Linda Pastan – Fantasmas

Fantasmas

Nós abandonamos os mortos. Nós os abandonamos.
– Joseph Fasano

Abandonamos os mortos como eles
nos abandonaram. Mas às vezes
o fantasma de minha mãe senta-se ao pé da cama

tentando me consolar por todas
as outras perdas: meu pai desejando
ser perdoado, perdoar;

a longa fila de primos e tias
pacientemente esperando suas vezes
de serem lembrados; os cães

que já foram minhas sombras
ganindo agora nos portões do além.
Minha mãe alisa meu travesseiro

como se fosse um campo de neve
pronto para ser arado por sonhos onde,
por momentos breves, meus mortos voltam:

Jon ainda criança com o boné militar do meu tio,
Franny com o rosário dos dias
deslizando entre seus dedos.

Às vezes, vagueio pela
galeria de túmulos, lendo
as lápides, lembrando de um lugar

onde as cinzas que espalhei uma vez
sopraram de volta no vento, manchando
minha testa com seu alfabeto escuro.

Na casa onde cresci,
as mesmas árvores sentinelas
sombreiam a varanda

como sombreavam os verdes anos
da minha infância, quando meus mortos
estavam vivos e cheios de promessa.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ghosts

We abandon the dead. We abandon them.
Joseph Fasano

We abandon the dead as they
abandoned us. But sometimes
my mother’s ghost sits at the foot of the bed

trying to comfort me for all
the other losses: my father longing
to be forgiven, to forgive;

the long line of cousins and aunts
patiently waiting their turns
to be remembered; the dogs

who were my shadows once
whining now at the gates of the afterlife.
My mother smoothes my pillow

as though it were a field of snow
ready to be plowed by dreams where
for brief moments my dead come back:

Jon as a toddler in my uncle’s army cap,
Franny with the rosary of days
slipping through her fingers.

At times I wander through
the library of graves, reading
the headstones, remembering a place

where the ashes I scattered once
blew back on the wind, staining
my forehead with their dark alphabet.

In the house where I grew up,
the same sentinel trees
shade the porch

as they shaded the green years
of my childhood when my dead
were alive and full of promise.

Linda Pastan – Uma precoce vida pós-morte

Uma precoce vida pós-morte

“…um homem sábio, em tempos de paz, deve preparar-se
para a guerra.”
Horácio

Por que não nos despedimos agora mesmo,
na falácia da saúde perfeita,
antes que o inevitável aconteça?
Poderíamos aperfeiçoar nossa forma de dizer adeus,
como aqueles personagens de A Hora Final1
que se despediram à sombra
da bomba enquanto, jovens e de mãos dadas,
assistíamos ao filme no cinema.
Poderíamos usar as palavras amorosas
que, de outra forma, não teríamos tempo de dizer.
Poderíamos nos abraçar por horas
em um ensaio geral perfeito.

Depois simplesmente continuaríamos,
pelos anos que nos restassem.
Os altos e baixos que estão por vir –
artérias se fechando como rios assoreados
ou células descontroladas nos empurrando rumo à saída –
seriam como posfácios de nossas vidas
e não importariam. E desfrutaríamos
de uma precoce vida pós-morte de dias comuns,
imunes ao clima inclemente
já previsto a longo prazo.
Nada poderia nos atingir. Nunca
teríamos que dizer adeus novamente.

Trad.: Nelson Santander

  1. “On the Beach” (“A Hora Final”, no Brasil) é um filme de 1959 dirigido por Stanley Kramer, baseado no romance homônimo de Nevil Shute. O enredo se passa em um mundo pós-apocalíptico, após uma guerra nuclear que devastou o hemisfério norte. Os sobreviventes na Austrália aguardam a chegada inevitável da radiação letal. O filme é estrelado por Gregory Peck, Ava Gardner, Fred Astaire e Anthony Perkins. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

An Early Afterlife

“…a wise man in time of peace, shall make the necessary for war.”
Horácio

Why don’t we say good-bye right now
in the fallacy of perfect health
before whatever is going to happen
happens. We could perfect our parting,
like those characters in On the Beach
who said farewell in the shadow
of the bomb as we sat watching,
young and holding hands at the movies.
We could use the loving words
we otherwise might not have time to say.
We could hold each other for hours
in a quintessential dress rehearsal.

Then we would just continue
for however many years were left.
The ragged things that are coming next –
arteries closing like rivers silting over
or rampant cells stampeding us to the exit –
would be like postscripts to our lives
and wouldn’t matter. And we would bask
in an early afterlife of ordinary days,
impervious to the inclement weather
already in our long-range forecast.
Nothing could touch us. We’d never
have to say good-bye again.

Linda Pastan – Ética

Na aula de ética, há muitos anos,
nosso professor fazia a seguinte pergunta todo outono:
se houvesse um incêndio em um museu,
o que você salvaria: um quadro de Rembrandt
ou uma mulher idosa que não teria muitos anos
pela frente? Inquietos em cadeiras duras,
pouco preocupados com quadros ou com a velhice,
optávamos um ano pela vida, no outro pela arte
e sempre sem muita convicção. Às vezes,
a mulher tomava emprestado o semblante de minha avó,
e saía de sua cozinha habitual para vagar
por algum museu frio e meio imaginário.
Um ano, me achando esperta, respondi:
por que não deixar a mulher decidir por si mesma?
A Linda, relataria o professor, evita
os fardos da responsabilidade.

