Um planeta chamado Terra, dias contados,
Voa com os seus vermes sobre as profundezas.

Filhos sem cor, febris, ao jugo do trabalho,
Marchando, indiferentes ao grande mistério,
E quando um dos seus é enterrado, já sérios,
Saúdam-no. Do torpor não são arrancados.

Viver, morrer, sem desconfiar da história
Do globo, sua miséria em eterna glória,
Sua agonia futura, o sol moribundo.

Vertigens de universo, todo o seu só festa!
Nada, nada, terão visto. Partem do mundo
Sem visitar sequer o seu próprio planeta.

Trad.: Régis Bonvicino

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 27/02/2016

Mary Ruefle – Meu amigo moribundo

Eu visitava um amigo moribundo no hospital e passei por um quarto cheia de bebês que ainda não tinham recebido nomes. Todos estavam alinhados em uma fileira, como projetos científicos. Aqueles que tinham nomes ganharam uma pulseira e foram levados embora. Mas os que ficaram eram bastante interessantes, a julgar pela tristeza já evidente em seus traços. Como devo te chamar, pequeno cordeiro deitado aqui nesse leito de algodão? Detive uma pessoa de uniforme que estava familiarizada com eles: “Volte amanhã”, ela disse, “todos já terão partido”.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

My Dying Friend

I was visiting a dying friend in the hospital and passed by a room full of babies who had not yet been given names. They were all lined up in a row, like science projects. Those with names had won a bracelet and been taken away. But those who remained were quite interesting, judging by the sadness already evident in their features. What do I call thee, little lamb lying here on a bed of cotton? I stopped someone in a uniform who was familiar with them. “Come back tomorrow,” she said, “they will all be gone”.

Richard Dawkins – Todos Vamos Morrer

Arte: Gavin Aung – 2012

REPUBLICAÇÃO: Arte originalmente publicada na página em 27/02/2016

Francis Ledwidge – A um pardal

Porque não temes te misturar
Com asas mais proeminentes,
Como eu, com minha voz vou cantar
Teu doce coração imprudente.

E quando penas mais afetadas
Vão onde o estio em folhas se inscreve,
Ainda vens até nós do nada,
Como folhas cinzentas na neve.

Nas vielas, entre as ninharias,
Desces para tuas refeições,
Conhecendo cada gelosia
Lascada de teus anfitriões.

Não há ave tão inofensiva,
Ou tão doce e rude como tu,
Tão comum e tão inexpressiva,
Ou tão autêntica como tu.

Não és perfeito, estou ciente,
Mas te amo, pois nunca nos foge,
Ainda que o inverno te açoite,
E a neve já no morro se aloje.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

To a Sparrow

Because you have no fear to mingle
Wings with those of greater part,
So like me, with song I single
Your sweet impudence of heart.

And when prouder feathers go where
Summer holds her leafy show,
You still come to us from nowhere
Like grey leaves across the snow.

In back ways where odd and end go
To your meals you drop down sure,
Knowing every broken window
Of the hospitable poor.

There is no bird half so harmless,
None so sweetly rude as you,
None so common and so charmless,
None of virtues nude as you.

But for all your faults I love you,
For you linger with us still,
Though the wintry winds reprove you
And the snow is on the hill.

William Shakespeare – do Macbeth (excerto)

Amanhã
amanhã amanhã amanhã
Rasteja em passo parco dia a dia
Até a última sílaba do Tempo.
E os ontens, todos, só nos alumiam
O fim no pó. Apaga, apaga, vela
Breve!
A vida é só uma sombra movel.
             Pobre ator
Que freme e treme o seu papel no palco
E logo sai de cena. Um conto tonto
Dito por um idiota – som e fúria, signi-
Ficando nada.

     Trad.: Augusto de Campos

 

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 27/02/2016

Edward Thomas – Foi-se embora, uma vez mais

Foi-se embora, uma vez mais,
Maio, junho e também
Julho, e agosto se esvai,
De novo, como convém,

Banais, salvo pelo fato
De vê-los passar, tal qual
Atravessam os regatos
Um vago cais fluvial.

E no presente também,
Sob as chuvas da estação,
as laranjas de Blenheim
Caem sujas pelo chão,

Como nos meus anos idos —
O perdido era presente —
A guerra mudando os
Jovens em fertilizante.

