Gwendolyn MacEwen – Fogos de artifício

Fogos de Artifício

Em memória de Marian Engel

Um ano após sua morte, no inverno baço,
Parte de seu jardim jaz enterrada no meu jardim,
Para onde a transplantei. Eu me pergunto
Onde você está agora — (não é exatamente no céu
Porque você disse uma vez que sabia tudo sobre o céu
E não queria ir para lá). Não obstante,
Ao celebrar sua vida, celebro sua entrada
Em algum reino incondicional.

Amiga, que sua morte seja fogos de artifícios,
Como os cata-ventos e as escolas ardendo
(temos tanto a desaprender)
Que você tinha em seu jardim no dia 24 de maio,
Cem anos atrás, quando mal éramos jovens.

Que seja uma conflagração, um sinal,
Como todas aquelas flores barulhentas e eloquentes
Que queimarão por todo o verão em meu quintal —
(as lanternas japonesas, laranja brilhante e audaciosa contra o muro do jardim) —

Tudo lutando para se tornar o que já é
E nós, que você deixou para trás,
Lutando para nos tornarmos o que já somos.

Inverno de 1986

Trad.: Nelson Santander

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Fireworks

In memory of Marian Engel

A year after your death, in the spleen of winter
Part of your garden lies buried in my garden
Where I transplanted it. I wonder
Where you are now — (it isn’t exactly heaven
because you said once you knew all about heaven
and didn’t want to go there). Nevertheless
As I celebrate your life I celebrate your entry
Into some unconditional kingdom.

Friend, let your death be fireworks
Like the pinwheels and burning schoolhouses
(we have so much to unlearn)
You had in your garden on the 24th of May
A hundred years ago when we were less than young.

Let it be a conflagration, a sign,
Like all those loud outspoken flowers
Which will burn all summer in my back yard —
(the Japanese lanterns, bright audacious orange against the garden wall) —

Everything struggling to become what it already is
And we who are left behind you
Struggling to become what we already are.

Winter 1986

Giórgos Seféris – Existe

Existe, pelos deuses cruéis predestinada,
uma dor universal,
e cada um de nós dela pega a sua parte,
quanto aguente levar.

Julgamos insensatos
os que, carregando pressurosamente nos ombros
mais do que podiam carregar,
aliviam assim a carga comum:
os heróis, os mártires, os criminosos.

Rogo-lhes que nos perdoem.
Recordamos.

Trad.: José Paulo Paes

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Samuel Yellen – Como em uma marca d’água

Como em uma marca d’água, deciframos,
Por baixo do verniz da relva e dos ramos,
A obsoleta planta da fundação,
E onde corriam muros e construção.

Aqui, os cascalhos enterrados guardam
Vias trilhadas por pés que já não andam;
Cada fragmento que sobreviveu
Vela cicatrizes do que já morreu.

É fácil ler que aqui ficava a entrada,
Mas não o passado e sua aprisionada
Aversão. Lemos as linhas de um salão,
Mas não sua oculta e surda danação.

Lemos nessas esmaecidas ruínas
A calamidade que não discrimina;
Não de Pompéia o logro violento,
Mas a lava do tempo em movimento.

Trad.: Nelson Santander

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As in a Watermark

As in a watermark, we read
Beneath the gloss of grass and weed
The obsolete foundation plan
And where the walls and plumbing ran.

Here the sunken stones secrete
The pathways of now vanished feet;
Each surviving trace contrives
To shroud the scars of former lives.

With ease we read the door was here,
But not the bygone shut-in fear;
We read the contours of this room,
But not its muffled private doom.

We read in this eclipsed debris
The leveling catastrophe;
Not Pompeii’s crushing pantomime,
But the lava flow of time.

