Ronald Wallace – Fora do registro

No sótão, encontro as anotações
que ele fez na universidade
há mais de quarenta anos: viva
o feriado de Ação de Graças!
, ele escreveu
nas margens da Psych 102.
E por um momento posso vê-lo lá,

sentir a exuberância fluindo
naquela estranha célula do seu corpo
onde ainda permaneço
um código secreto incompleto, um fragmento
de DNA, alguma matéria estelar ancestral.
E então encontro uma gravação minha

de 1948, quando ele tinha vinte e dois
e eu três anos de idade, e consigo ver,
do meu posto no alto de seus ombros,
ele parando no fliperama espalhafatoso,
inserindo sua moeda da sorte no
amanhã onde sempre estaríamos.

Talvez a imaginação seja apenas
uma forma de memória, afinal, aprisionada
nas profundezas da dupla hélice da eternidade.
Ou talvez o passado seja apenas mais uma
invenção fantasmagórica que usamos
para nos iludir, calçando os sapatos de outra pessoa.

Não é minha voz que quero ouvir
na página desbotada da memória, no disco da imaginação.
É a voz do meu pai ao fundo,
orientando-me, fazendo o melhor possível
para ficar fora do registro, suas instruções
sussurradas desaparecendo na estática.

Trad.: Nelson Santander

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Off the Record

In the attic I find the notes
he kept in college
over forty years ago: Hooray
for Thanksgiving vacation! he wrote
in the margin of Psych 102.
And for a moment I can see him there,

feel the exuberance surge through
that odd cell of his body
where I am still
a secret code uncompleted, a piece
of DNA, some ancient star-stuff.
And then I find a recording of me

from 1948, when he was twenty-two
and I was three, and I can see,
from my perch up on his shoulders,
him stopping at the gaudy arcade,
plugging his lucky quarter into
the future where we’d always be.

Maybe imagination is just
a form of memory after all, locked
deep in the double helix of eternity.
Or maybe the past is but one more
phantasmagoric invention we use
to fool ourselves into someone else’s shoes.

It is not my voice I want to hear
on memory’s fading page, on imagination’s disk.
It is my father’s in the background
prompting me, doing his best
to stay off the record, his hushed
instructions vanishing in static.

Leila Guenther – Amuleto

nem
trevo de quatro folhas
foto de filho, mãe ou marido
medalhinha da Virgem
lentilha do ano novo passado
bilhete de loteria
moeda furada
origami de pássaro
cordão umbilical
oração da prosperidade
mensagem de biscoito chinês
pirâmide de cristal
fitinha do senhor do Bonfim
folha de arruda
caroço de romã
olho grego
sachê de sal grosso
rosário bento
ou nota de dólar:

na carteira, dobrada em dois,
só a fotografia em preto e branco
de um pôr do sol em Marte

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 20/08/2019

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Anastasia Taylor-Lind – “Alcoólatras não sonham” não é uma metáfora

i.

Alcoólatras não sonham não é uma metáfora

Convido papai para o jantar
já que ele está morto pode aparecer a qualquer momento

ele chega aos 36 quando se tornou meu pai
e com a idade que eu tinha quando ele morreu

coloco pra tocar a mixtape da morte de papai que meu irmão fez
para a nossa viagem até o seu funeral

nós cantamos ‘Where Do The Children Play?’, de Cat Stevens,
e fumamos uns baseados nos fundos da casa

ii

o que vai ter para o jantar?

um jogo de infância de quando ele me alimentava
de armários vazios nos fins de semana
antes da ida à cidade e ao banco

o que você quer, responde papai,
abacaxis frescos, cocos inteiros,
um cesto de tâmaras amarelas?