Veja o velho casarão,
Arcaico em sua altivez,
Ermo e na escuridão,
A relva crescendo em vez

Das batalhas, do respeito,
Da vida sempre a marchar;
Repousaram em seus leitos
Juventude, amor, pesar:

Sou parecido com isso;
Só que à vida sigo preso,
Respiro e me interesso
Pelo casarão aceso: —

Sou exatamente assim:
Sem vidraças ou janelas
Para alunos darem fim —
Já quebraram todas elas.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Gone, Gone Again

Gone, gone again,
May, June, July,
And August gone,
Again gone by,

Not memorable
Save that I saw them go,
As past the empty quays
The rivers flow.

And now again,
In the harvest rain,
The Blenheim oranges
Fall grubby from the trees,

As when I was young—
And when the lost one was here—
And when the war began
To turn young men to dung.

Look at the old house,
Outmoded, dignified,
Dark and untenanted,
With grass growing instead

Of the footsteps of life,
The friendliness, the strife;
In its beds have lain
Youth, love, age, and pain:

I am something like that;
Only I am not dead,
Still breathing and interested
In the house that is not dark:—

I am something like that:
Not one pane to reflect the sun,
For the schoolboys to throw at—
They have broken every one.

Ana Martins Marques – Finados

Finados

                                A morte se expia vivendo
Giuseppe Ungaretti, “Sou uma criatura”

Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingança:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol.
Tuas camisas nos armários
agora apenas vestem a si mesmas.
Seria preciso usá-las, levá-las para passear,
manchá-las de café, tinta, graxa,
desodorante, suor.
Uma ofensa à morte
um desafio.
Quem sabe tudo o que morreu
com quem morreu?
Um livro nunca escrito
um novo amor
um pensamento que permanecerá
impensado.
Quem sabe o que essa morte
trouxe à vida?
As casas
coloridas
estão alegres sem motivo.

*

Acabamos de lançar tuas cinzas
surpresos de que reste
tão pouco de ti
depois seguimos em silêncio
ao sol
em meio a tudo o que
te sobreviveu
— e tu estás
em tudo

*

Estamos todos reunidos
na praia da palavra infância

um barco é um nó no mar

dormem tarde nesta época
as luzes do dia

estamos todos reunidos em torno
do seu lento apagamento

o mar devolve espumando
o que comeu

sob sua superfície brilhante
pastam peixes coloridos

anêmonas, pedras, corais
como sob a capa de um livro

estamos todos reunidos em torno
do ouriço da palavra ouriço

este ano você não veio

justo no primeiro ano da sua morte
você não deveria faltar

estamos todos reunidos em torno
da fogueira do seu nome

*

É como se a infância não fosse um tempo
mas um lugar
com seus cumes seus esconderijos
suas pequenas clareiras
um lugar, aquele onde cometemos
nosso primeiro crime
há quem tenha matado um coelho
há quem tenha matado um sapo
há quem tenha matado um cão
há quem tenha mentido perseguido destroçado
deixado morrer
por capricho
de minha parte matei uma criança:
uma menina morreu em mim
por onde vou carrego
seu cadáver
e a forma exata do seu corpo
repousa no meu corpo
como num vestido
largo demais

Grey Gowrie – Terceiro Dia

Os respiradores soam como trutas se alimentando
à noite em algum criadouro da imaginação –
ninguém ali para ouvir; nosso subaquático mundo de atenção
intensiva é quase azul – inofensivo, brando.

Óculos contra o vidro, os especialistas
passam para nos examinar, e são parelhos
até que entram com suas máscaras: listas
em pranchetas distinguem os nomes dos aparelhos.

Somos nossa medicação, e os equipamentos
programados para cada paciente, individualmente,
são mais do que nossa identidade no momento.
Podemos ter sido; alguns podem sê-lo novamente.

Não temos um rosto a perder, para olhar,
mas é agradável aqui, suspense suspenso, nada a fazer
por ora – o tempo é o que conseguimos obter
para lutar por um novo nascimento, e por ar.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Third Day

Respirators sound like trout feeding
at night in some dream hatchery – no one there
to listen; our subaqueous world of care
is halfway blue – peaceful, unthreatening.

Spectacles pressed to the glass, our specialists
walk by to look us over and seem the same
until, mask-mouthed, they enter: clipboard lists
distinguish the paraphernalia from the name.

We are our medication, and the machines
programmed to meet an individual case
more than identity now. We may have been;
some may become again. We have no face

to lose, to look at, but it’s pleasant here,
suspense suspended, nothing to be done
for the time being – time being our time won
to flail for birth again and fight for air.