Angela Leite de Souza – Do Lado de Cá Dessas Rosas

Nem percebi quando me cobriram
com esta colcha rosa de rosas
amorosamente.
Dormia meu novo sono
sem tranquilizantes, sem relógios:
estou serena e não há pressa em acordar.
Ser apenas, estar.
Não me roem mais tristezas nem desejos,
lateja leve leve uma saudade.
Meu corpo vai não sendo, sou feliz.
Livre do dever de viver e de burlar
a morte
compreendo: um é o avesso da outra,
sua sombra, seu reflexo, viceversamente.
Indivisíveis e incomunicáveis,
a morte, onipresente na vida,
e a vida, na morte, transparente.
Quem me garante não ser a vida esta
que um lençol de flores aquece e acalenta e basta?
Não será muito mais morte
a lágrima caída em minha testa
ou a mão que em vão me roça
à procura de respostas?

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Mariana Spada – Bratislava

A primeira lufada de sol
se derramou preguiçosamente
sobre estátuas de heroísmo alheio
e ruas desertas após uma geada
que deve ter coberto de gelo a margem
do outro lado do Danúbio.

Bratislava ficou para trás.
O grande livro do mundo
se abre inteiramente esta manhã
e o balanço suave do vagão-restaurante
é como uma mãe que passa
cem vezes a escova em nosso cabelo
enquanto sussurra ao ouvido:
não há futuro que seja nosso
é pura ventura o presente
e o passado um cacho
curto e embaraçado.

Trad.: Nelson Santander

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Bratislava

La primera bocanada de sol
fue derramándose lacia
sobre estatuas de heroísmo ajeno
y calles desiertas al cabo de una helada
que habrá escarchado la orilla
al otro lado del Danubio.

Atrás quedó Bratislava.
El gran libro del mundo
se abre por completo esta mañana
y el meneo suave del vagón comedor
es como una madre que nos pasa
cien veces el cepillo por el pelo
mientras susurra al oído:
no hay futuro que sea nuestro
es todo dicha el presente
y el pasado un rizo
corto y enredado.

Carlos Drummond de Andrade – Os Rostos Imóveis

Pai morto, namorada morta.
Tia morta, irmão nascido morto.
Primos mortos, amigo morto
Avô morto, mãe morta
(mãos brancas, retrato sempre inclinado na parede, grão de poeira nos olhos).
Conhecidos mortos, professora morta.

Inimigo morto.
Noiva morta, amigas mortas.
Chefe de trem morto, passageiro morto.
Irreconhecível corpo morto: sera homem ou bicho!
Cão morto, passarinho morto.
Roseira morta, laranjeiras mortas.
Ar morto, enseada morta.
Esperança, paciência, olhos, sono, mover de mão: mortos.

Homem morto. Luzes acesas.
Trabalha à noite, como se fora vivo.

Bom dia! Está mais forte (como se fora vivo).

Morto sem notícia, morto secreto.
Sabe imitar fome, e como finge amor.

E como insiste em andar, e como anda bem.
Podia cortar casas, entrar pela porta.

Sua mão pálida diz adeus à Rússia.
O tempo nele entra e sai sem conta.
Os mortos passam rápidos, já não há pegá-los.
Mais um se despede, outro te cutuca.
Acordei e vi a cidade:
eram mortos mecânicos,
eram casas de mortos,
ondas desfalecidas,
peito exausto cheirando a lírios,
pés amarrados.
Dormi e fui à cidade:
toda se queimava,
estalar de bambus,
boca seca, logo crispada.
Sonhei e volto à cidade.
Já não era a cidade.
Estavam todos mortos, o corregedor-geral verificava etiquetas nos cadáveres.
O próprio corregedor morrera há anos, mas sua mão continuava implacável.
O mau cheiro zumbia em tudo.

Desta varanda sem parapeito contemplo os dois crepúsculos.
Contemplo minha vida fugindo a passo de lobo, quero detê-la, serei mordido?
Olho meus pés, como cresceram, moscas entre eles circulam.
Olho tudo e faço a conta, nada sobrou, estou pobre, pobre, pobre,
mas não posso entrar na roda,
não posso ficar sozinho,
a todos beijarei na testa,
flores umidas esparzirei,
depois… não há depois nem antes.
Frio há por todos os lados,
e um frio central, mais branco ainda.