Eu entro no jogo; pêssegos enlatados,
cestos de merengues, bolinhos torrados
de chá e balas de um centavo

esta noite as prateleiras da minha cozinha estão abarrotadas
eu arrumo a mesa e espalhamos Camembert
em uma baguete, escavamos abacates maduros,

arrancamos tomates secos da salmoura gordurosa
lambemos óleo de laranja de nossos dedos e polegares
ninguém bebe, nenhum tremor nas mãos

iii

em um canto do campo onde cresci
os ramos de amoras pretas ergueram um muro
de espinhos ao redor do túmulo de papai

galhos de lilases se enrolaram
ao redor da porta do trailer, o musgo rastejou
sobre pilhas de garrafas de vinho vazias

usando as antigas ferramentas de papai, meu irmão e eu
cavamos sua sepultura depois de assistir a um vídeo no YouTube
sobre como cavar uma cova

cavamos com pás entre as raízes,
torrões de argila
minhas palmas sangram quanto mais fundo chegamos

o mais difícil é permanecer no buraco,
um balançando a picareta, o outro uma pá,
costas com costas até atingirmos o lençol freático

Trad.: Nelson Santander

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Alcoholics don’t dream is not a metaphor

i.

Alcoholics don’t dream is not a metaphor

I invite Dad to dinner
since he’s dead he can show up any time

he arrives at 36 when he became my father
and the age I was when he died

I play the Dad’s dead mix-tape my brother made
for our drive to his funeral

we sing Cat Stevens’s ‘Where Do The Children Play?”
and smoke roll-ups out the back door

ii

what’s for dinner?

a childhood game for when he fed me
from empty end-of-week cupboards
before the trip to town and Giro

what do you want Dad replies
fresh pineapples, whole coconuts,
a bushel of yellow dates?

I play along; tinned peaches,
meringue nests, toasted tea
cakes and penny sweets

tonight my kitchen shelves are crammed
I lay the table and we slather Camembert
onto a French stick, spoon ripe avocados,

pluck sun dried tomatoes from the fatty brine
lick orange oil from our fingers and thumbs
no one drinks, no hands tremor

iii

in a corner of the field where I grew up
blackberry briars built a wall
of thorns around Dad’s grave

lilac wrapped limbs
around the caravan door, moss crept
over piles of empty wine bottles

using Dad’s old tools, my brother and I
dug his grave after watching a YouTube video
on how to dig a grave

we pitched spade through root,
clumps of clay
my palms bled the deeper we got

the harder to stay in the hole,
one swinging pick axe, the other a shovel,
back to back until we hit the water table

Joan Brossa – O tempo

Este verso é o presente.

O verso que você leu é o passado
– já envelheceu depois da leitura.
O que resta do poema é o futuro,
que existe fora da sua
percepção.

As palavras
estão aqui, se você as leu
ou não. E todo o poder terrestre
não pode mudar isso.

Trad.: Guilherme Gontijo Flores

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 19/08/2019

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El Temps

Aquest vers és el present.
El vers que heu llegit ja és el passat
—ja ha quedat enrera després de la lectura—.
La resta del poema és el futur,
que existeix fora de la vostra
percepció.

Els mots
són aquí, tant si els llegiu
com no. I cap poder terrestre
no ho pot modificar.

Seamus Heaney – Tempestade na ilha

Estamos preparados: construímos baixas nossas casas,
cobrimo-las com boa ardósia e embutimos as paredes na rocha.
Esta terra ressequida nunca nos incomodou
Com feno, logo, como você pode ver, não há pilhas
De palhas que possam ser perdidas. Nem árvores
Que possam estar presentes quando ela atinge toda
Sua potência: você sabe o que eu quero dizer – folhas e galhos
Podem formar um coro trágico em uma tempestade,
De modo que você ouve o que teme,
Esquecendo que aquilo está atingindo também a sua casa.
Mas não há árvores, nem abrigo natural.
Poder-se-ia pensar que o mar é uma companhia,
Explodindo confortavelmente sobre as falésias,
Mas não: quando ela começa, os jatos lançados alcançam
As próprias janelas, cospem como um gato domesticado
Tornando-se selvagem. Ficamos quietos enquanto o vento
Mergulha e metralha, invisível. O vácuo é uma salva,
Somos bombardeados pelo espaço vazio.
Estranho: é um enorme nada o que tememos.

