Joan Margarit – A senha

Sozinho entre dois infernos
— o da liberdade e o da idade —,
já não consigo abrir nosso cofre.
A porta com seus dígitos giratórios
é a roleta na qual já não aposto.
Desde o primeiro suspiro conservei
a blindada clareza
daquela rosa.
Agora, nu em nosso quarto,
a janela aberta e a luz apagada,
ouço o rumor urbano da noite,
enquanto a leve brisa me acaricia.
Aquela garota e aquele garoto
permanecem tão perto, estão dentro de mim:
um cheiro familiar, uma canção,
podem fazê-los voltar, mas se tento lhes falar,
já desapareceram. Vivemos à mercê
do que ignorávamos sobre nós mesmos.
É como se, entre todos os direitos
que a vida pudesse ter,
houvesse um misterioso direito à ignorância.
O ninho metálico custodia nossos sonhos.
Estou chorando: a senha
era a data de tua morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 06/06/2020

La combinación

Sola entre dos infiernos
—el de la libertad y el de la edad—,
ya no puedo abrir nuestra caja fuerte.
La puerta con sus cifras giratorias
es la ruleta en la que ya no apuesto.
Desde el primer suspiro conservé,
la acorazada claridad
de aquella rosa.
Ahora, desnuda en nuestro dormitorio,
con la ventana abierta y la luz apagada,
oigo el rumor urbano de la noche
mientras la leve brisa me acaricia.
Aquella chica y aquel chico
permanecen muy cerca, están dentro de mí:
un olor familiar, una canción,
pueden hacer que vuelvan, pero si quiero hablarles
ya han desaparecido. Vivimos a merced
de lo que de nosotros ignorábamos
Es como si entre todos los derechos
que tuviese la vida,
hubiera un misterioso derecho a no saber.
El metálico nido custodia nuestros sueños.
Estoy llorando: la combinación
era la fecha de tu muerte.

Federico Garcia Lorca – Pranto por Ignacio Sánchez Mejías

1. A captura e a morte

Às cinco da tarde.
Eram as cinco em ponto dessa tarde

Um menino trouxe o lençol branco
às cinco da tarde.

Uma alcofa de cal já prevenida
às cinco da tarde.
O mais era só morte e apenas morte
às cinco da tarde.

O vento arrebatou os algodões
às cinco da tarde.
E o óxido semeou cristal e níquel
às cinco da tarde.

Já luta com a pomba o leopardo
às cinco da tarde.
E uma coxa com uma haste desolada
às cinco da tarde.

Começaram os dobres do bordão
às cinco da tarde.
Sinos e sinos de arsênico e o fumo
às cinco da tarde.

Há nas esquinas grupos de silêncio
às cinco da tarde.
E só o touro coração acima!
às cinco da tarde.

Quando o suor de neve foi chegando
às cinco da tarde.
Quando a praça de iodo se cobriu
às cinco da tarde.

A morte pôs seus ovos na ferida
às cinco da tarde.

Às cinco da tarde.
Às cinco em ponto dessa tarde.
Ataúde com rodas é a cama
às cinco da tarde.

Ossos e flautas soam-lhe no ouvido
às cinco da tarde.

O touro já mugia por sua fronte
às cinco da tarde.

O quarto se irisava de agonia
às cinco da tarde.

Ao longe uma gangrena já vem vindo
às cinco da tarde.

Trompa de lírio pelas verdes virilhas
às cinco da tarde.

As feridas ardiam como sóis
às cinco da tarde.

E as gentes rebentavam as janelas
às cinco da tarde.

Às cinco da tarde.

Ai que terríveis cinco eram da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!

Eram as cinco em sombra dessa tarde!

2. O sangue derramado

Que eu não quero vê-lo!
Digam à lua que venha
que não quero ver o sangue
de Inácio marcando a areia.

Que eu não quero vê-lo!
A lua de par em par.
Cavalo de nuvens quietas
e a praça parda do sonho
com salgueiros nas barreiras.
Que eu não quero vê-lo!

Que o recordar se me queima.
Avisai todo o jasmim
com sua brancura pequena!
Que eu não quero vê-lo!