Neste outono, em um museu de verdade, eu mesma
uma mulher idosa, ou quase isso, estou
diante de um Rembrandt de verdade. As cores
dentro deste quadro são mais sombrias que o outono,
mais sombrias até do que o inverno — os tons de terra,
embora os elementos mais radiantes da terra queimem
através da tela. Agora sei que a mulher
e a pintura e as estações são quase uma só coisa
e não podem ser salvas por nenhuma criança.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ethics

In ethics class so many years ago
our teacher asked this question every fall:
if there were a fire in a museum
which would you save, a Rembrandt painting
or an old woman who hadn’t many
years left anyhow? Restless on hard chairs
caring little for pictures or old age
we’d opt one year for life, the next for art
and always half-heartedly. Sometimes
the woman borrowed my grandmother’s face
leaving her usual kitchen to wander
some drafty, half imagined museum.
One year, feeling clever, I replied
why not let the woman decide herself?
Linda, the teacher would report, eschews
the burdens of responsibility.
This fall in a real museum I stand
before a real Rembrandt, old woman,
or nearly so, myself. The colors
within this frame are darker than autumn,
darker even than winter — the browns of earth,
though earth’s most radiant elements burn
through the canvas. I know now that woman
and painting and season are almost one
and all beyond saving by children.

Linda Pastan – depois de uma pequena cirurgia

depois de uma pequena cirurgia

este é o ensaio geral

quando o corpo
como um amante fiel
flerta pela primeira vez
com a infidelidade

quando o corpo
como um passageiro em uma longa viagem
ouve o condutor chamar
o nome
da primeira parada

quando o corpo
com todo seu medo e astúcia
faz promessas
que sabe
que não pode cumprir

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

after minor surgery

this is the dress rehearsal

when the body
like a constant lover
flirts for the first time
with faithlessness

when the body
like a passenger on a long journey
hears the conductor call out
the name
of the first stop

when the body
in all its fear and cunning
makes promises to me
it knows
it cannot keep

Linda Pastan – A morte do eu

Como páginas descartadas
do livro
do outono, as folhas
caem tremendo

em vermelho e sépia,
cada uma um poema
ou história,
uma carta não lida.

Pense nos incêndios
na antiga Alexandria,
a fumaça volumosa
de pergaminhos em chamas.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Death of the Self

Like discarded pages
from the book
of autumn, the leaves
come trembling down

in red and umber,
each a poem
or story,
an unread letter.

Think of the fires
in ancient Alexandria,
the voluminous smoke
of parchment burning.

Linda Pastan – A vida que não vivi

A vida que não vivi

aconteceu na Itália:
figos pretos e damascos dourados;
um soar de sinos;
a vibrante réplica das aves
tão migratórias quanto eu era.
Ou em Paris, com seu clássico labirinto
de prédios e pontes
onde o francês se aperfeiçoava
em minha boca, já bêbada
de vinho e marcada por beijos.
Uma taça de prosecco gelado
a cada manhã… aquele belo
rapaz belga a cada tarde…
uma única rosa amarela se tornou
meu marca-páginas de haste longa.
Aprendi sobre o mundo da mesma forma
que algumas mulheres aprendem sobre suas cozinhas –
todas aquelas vielas não varridas, a aparência limpa
dos desertos, as fronteiras-facas afiadas
entre homens e países.
E o tempo passava tão devagar
e tão depressa, um rio
cuja nascente está escondida lá no alto
na curva de uma montanha:
congelamento, desenfreado degelo
e novo congelamento.
Como seixos naquele leito de rio,
houve crianças
perfeitas pelo caminho
e poemas de tempo em tempo.
Mas a arte que importava
era a vida plenamente vivida,
estrofe por estrofe entumescida.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Life I Didn’t Lead

took place in Italy:
black figs and gilded apricots;
a clatter of bells;
the vivid repartee of birds
as migratory as I was.
Or in Paris with its classical maze
of buildings and bridges
where French perfected itself
in my mouth, already lush
with wine and bruised with kisses.
A flute of chilled prosecco
every morning… that beautiful
Belgian boy each afternoon…
a single yellow rose became
my long-stemmed bookmark.
I learned the world the way
some women learn their kitchens–
all those unswept alleys, the scoured look
of deserts, the knife-edged borders
between men and countries.
And time went by so slowly,
and so fast, a river
whose source is hidden high
in the curve of a mountain:
freeze and frantic meltdown
and freeze again.
Like pebbles in that riverbed
there were perfect
children along the way
and poems from time to time.
But the art that mattered
was the life led fully,
stanza by swollen stanza.

Linda Pastan – A secretária eletrônica

Ligo e escuto sua voz
na secretária eletrônica
semanas após sua morte,
um fantasma inexperiente que ainda anseia
por mensagens humanas.