Mais frio ainda…
Uma brancura que paga bem nossas antigas cóleras e amargos…
Sentir-me tão claro entre vós, beijar-vos e nenhuma poeira em boca ou rosto.

Paz de finas árvores,
de montes fragílimos lá embaixo, de ribeiras tímidas, de gestos que já não podem mais irritar,
doce paz sem olhos, no escuro, no ar.
Doce paz em mim,
em minha família que veio de brumas sem corte de sol
e por estradas subterrâneas regressa às suas ilhas,
na minha rua, no meu tempo – afinal – conciliado,
na minha cidade natal, no meu quarto alugado,
na minha vida, na vida de todos, na suave e profunda morte de mim e de todos.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Alison C. Rollins – A Biblioteca de Babel

A Biblioteca de Babel

para Jorge Luis Borges

Enquanto ainda houver um pouco de luz
sobre a página, escrevo agora
uma história da neve, de tudo
o que já foi e ainda será pensado.
Quando um poeta cego diz Preciso que você
seja meus olhos, ele está pedindo para ver
através de sua boca.

Trad.: Nelson Santander

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The Library of Babel

for Jorge Luis Borges

While there is still some light
on the page, I am writing now
a history of snow, of everything
that has been and will be thought.
When a blind poet says I need you
to be my eyes, they are asking to see
through your mouth.

Carlos Drummond de Andrade – Noturno Oprimido

A água cai na caixa com uma força,
com uma dor! A casa não dorme, estupefata.
Os móveis continuam prisioneiros
de sua matéria pobre, mas a água parte-se

a água protesta. Ela molha toda noite
com sua queixa feroz, seu alarido.
E sobre nossos corpos se avoluma
o lago negro de não sei que infusão.

Mas não é o medo da morte do afogado,
o horror da água batendo nos espelhos,
indo até cofres, os livros, as gargantas.
É o sentimento de uma coisa selvagem,

Sinistra, irreparável, lamentosa.
Oh vamos nos precipitar no rio espesso
que derrubou a última parede
entre os sapatos, as cruzes e os peixes cegos do tempo.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016

Jules Supervielle – A ponta da chama

Por toda sua vida,
Ele gostou de ler
À luz de uma vela
E com frequência passava
A mão sobre a chama
Para convencer-se
De que estava vivo,
De que estava vivo.

Desde o dia em que morreu
Ele mantém ao lado
Uma vela acesa,
Mas oculta as mãos.

Trad.: Nelson Santander. Tradução para o português, a partir da versão em inglês de W.S. Merwin (original em francês).

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The Tip of the Flame

All through his life
He had liked to read
By a candle
And often he passed
His hand over the flame
To convince himself
That he was alive,
That he was alive.

Since the day he died
He has kept beside him
A lighted candle
But he hides his hands.

Cassiano Ricardo – Vociferação

  I

 Homem
 em Adão.
 Homem
em Cristo.
 Homem
 em globo.

  II

como salvar
  Deus?
nós faremos
  d’Ele
novamente o
 Autor de
 tudo:
do peixe, da
 ave, da
  cobra,
 da maçã,
do sapo, do
 rouxinol
 do sol.

 O
obrigaremos
  contudo
a suar san-
gue conosco,
  na guerra,
  na fome
  na peste
  na
  terra suja;

a engolir
    fogo
  como nós,
   no circo
  queimando
    boca
e estômago.

  Um Deus
que nos
   socorra.
Que não fuja;
  que morra
em nós.
   Quando
  qualquer
   de nós
  morra.

À semelhança
de qualquer
   de nós.

Deus mal-me-
  quer
Deus bem-me-
  quer

)horizontal
 vertical(

 no leito
na forca
  ou num
batiscafo.

  III

 Um Deus
de cabeça
 pra baixo

  Morcego
pendurado
  no teto
da igreja.

 Um Deus
antiazul.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016