A vaca do velho mundo
passava sua triste língua
sobre um focinho de sangues
derramados pela arena,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.

Não.
Que eu não quero vê-lo!
Pelos degraus sobe Inácio
com sua morte toda às costas.

Ele buscava o amanhecer,
e o amanhecer não era.
Busca seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.

Busca seu formoso corpo
e encontra seu sangue aberto.
Ai não me digam que o veja!

Não quero sentir o jorro
cada vez, com menos força;
esse jorrar que ilumina
o palanque e se desaba
no veludilho e no couro
da multidão tão sedenta.

Quem me grita que me assome?!
Ai não me digam que o veja!
Não se cerraram seus olhos
quando viu os cornos cerca,
porém as mães mais terríveis
levantaram a cabeça.

E pelas ganadarias,
houve um ar de voz secreta
gritando a touros celestes,
maiorais de névoa pálida.

Não houve em Sevilha príncipe
que lhe possa comparar-se,
nem espada como era a sua,
nem coração de verdade.

Como um rio de leões
sua força maravilhosa,
e como um torso de mármore
a desenhada prudência.

Um ar de Roma andaluza
a cabeça lhe dourava
onde o seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.

Que grão toureiro na praça!
Que bom serrano na serra!
Que brando era com as espigas!
Que duro com as esporas!
Que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as últimas
bandarilhas todas treva!

Porém já dorme sem fim.
Já os musgos maila erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.

E já seu sangue por aí vem cantando:
cantando por marinhas e por prados,
e resvalando pelos cornos hirtos,
vacilando sem alma pela névoa
tropeçando com milhares de patas
como uma longa, obscura e triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir de altas estrelas.

Ó branco muro de Espanha!
Ó negro touro de pena!
Ó sangue duro de Inácio!
Ó rouxinol de suas veias!

Não.
Que não quero vê-lo!
Que não há cálix que o contenha,
que não há andorinhas que o bebam,
não há de orvalho luz que o esfrie,
nem canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal que o cubra de prata.

Não.
Eu não quero vê-lo!

3. Corpo presente

A pedra é uma fronte adonde os sonhos gemem
sem ter as águas curvas nem ciprestes gelados.

A pedra são uns ombros para levar o tempo
com árvores de lágrimas e faixas e planetas.
Já vi chuvas cinzentas correndo para as ondas,
levantando os seus ternos braços tão esburacados,
para não ser caçadas pela pedra estendida
que seus membros desata sem se empapar de sangue.

Porque a pedra recolhe sementes e nublados,
esqueletos de pássaros e lobos de penumbra;
porém não dá nem sons, nem cristais, nem fogo,
mas praças e mais praças e outras praças sem muros.

E já está sobre a pedra Inácio o bem-nascido.
Já se acabou. E agora? Contemplai sua imagem:
a morte o recobriu de pálidos enxofres
e pôs-lhe uma cabeça de obscuro minotauro.

Já se acabou. A chuva penetra por sua boca.
O ar como um louco deixa o peito que se afunda,
e o Amor, empapado em lágrimas de neve,
aquece-se nos cumes das ganadarias.

Que dizem? Um silêncio com fedores repousa.
Estamos com um corpo presente que se esfuma,
com uma forma clara que teve rouxinóis
e vemo-la afastar-se em abismos sem fundo.

Quem o sudário enruga? É falso quanto diz!
Ninguém por aqui canta, nem pelos cantos chora,
nem co’as esporas pica, nem a serpente espanta,
aqui não quero mais do que os redondos olhos
para ver esse corpo sem possível descanso.

Eu quero ver aqui os homens de voz dura.
Os que cavalos domam e dominam os rios:
os homens a quem tine o esqueleto e cantam
com uma boca cheia de sol e pedregais.

Aqui os quero eu ver. Diante desta pedra.
Diante deste corpo com as rédeas quebradas.
Eu quero que me ensinem onde está a saída
para este capitão atado pela morte.

Eu quero que me ensinem um pranto como um rio
que tenha doces névoas e profundas margens,
para levar o corpo de Inácio e que se perca
sem escutar o duplo resfolegar dos touros.

Que se perca na praça redonda dessa lua
que finge criança triste ser uma rês imóvel;
que se perca na noite sem cânticos dos peixes
e na maldade branca do fumo congelado.