Trad.: Nelson Santander

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Storm on the Island

We are prepared: we build our houses squat,
Sink walls in rock and roof them with good slate.
This wizened earth has never troubled us
With hay, so, as you see, there are no stacks
Or stooks that can be lost. Nor are there trees
Which might prove company when it blows full
Blast: you know what I mean – leaves and branches
Can raise a tragic chorus in a gale
So that you listen to the thing you fear
Forgetting that it pummels your house too.
But there are no trees, no natural shelter.
You might think that the sea is company,
Exploding comfortably down on the cliffs
But no: when it begins, the flung spray hits
The very windows, spits like a tame cat
Turned savage. We just sit tight while wind dives
And strafes invisibly. Space is a salvo,
We are bombarded with the empty air.
Strange, it is a huge nothing that we fear.

Joseph Stroud – Perdido

O cervo se distancia de mim e continua sem pressa
ao longo da colina sem sequer olhar para trás,
para onde estou, e de onde começo a cruzar
um campo de neve dentro do meu corpo e me perco
enquanto uma cinza branca cai do céu encobrindo meus rastros
e não há como encontrar o caminho de volta.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/08/2019

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Lost

The deer turns his head away from me and casually
continues along the ridge not even glancing back
to where I stand, to where I begin to walk across
a field of snow inside my body and lose myself
as a white ash drifts from the sky filling my tracks
and there is no way to find my way back.

Mary Oliver – Rosas no final do verão

O que acontece
com as folhas depois
que ficam vermelhas e douradas
e caem? O que ocorre

com as aves canoras
quando não podem mais
cantar? O que acontece
com suas asas ágeis?

Você acha que existe algum
paraíso pessoal
para qualquer um de nós?
Você acha que,

do outro lado da escuridão,
alguém irá nos chamar, a nós?
Além das árvores,
as raposas continuam ensinando seus filhotes

a viver no vale.
Por isso, elas nunca parecem desaparecer, estão sempre lá
no florescer da luz
que se ergue a cada manhã

no céu escuro.
E sobre mais um conjunto de colinas,
à beira-mar,
as últimas rosas abriram suas fábricas de suavidade

e devolvem-na ao mundo.
Se eu tivesse outra vida,
gostaria de consumi-la toda em alguma
felicidade desmedida.

Seria uma raposa, ou uma árvore
cheia de galhos ondulantes.
Não me importaria de ser uma rosa
em um campo cheio de rosas.

O medo ainda não lhes ocorreu, nem a ambição.
A razão ainda não passou por suas mentes.
Elas não se perguntam por quanto tempo devem ser rosas, e depois o quê.
Ou qualquer outra pergunta tola.

Trad.: Nelson Santander

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Roses, Late Summer

What happens
to the leaves after
they turn red and golden and fall
away? What happens

to the singing birds
when they can’t sing
any longer? What happens
to their quick wings?

Do you think there is any
personal heaven
for any of us?
Do you think anyone,

the other side of that darkness,
will call to us, meaning us?
Beyond the trees
the foxes keep teaching their children

to live in the valley.
so they never seem to vanish, they are always there
in the blossom of the light
that stands up every morning

in the dark sky.
And over one more set of hills,
along the sea,
the last roses have opened their factories of sweetness

and are giving it back to the world.
if I had another life
I would want to spend it all on some
unstinting happiness.

I would be a fox, or a tree
full of waving branches.
I wouldn’t mind being a rose
in a field full of roses.

Fear has not yet occurred to them, nor ambition.
Reason they have not yet thought of.
Neither do they ask how long they must be roses, and then what.
Or any other foolish question

José Hierro – Réquiem

Manuel del Río, natural
da Espanha, faleceu no sábado,
onze de maio, em consequência
de um acidente. Seu cadáver
está estendido na funerária
D´Agostino. Haskell. Nova Jersey.
Uma missa cantada será celebrada
às nove e meia, em St. Francis.

É uma história que começa
com sol e pedra, e que termina
sobre uma mesa, no D’Agostino,
com flores e círios elétricos.
É uma história que começa
em uma margem do Atlântico.
Continua em uma cabine
de terceira, sobre as ondas
– sobre as nuvens – das terras
submersas antes de Platão.
Encontra na América seu termo
com uma grua e um hospital,
com um obituário e uma missa
cantada na igreja St. Francis.