Devo deixar uma, contando
como o tecido de nossas vidas
foi rasgado antes do tempo,
e que esse rasgo repentino não
será remendado logo nem facilmente?

Na sua casa que se esvazia, outros
enrolam tapetes, empacotam livros,
tomam café à sua mesa antiga,
e escutam as mensagens deixadas
em uma máquina assombrada

pelo timbre da sua voz,
mais palpável do que fotografias
ou impressões digitais. Neste primeiro dia
deste primeiro outono sem você,
constrangida e resistindo,

mas compelida, disco novamente
o número que sei de cor
– grata, em um mundo diminuído,
pela misericórdia acidental das máquinas –,
escuto e desligo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Answering Machine

I call and hear your voice
on the answering machine
weeks after your death,
a fledgling ghost still longing
for human messages.

Shall I leave one, telling
how the fabric of our lives
has been ripped before
but that this sudden tear will not
be mended soon or easily?

In your emptying house, others
roll up rugs, pack books,
drink coffee at your antique table,
and listen to messages left
on a machine haunted

by the timbre of your voice,
more palpable than photographs
or fingerprints. On this first day
of this first fall without you,
ashamed and resisting

but compelled, I dial again
the number I know by heart,
thankful in a diminished world
for the accidental mercy of machines,
then listen and hang up.

Linda Pastan – O Suicídio

Carregava consigo
aonde quer que fosse
um imposto sobre valor agregado de dor,
como um daqueles pesos

que um corredor prende
às pernas
para tornar o movimento
no espaço mais

deliberado.
E assim ela se moveu
pesadamente naqueles últimos
dias, confundindo

o horizonte
com a linha de chegada,
reescrevendo o roteiro
de sua própria vida

cujos finais alternativos
ela não ficaria aqui
tempo suficiente
para ler.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Suicide

She carried with her
wherever she went
a value-added tax of pain,
like one of those weights

a runner straps
to her legs
to make motion
through space more

deliberate.
And so she moved
heavily through those last
days, mistaking

the horizon
for the finish line,
rewriting the script
of her own life

whose alternative endings
she wouldn’t stay here
long enough
to read.

Linda Pastan – Os pássaros

estão indo para o sul, puxados
por uma bússola nos genes.
Eles não se deixam enganar
por este estranho verão de novembro,
enquanto permanecemos em nossas portas
usando vestidos de algodão.
Nós os observamos

enquanto eles mergulham e se reúnem —
a sombra das asas
cai sobre o coração.
Quando farfalham entre
os galhos vazios, as árvores
devem pensar que suas folhas perdidas
voltaram.

Os pássaros estão indo para o sul,
o instinto é a história mais antiga.
Eles voam sobre seus sósias,
os silentes cata-ventos,
ensinando-nos a todos
com as penas de suas caudas
o verdadeiro norte.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Birds

are heading south, pulled
by a compass in the genes.
They are not fooled
by this odd November summer,
though we stand in our doorways
wearing cotton dresses.
We are watching them

as they swoop and gather—
the shadow of wings
falls over the heart.
When they rustle among
the empty branches, the trees
must think their lost leaves
have come back.

The birds are heading south,
instinct is the oldest story.
They fly over their doubles,
the mute weathervanes,
teaching all of us
with their tailfeathers
the true north.

Linda Pastan – Em algum lugar do mundo

Em algum lugar do mundo
algo está acontecendo que
lentamente seguirá seu curso até aqui.

Uma frente fria virá destruir
as camélias, ou talvez será
uma onda de calor que irá queimá-las.

Um vírus viajará sem passaporte
ou papéis para me encontrar ao apertar
outra mão ou beijar uma face.

Em algum lugar, uma pequena discussão
teve início, umas poucas palavras acaloradas
incendeiam uma conflagração,

e o cheiro de fumaça
está a caminho;
o cheiro da guerra.

Onde quer que eu vá, bato na madeira —
em tampos de mesas ou troncos de árvores.
Lavo minhas mãos repetidamente.

Examino os jornais
e invento códigos de alarmes que não sejam
a data de nascimento do meu marido nem a minha.

Mas em algum lugar algo está acontecendo
contra o qual não há planejamento, apenas
aquelas duas velhas conspiradoras: Esperança e Sorte.

N. do T.: poema publicado pela primeira vez na Michigan Quarterly Review, no outono de 2007 (aqui: https://sites.lsa.umich.edu/mqr/2017/05/from-the-archive-somewhere-in-the-world-by-linda-pastan/).

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Somewhere in the World

Somewhere in the world
something is happening
which will make its slow way here.

A cold front will come to destroy
the camellias, or perhaps it will be
a heat wave to scorch them.

A virus will move without passport
or papers to find me as I shake
a hand or kiss a cheek.

Somewhere a small quarrel
has begun, a few overheated words
ignite a conflagration,

and the smell of smoke
is on its way;
the smell of war.

Wherever I go I knock on wood—
on tabletops or tree trunks.
I rinse my hands over and over again.

I scan the newspapers
and invent alarm codes which are not
my husband’s birth date or my own.

But somewhere something is happening
against which there is no planning, only
those two aging conspirators, Hope and Luck.