Não quero que lhe tapem o seu rosto com lenços
para que se acostume à morte que o arrasta.
Vai-te, Inácio! Não sintas o ardente bramido.
Dorme, voa, repousa: também se morre o mar.

4. Alma ausente

Não te conhecem touro nem figueira,
nem cavalo ou formiga da tua casa.
Nem o menino te conhece, ou a tarde,
porque tu estás morto para sempre.

Não te conhecem os lombos da pedra,
nem o plaino negro aonde te destroças.
Não te conhece uma saudade muda
porque tu estás morto para sempre.

Há-de vir o Outono com seus búzios,
uva de névoa e montes agrupados,
mas ninguém quer fitar-te nos teus olhos
porque tu estás morto para sempre.

Porque tu estás morto para sempre,
como todos os mortos pela Terra,
como todos os mortos que se olvidam
em um montão de cães que se apagaram.

Ninguém já te conhece. Não. Mas eu te canto.

Eu canto antes de mais o teu perfil e graça.
A madureza insigne do teu conhecimento.
Teu apetite de morte e o gosto de sua boca.
A tristeza que teve a tua valente alegria.

Tardará muito tempo em nascer, se é que nasce,
um andaluz tão claro, tão rico de aventura.
e recordo uma brisa triste nos olivais.

Trad.: Jorge de Sena

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/05/2020

Llanto por Ignacio Sánchez Mejías

1. La cogida y la muerte

A las cinco de la tarde.
Eran las cinco en punto de la tarde.
Un niño trajo la blanca sábana
a las cinco de la tarde.
Una espuerta de cal ya prevenida
a las cinco de la tarde.
Lo demás era muerte y sólo muerte
a las cinco de la tarde.

El viento se llevó los algodones
a las cinco de la tarde.
Y el óxido sembró cristal y níquel
a las cinco de la tarde.
Ya luchan la paloma y el leopardo
a las cinco de la tarde.
Y un muslo con un asta desolada
a las cinco de la tarde.
Comenzaron los sones del bordón
a las cinco de la tarde.
Las campanas de arsénico y el humo
a las cinco de la tarde.
En las esquinas grupos de silencio
a las cinco de la tarde.
¡Y el toro, solo corazón arriba!
a las cinco de la tarde.
Cuando el sudor de nieve fue llegando
a las cinco de la tarde,
cuando la plaza se cubrió de yodo
a las cinco de la tarde,
la muerte puso huevos en la herida
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
A las cinco en punto de la tarde.

Un ataúd con ruedas es la cama
a las cinco de la tarde.
Huesos y flautas suenan en su oído
a las cinco de la tarde.
El toro ya mugía por su frente
a las cinco de la tarde.
El cuarto se irisaba de agonía
a las cinco de la tarde.
A lo lejos ya viene la gangrena
a las cinco de la tarde.
Trompa de lirio por las verdes ingles
a las cinco de la tarde.
Las heridas quemaban como soles
a las cinco de la tarde,
y el gentío rompía las ventanas
a las cinco de la tarde.
A las cinco de la tarde.
¡Ay qué terribles cinco de la tarde!
¡Eran las cinco en todos los relojes
¡Eran las cinco en sombra de la tarde!

2. La sangre derramada

¡Que no quiero verla!

Dile a la luna que venga,
que no quiero ver la sangre
de Ignacio sobre la arena.

¡Que no quiero verla!

La luna de par en par,
caballo de nubes quietas,
y la plaza gris del sueño
con sauces en las barreras

¡Que no quiero verla!

Que mi recuerdo se quema.
¡Avisad a los jazmines
con su blancura pequeña!

¡Que no quiero verla!

La vaca del viejo mundo
pasaba su triste lengua
sobre un hocico de sangres
derramadas en la arena,
y los toros de Guisando,
casi muerte y casi piedra,
mugieron como dos siglos
hartos de pisar la tierra.

No.

¡Que no quiero verla!