Afinal, qualquer lugar
é lugar de se morrer:
o que se perfuma de alecrim,
o esculpido em pedra, ou em neve,
o encharcado de petróleo.
Tanto faz que um corpo se torne
pedra, petróleo, neve, aroma.
O doloroso não é morrer
aqui ou lá…
Requiem aeternam,
Manuel del Río. Sobre o mármore
no D’Agostino pastam touros
da Espanha, Manuel e as flores
(funeral de segunda, caixão
que cheira a abetos do inverno)
quarenta dólares. E colocaram
umas flores artificiais
entre as outras que arrancaram
do jardim… Liberame domine
de morte aeterna… Quando morrem
James ou Jacob verão as flores
que Giulio ou Manuel pagaram…

Agora descem às tuas cimeiras
garras de águia. Dies irae.
O doloroso não é morrer
Dies illa aqui ou lá,
mas sem glória…
Teus avós
fecundaram toda a terra,
a embeberam de aventura.

Quando caía um espanhol
mutilava-se o universo.
Não os velavam na Funerária
D´Agostino, mas entre piras,
entre cavalos e armas. Heróis
para sempre. Estátuas de rosto
apagado. Vestidos ainda
com cores de papagaio,
de poder e fantasia.

Ele não caiu assim. Não morreu
por nenhuma bela loucura.
(Faz muito que o espanhol
morre de anonimato e sensatez,
ou de dilacerantes disparates
entre irmãos: quando golpeia
odres de vinho, derrama
sangue fraterno). Veio um dia
porque sua terra é pobre. O mundo
Liberame Domine é pátria.
E morreu. Não fundou cidades.
Não deu seu nome a algum mar. Não fez
mais do que morrer por dezessete
dólares (ele os pensaria
em pesetas). Requiem aeternam.
E no D’Agostino o visitam
os poloneses, os irlandeses,
os espanhóis, aqueles que morrem
no week-end.

Requiem aeternam
Definitivamente tudo
terminou. Seu corpo
se encontra na Funerária
D´Agostino. Haskell. Nova Jersey.
Uma missa cantada será celebrada
por sua alma.
Limitei-me
a refletir aqui sobre um obituário
de um jornal de Nova York.
Objetivamente, sem arroubos
no verso. Objetivamente.
Um espanhol como milhões
de espanhóis. Não disse a ninguém
que estive a ponto de chorar.

Trad.: Nelson Santander

Na página seguinte, você poderá ler (em espanhol) uma análise aprofundada deste poema, que na temática e desenvolvimento, lembra bastante o famoso poema de Ferreira Gullar, “Notícia da morte de Alberto Silva”, já publicado em nosso blog (https://singularidadepoetica.art/2019/07/28/ferreira-gullar-noticia-da-morte-de-alberto-da-silva/).

Vale a pena conferir: https://poemario.org/requiem/

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 15/08/2019

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Réquiem

Manuel del Río, natural
de España, ha fallecido el sábado
once de mayo, a consecuencia
de un accidente. Su cadáver
está tendido en D′Agostino
Funeral Home. Haskell. New Jersey.
Se dirá una misa cantada
a las nueve treinta, en St. Francis.

Es una historia que comienza
con sol y piedra, y que termina
sobre una mesa, en D′Agostino,
con flores y cirios eléctricos.
Es una historia que comienza
en una orilla del Atlántico.
Continúa en un camarote
de tercera, sobre las olas
-sobre las nubes- de las tierras
sumergidas ante Platón.
Halla en América su término
con una grúa y una clínica,
con una esquela y una misa
cantada, en la iglesia St. Francis.

Al fin y al cabo, cualquier sitio
da lo mismo para morir:
el que se aroma de romero,
el tallado en piedra, o en nieve,
el empapado de petróleo.
Da lo mismo que un cuerpo se haga
piedra, petróleo, nieve, aroma.
Lo doloroso no es morir
acá o allá…

Requiem aeternam,
Manuel del Río. Sobre el mármol
en D′Agostino, pastan toros
de españa, Manuel, y las flores
(funeral de segunda, caja
que huele a abetos del invierno),
cuarenta dólares. Y han puesto
unas flores artificiales
entre las otras que arrancaron
al jardín… Liberame domine
de morte aeterna… Cuando mueran
James o Jacob verán las flores
que pagaron Giulio o Manuel…

Ahora descienden a tus cumbres
garras de águila. Dies irae.
Lo doloroso no es morir
Dies illa acá o allá,
sino sin gloria…
Tus abuelos
fecundaron la tierra toda,
la empapaban de la aventura.
Cuando caía un español
se mutilaba el universo.
Los velaban no en D′Agostino
Funeral Home, sino entre hogueras,
entre caballos y armas. Héroes
para siempre. Estatuas de rostro
borrado. Vestidos aún
sus colores de papagayo,
de poder y fantasía.