Por las gradas sube Ignacio
con toda su muerte a cuestas.
Buscaba el amanecer,
y el amanecer no era.
Busca su perfil seguro,
y el sueño lo desorienta.
Buscaba su hermoso cuerpo
y encontró su sangre abierta.
¡No me digáis que la vea!
No quiero sentir el chorro
cada vez con menos fuerza;
ese chorro que ilumina
los tendidos y se vuelca
sobre la pana y el cuero
de muchedumbre sedienta.
¡Quién me grita que me asome!
¡No me digáis que la vea!
No se cerraron sus ojos
cuando vio los cuernos cerca,
pero las madres terribles
levantaron la cabeza.
Y a través de las ganaderías,
hubo un aire de voces secretas
que gritaban a toros celestes,
mayorales de pálida niebla.
No hubo príncipe en Sevilla
que comparársele pueda,
ni espada como su espada,
ni corazón tan de veras.
Como un río de leones
su maravillosa fuerza,
y como un torso de mármol
su dibujada prudencia.
Aire de Roma andaluza
le doraba la cabeza
donde su risa era un nardo
de sal y de inteligencia.
¡Qué gran torero en la plaza!
¡Qué gran serrano en la sierra!
¡Qué blando con las espigas!
¡Qué duro con las espuelas!
¡Qué tierno con el rocío!
¡Qué deslumbrante en la feria!
¡Qué tremendo con las últimas
banderillas de tiniebla!
Pero ya duerme sin fin.
Ya los musgos y la hierba
abren con dedos seguros
la flor de su calavera.
Y su sangre ya viene cantando:
cantando por marismas y praderas,
resbalando por cuernos ateridos
vacilando sin alma por la niebla,
tropezando con miles de pezuñas
como una larga, oscura, triste lengua,
para formar un charco de agonía
junto al Guadalquivir de las estrellas.
¡Oh blanco muro de España!
¡Oh negro toro de pena!
¡Oh sangre dura de Ignacio!
¡Oh ruiseñor de sus venas!
No.

¡Que no quiero verla!

Que no hay cáliz que la contenga,
que no hay golondrinas que se la beban,
no hay escarcha de luz que la enfríe,
no hay canto ni diluvio de azucenas,
no hay cristal que la cubra de plata.
No.

¡Yo no quiero verla!

3. Cuerpo presente

La piedra es una frente donde los sueños gimen
sin tener agua curva ni cipreses helados.
La piedra es una espalda para llevar al tiempo
con árboles de lágrimas y cintas y planetas.

Yo he visto lluvias grises correr hacia las olas
levantando sus tiernos brazos acribillados,
para no ser cazadas por la piedra tendida
que desata sus miembros sin empapar la sangre.

Porque la piedra coge simientes y nublados,
esqueletos de alondras y lobos de penumbra;
pero no da sonidos, ni cristales, ni fuego,
sino plazas y plazas y otras plazas sin muros.

Ya está sobre la piedra Ignacio el bien nacido.
Ya se acabó; ¿qué pasa? Contemplad su figura:
la muerte le ha cubierto de pálidos azufres
y le ha puesto cabeza de oscuro minotauro.

Ya se acabó. La lluvia penetra por su boca.
El aire como loco deja su pecho hundido,
y el Amor, empapado con lágrimas de nieve
se calienta en la cumbre de las ganaderías.

¿Qué dicen? Un silencio con hedores reposa.
Estamos con un cuerpo presente que se esfuma,
con una forma clara que tuvo ruiseñores
y la vemos llenarse de agujeros sin fondo.

¿Quién arruga el sudario? ¡No es verdad lo que dice!
Aquí no canta nadie, ni llora en el rincón,
ni pica las espuelas, ni espanta la serpiente:
aquí no quiero más que los ojos redondos
para ver ese cuerpo sin posible descanso.

Yo quiero ver aquí los hombres de voz dura.
Los que doman caballos y dominan los ríos;
los hombres que les suena el esqueleto y cantan
con una boca llena de sol y pedernales.

Aquí quiero yo verlos. Delante de la piedra.
Delante de este cuerpo con las riendas quebradas.
Yo quiero que me enseñen dónde está la salida
para este capitán atado por la muerte.

Yo quiero que me enseñen un llanto como un río
que tenga dulces nieblas y profundas orillas,
para llevar el cuerpo de Ignacio y que se pierda
sin escuchar el doble resuello de los toros.

Que se pierda en la plaza redonda de la luna
que finge cuando niña doliente res inmóvil;
que se pierda en la noche sin canto de los peces
y en la maleza blanca del humo congelado.

No quiero que le tapen la cara con pañuelos
para que se acostumbre con la muerte que lleva.
Vete, Ignacio: No sientas el caliente bramido.
Duerme, vuela, reposa: ¡También se muere el mar!

4. Alma ausente

No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce el niño ni la tarde
porque te has muerto para siempre.

No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.

El otoño vendrá con caracolas,
uva de niebla y monjes agrupados,
pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre.

Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.

No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de tu boca.
La tristeza que tuvo tu valiente alegría.
Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.

John Ashbery – Medo da morte

Que há comigo agora,
é assim que eu fiquei?
Não há estado livre dos limites
do antes e depois? Hoje a janela está aberta

e o ar jorra para dentro com notas de piano
nas suas saias, como a dizer, “Olha, John,
eu trouxe isso e aquilo” – ou seja,
alguns Beethovens, uns Brahms,

umas notas escolhidas de Poulenc… Sim,
está voltando a ficar livre, o ar, tem que seguir
voltando, pois é só para isso que serve.
Quero ficar com ele por causa do medo

que me impede de subir certos degraus,
bater em certas portas, medo de envelhecer
sozinho, e de não encontrar ninguém no fim da tarde
do caminho, salvo outro eu mesmo

cumprimentado bruscamente: “Você andou por aí
mas estamos juntos novamente, que é o que conta.”
Ar em meu caminho, você poderia encurtar isso,
mas a brisa cessou e o silêncio é a última palavra.

Trad.: Nelson Ascher

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 25/05/2020

Fear of Death

What is it now with me
And is it as I have become?
Is there no state free from the boundry lines
Of before and after? The window is open today

And the air pours in with piano notes
In its skirts, as though to say, “Look, John,
I’ve brought these and these” – that is,
A few Beethovens, some Brahmses,

A few choice Poulenc notes… Yes,
It is being free again, the air, it has to keep coming back
Because that’s all it’s good for.
I want to stay with it out of fear

That keeps me from walking up certain steps,
Knocking at certain doors, fear of growing old
Alone, and of finding no one at the evening end
Of the path except another myself

Nodding a curt greeting: “Well, you’ve been awhile
But now we’re back together, which is what counts.”
Air in My path, you could shorten this,
But the breeze has dropped, and silence is the last word.

Linda Pastan – Às vezes

Às vezes

da periferia
da família
onde me sento observando
meus filhos e
os filhos dos meus filhos
em toda sua brilhante
cacofonia,

pareço deixar
meu corpo –
efígie rechonchuda
de uma mulher, ereta
em uma cadeira –
e, enquanto flutuo
voluntariamente para longe

em direção ao frio
silêncio do meu próprio futuro,
suas vozes se separam
em sílabas
de estranhos, para quem
com esta mão real
eu aceno um adeus.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sometimes

from the periphery
of the family
where I sit watching
my children and
my children’s children
in all their bright
cacophony,

I seem to leave
my body–
plump effigy
of a woman, upright
on a chair–
and as I float
willingly away

toward the chill
silence of my own future,
their voices break
into the syllables
of strangers, to whom
with this real hand
I wave goodbye.

Linda Pastan – O que mais tememos

O que mais tememos

                     para R após o acidente

Fomos salvos uma vez mais
do que mais tememos.
Lembremo-nos deste momento.
Esqueçamo-lo se pudermos.
Agora mesmo, uma espécie de pó dourado
assenta-se sobre tudo:
na árvore do lado de fora,
embora não seja outono;
no açucareiro trincado,
tão cuidadosamente remendado outrora.
Essa luz não é redenção,
é apenas o sedimento do sol da tarde
em um dia comum,
diferente de qualquer outro.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

What We Fear Most

                                     for R after the accident

We have been saved one more time
from what we fear most.
Let us remember this moment.
Let us forget it if we can.
Just now a kind of golden dust
settles over everything:
the tree outside the window,
though it is not fall;
the cracked sugar bowl,
so carefully mended once.
This light is not redemption,
just the silt of afternoon sun
on an ordinary day,
unlike any other.