El no ha caído así. No ha muerto
por ninguna locura hermosa.
(Hace mucho que el español
muere de anónimo y cordura,
o en locuras desgarradoras
entre hermanos: cuando acuchilla
pellejos de vino, derrama
sangre fraterna). Vino un día
porque su tierra es pobre. El mundo
Liberame Domine es patria.
Y ha muerto. No fundó ciudades.
No dió su nombre a un mar. No hizo
más que morir por diecisiete
dólares (él los pensaría
en pesetas). Requiem aeternam.
Y en D′Agostino lo visitan
los polacos, los irlandeses,
los españoles, los que mueren
en el week-end.

Requiem aeternam.
Definitivamente todo
ha terminado. Su cadáver
está tendido en D′Agostino
Funeral Home. Haskell. New Jersey.
Se dirá una misa cantada
por su alma.

Me he limitado
a reflejar aquí una esquela
de un periódico de New York.
Objetivamente, sin vuelo
en el verso. Objetivamente.
Un español como millones
de españoles. No he dicho a nadie
que estuve a punto de llorar.

Paul Bailey – Noturno

Certa vez, conheci um homem que desejava nunca ter nascido.
Ele falava sério quando dizia isso.
Ele não era um poseur.
Nos poucos e radiantes anos em que o conheci,
Ele nunca falava para causar impacto.

Ele dizia o que queria dizer, eu me lembro,
silenciosa e cuidadosamente,
enquanto tomávamos chá com torrada e ovos mexidos
em uma daquelas manhãs perfeitas
que sempre sucedem
a uma noite de êxtase.

Ele tinha a maneira luminosa de falar
daqueles em profundo desespero.
Tornava-se uma alegria estar com ele.
Ele via o lado engraçado de quase tudo.

Eu sabia que ele falava sério
quando se retirou decorosamente
com pílulas para dormir e vodka.
Sem forca, sem lâminas de barbear, sem sangue na banheira,
e nada tão perversamente imprudente
como um repentino mergulho sob um trem que se aproxima –
ele valorizava a sutileza.

Não revelarei seu nome.
Ele não teria desejado.
Ele verdadeiramente preferia o esquecimento.
Foi o habitat que ele escolheu.

Trad.: Nelson Santander

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Nocturnal

I knew a man once who wished he hadn’t been born.
He meant what he said.
He wasn’t a poseur.
In the few, radiant years I knew him
He never spoke for effect.

He said what he meant, I remember,
quietly, thoughtfully,
over tea and scrambled eggs on toast
on one of those perfect mornings
that always follows
a night of rapture.

He had the bright way of speaking
of those in the deepest despair.
He made himself a joy to be with.
He saw the funny side of almost everything.

I knew he had meant what he said
when he departed decorously
with sleeping pills and vodka.
No noose, no razor blades, no blood in the bath,
And nothing so wickedly inconsiderate
as a sudden plunge under an oncoming train –
he valued understatement.

I shan’t reveal his name.
He wouldn’t have wanted me to.
He really did prefer oblivion.
It was his chosen habitat.

Luis Alberto de Cuenca – O Sagrado

A maquiagem é suspeita, sempre.
Tu, recém-saída da cama,
sem nada além do teu glorioso
corpo desgastado pelas decepções
e pelos desenganos, mas ereto
como uma árvore ao vento da vida
que arrasta tudo pela frente:
essa é minha religião, a única
visão do sagrado que conheço.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/08/2019

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Lo Sagrado

El maquillaje es sospechoso siempre.
Tú, recién levantada de la cama,
sin nada que no sea tu glorioso
cuerpo gastado por las decepciones
y por los desengaños, pero erguido
como un árbol al viento de la vida
que se lo lleva todo por delante:
esa es mi religión, esa es la única
visión de lo sagrado que conozco.