Linda Pastan – Em um país do norte

Ontem, em um país do norte,
minha última tia morreu, levando
com ela para o silêncio meu nome de solteira,
e não há mais ninguém
que a conheceu aqui
a quem eu pudesse contar.

Estou cansada da litania
dos meses, setembro… outubro…
Estou cansada de como as estações
continuam mudando, imitando
as estações da carne
que são reais e finitas.

O mundo nos fere
com sua beleza, como se soubesse
que em breve teríamos que deixá-lo.
Ela deve ter observado
o profundo lago canadense que amava
se cobrir de gelo precoce,

as derradeiras folhas
da bétula tremendo
como semimínimas, vibrato fora
da janela de seu quarto de doente,
até que novembro chegou
com seus ventos e as levou.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

In a Northern Country

Yesterday in a northern country
my last aunt died, taking
my maiden name with her into silence,
and there is no one left
who knew her here
for me to tell.

I am tired of the litany
of months, September… October…
I am tired of the way the seasons
keep changing, mimicking
the seasons of the flesh
which are real and finite.

The world wounds us
with its beauty, as if it knew
we had to leave it soon.
She must have watched
the deep Canadian lake she loved
sheathe itself in early ice,

the few last leaves
on the birch tree tremble
like half notes, vibrato
outside her sickroom window
until November came
with its winds and took them.

Linda Pastan – Bicicleta ergométrica

Você pedala furiosamente
rumo a um futuro que tenta
a todo custo prolongar
com este exercício,
embora a paisagem
que por aqui passa seja o tempo
passando, com suas listas
de coisas não feitas
ou mal feitas,
todo esse esforço,
a feroz monotonia
desse passeio, parece
muito com a própria vida –
vigorosamente indo
a lugar nenhum,
redimida em parte
pela imaginação, seu transe
de rios e árvores,
suas estradas sombreadas se desenrolando
além dos seus olhos fechados,
ou mesmo na tela da TV
que às vezes você assiste
enquanto pedala, milha
após milha de drama
se desdobrando enquanto você pedala
e pedala, progredindo
daqui para aqui,
a teóricas vinte
milhas por hora, suas pernas
começando a latejar como se
o corpo se comunicasse
em um código de dor, dizendo
não pense no futuro,
você está aqui
agora, viva.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Stationary Bicycle

You pedal furiously
into a future you’re trying
hard to prolong
by this exercise,
though the landscape
that rolls by here is time
passing, with its lists
of things undone
or not done properly,
all this effort,
the fierce monotony
of this ride feels
much like life itself –
going nowhere
strenuously,
redeemed in part
by the imagination, its trance
of rivers and trees,
its shady roads unwinding
just beyond your closed eyes,
or even on the tv screen
you sometimes watch
as you ride, mile
after mile of drama
unfolding while you pump
and pump, proceeding
from here to here
at twenty theoretical
miles per hour, your legs
beginning to throb as if
the body communicates
in a code of pain, saying
never mind the future,
you’re here
right now, alive.

Linda Pastan – Narciso aos 60

Se o amor não o tivesse tornado desastrado,
se ele não tivesse caído para frente,
se nunca tivesse se afogado
na própria perfeição,

o que ele teria pensado
sobre seu rosto envelhecido
à medida que mudava, ano após ano,
estação após estação?

Na antiga conspiração
entre o olho
e seu reflexo, o amor projeta
uma sombra primordial.

Talvez ele culpasse
a superfície enrugada do lago
pelo que via
ou pensasse que as manchas

em sua face outrora lisa
eram apenas pequenos peixes
logo abaixo da pele letal
da água.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Narcissus at 60

If love hadn’t made him clumsy,
if he hadn’t fallen forward,
had never drowned
in his own perfection,

what would he have thought
about his aging face
as it altered, year after year
season by season?

In the old conspiracy
between the eye
and its reflection, love casts
a primal shadow.

Perhaps he would blame
the wrinkling surface of the pool
for what he saw
or think the blemishes

on his once smooth cheek
were simply small fish
just beneath the lethal skin
of the water.

Linda Pastan – 1932–

Outro dia vi meu nome impresso
com 1932 e um espaço em branco depois
e soube que, agora mesmo, uma margem gramada
já espera pelo meu túmulo. E que em algum lugar,

já existe uma lápide de mármore cinza
na qual o número final será gravado —
como se a própria pedra estivesse de alguma forma faminta
por definição. Quando eu namorava firme,

nos anos de colégio, era o nome do meu namorado
que eu experimentava, ouvindo como se encaixava com o meu;
depois, nomes de estrelas de cinema em algum sucesso.
Meu marido era anônimo como chuva.

Há um número por aí, par ou ímpar,
que se tornará familiar para meus filhos
e minha filha (Eles são os vivos em quem
penso agora: Peter, Rachel, Stephen).

Eu o imagino: quatro algarismos enfileirados
5 ou 7, 6 ou 2 ou 9:
um ponto final; silêncio; um verso conclusivo;
um martelo prestes… a desferir seu golpe.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

1932–

I saw my name in print the other day
with 1932 and then a blank
and knew that even now some grassy bank
just waited for my grave. And somewhere a grey

slab of marble existed already
on which the final number would be carved—
as if the stone itself were somehow starved
for definition. When I went steady

in high school years ago, my boyfriend’s name
was what I tried out, hearing how it fit
with mine; then names of film stars in some hit.
My husband was anonymous as rain.

There is a number out there, odd or even
that will become familiar to my sons
and daughter. (They are the living ones
I think of now: Peter, Rachel, Stephen.)

I picture it, four integers in a row
5 or 7, 6 or 2 or 9:
a period; silence; an end-stopped line;
a hammer poised … delivering its blow.

Linda Pastan – Primos

Nos encontramos em funerais
a cada poucos anos — mais uma estrela
na constelação da nossa família
que se extingue — e mesmo sob aquela luz
tênue, parecemos completamente
diferentes, completamente os mesmos.
“O que tem feito ultimamente?”
perguntamos uns aos outros, “Como
tem passado?” Nessas horas,
o passado é mais palpável
do que nossos filhos esperando
em casa ou as esposas e os maridos nos
puxando pelas mangas. “Lembra…?”
perguntamos, “Lembra da vez que…?
E o riso é tão doloroso
como se nossas costelas tivessem fissuras
secretas nelas.
Nossas infâncias permanecem
apenas nos contornos pontiagudos
de nossos narizes, no formato
de nossos olhos, na forma como nossos genes chamam
uns aos outros nas notas agudas
que só os parentes podem ouvir.
Quanto da memória
é imaginação? E se a perda
é uma ausência, por que fica
tão intensa? Estas são as perguntas
que queremos fazer quando indagamos: “Onde
você está morando agora?” ou
“Quantos anos tem o seu caçula?”
Às vezes, sinto a tristeza
dessas ocasiões crescer
em mim até me tornar
um instrumento em que a linguagem se eleva
como música. Mas tudo
que os outros conseguem ouvir
é minha voz estrangulada dizendo
“Adeus…”, dizendo
“Mantenha contato…”
com o tipo de som
que uma gaita de fole faz com seu som arfante
e até mesmo com sua marcha fúnebre.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Cousins

We meet at funerals
every few years—another star
in the constellation of our family
put out—and even in that failing
light, we look completely
different, completely the same.
“What are you doing now?”
we ask each other, “How
have you been?” At these times
the past is more palpable
than our children waiting
at home or the wives and husbands tugging
at our sleeves. “Remember…?”
we ask, “Remember the time…?
And laughter is as painful
as if our ribs had secret
cracks in them.
Our childhoods remain
only in the sharp bones
of our noses, the shape
of our eyes, the way our genes call out
to each other in the high-pitched notes
that only kin can hear.
How much of memory
is imagination? And if loss
is an absence, why does it grow
so heavy? These are the questions
we mean when we ask: “Where
are you living now?” or
“How old is your youngest?”
Sometimes I feel the grief
of these occasions swell
in me until I become
an instrument in which language rises
like music. But all
that the others can hear
is my strangled voice calling
“Goodbye…” calling
“Keep in touch…”
with the kind of sound
a bagpipe makes, its bellow heaving
and even its marching music funereal.