Samuel Yellen – Como em uma marca d’água

Como em uma marca d’água, deciframos,
Por baixo do verniz da relva e dos ramos,
A obsoleta planta da fundação,
E onde corriam muros e construção.

Aqui, os cascalhos enterrados guardam
Vias trilhadas por pés que já não andam;
Cada fragmento que sobreviveu
Vela cicatrizes do que já morreu.

É fácil ler que aqui ficava a entrada,
Mas não o passado e sua aprisionada
Aversão. Lemos as linhas de um salão,
Mas não sua oculta e surda danação.

Lemos nessas esmaecidas ruínas
A calamidade que não discrimina;
Não de Pompéia o logro violento,
Mas a lava do tempo em movimento.

Trad.: Nelson Santander

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As in a Watermark

As in a watermark, we read
Beneath the gloss of grass and weed
The obsolete foundation plan
And where the walls and plumbing ran.

Here the sunken stones secrete
The pathways of now vanished feet;
Each surviving trace contrives
To shroud the scars of former lives.

With ease we read the door was here,
But not the bygone shut-in fear;
We read the contours of this room,
But not its muffled private doom.

We read in this eclipsed debris
The leveling catastrophe;
Not Pompeii’s crushing pantomime,
But the lava flow of time.

Mariana Spada – Bratislava

A primeira lufada de sol
se derramou preguiçosamente
sobre estátuas de heroísmo alheio
e ruas desertas após uma geada
que deve ter coberto de gelo a margem
do outro lado do Danúbio.

Bratislava ficou para trás.
O grande livro do mundo
se abre inteiramente esta manhã
e o balanço suave do vagão-restaurante
é como uma mãe que passa
cem vezes a escova em nosso cabelo
enquanto sussurra ao ouvido:
não há futuro que seja nosso
é pura ventura o presente
e o passado um cacho
curto e embaraçado.

Trad.: Nelson Santander

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Bratislava

La primera bocanada de sol
fue derramándose lacia
sobre estatuas de heroísmo ajeno
y calles desiertas al cabo de una helada
que habrá escarchado la orilla
al otro lado del Danubio.

Atrás quedó Bratislava.
El gran libro del mundo
se abre por completo esta mañana
y el meneo suave del vagón comedor
es como una madre que nos pasa
cien veces el cepillo por el pelo
mientras susurra al oído:
no hay futuro que sea nuestro
es todo dicha el presente
y el pasado un rizo
corto y enredado.

Alison C. Rollins – A Biblioteca de Babel

A Biblioteca de Babel

para Jorge Luis Borges

Enquanto ainda houver um pouco de luz
sobre a página, escrevo agora
uma história da neve, de tudo
o que já foi e ainda será pensado.
Quando um poeta cego diz Preciso que você
seja meus olhos, ele está pedindo para ver
através de sua boca.

Trad.: Nelson Santander

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The Library of Babel

for Jorge Luis Borges

While there is still some light
on the page, I am writing now
a history of snow, of everything
that has been and will be thought.
When a blind poet says I need you
to be my eyes, they are asking to see
through your mouth.

Jules Supervielle – A ponta da chama

Por toda sua vida,
Ele gostou de ler
À luz de uma vela
E com frequência passava
A mão sobre a chama
Para convencer-se
De que estava vivo,
De que estava vivo.

Desde o dia em que morreu
Ele mantém ao lado
Uma vela acesa,
Mas oculta as mãos.

Trad.: Nelson Santander. Tradução para o português, a partir da versão em inglês de W.S. Merwin (original em francês).

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The Tip of the Flame

All through his life
He had liked to read
By a candle
And often he passed
His hand over the flame
To convince himself
That he was alive,
That he was alive.

Since the day he died
He has kept beside him
A lighted candle
But he hides his hands.

Natasha Trethewey – Teorias sobre o tempo e o espaço

Pode-se chegar lá a partir daqui, embora
não haja como voltar para casa.

Todo lugar aonde for será algum lugar
onde você nunca esteve. Experimente isso:

siga para o sul pela Mississippi 49,
os marcos da estrada, um a um, assinalando

mais um minuto de sua vida. Siga por aí
até sua conclusão natural — ponto final

na costa, o píer em Gulfport onde
os cordames dos barcos de camarão são pontos soltos

em um céu que ameaça chuva. Atravesse
a praia artificial, 26 milhas de areia

despejada sobre um mangue — terreno
soterrado do passado. Traga apenas

o que precisa carregar — um tomo de memórias,
suas páginas em branco aleatórias. No cais,

onde você embarca para Ship Island,
alguém tirará sua foto:

a fotografia — quem você era —
estará lá à espera, quando voltar

Trad.: Nelson Santander

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Theories of Time and Space

You can get there from here, though
there’s no going home.

Everywhere you go will be somewhere
you’ve never been. Try this:

head south on Mississippi 49, one—
by—one mile markers ticking off

another minute of your life. Follow this
to its natural conclusion—dead end

at the coast, the pier at Gulfport where
riggings of shrimp boats are loose stitches

in a sky threatening rain. Cross over
the man-made beach, 26 miles of sand

dumped on a mangrove swamp—buried
terrain of the past. Bring only

what you must carry—tome of memory
its random blank pages. On the dock

where you board the boat for Ship Island,
someone will take your picture:

the photograph—who you were—
will be waiting when you return

Linda Gregg – Uma sede contrária

Há uma ânsia por ordem,
mas uma sede contrária. E se
toda vez que uma flor nascesse na mente
algo a entregasse ao tempo?
Folha por pétala, por folha. Como se a alma
fosse um mata-borrão deste mundo —
do maior, do mais úmido, do mais
cansado, do mais dilacerado. Tudo cantando,
mas nenhuma canção. Hamlet mais sombrio que a noite.
E a pobre Ofélia menor que as flores
que trazia. Ambos perdidos. Um morto,
a outra prestes a segui-lo.
Um pesado demais, outra frágil demais.
Ambos se descobrindo entre os caídos.
Sempre penso: é aqui
que Deus vive. Bem aqui,
neste lugar terrível e arruinado,
com ruas devastadas pelo néon,
em pleno inverno, varrido por ventos gelados.
Nestas avenidas de Chicago.

Trad.: Nelson Santander

A Thirst Against

There is a hunger for order,
but a thirst against. What if
every time a flower forms in the mind,
something gives it away to time?
Leaf by petal, by leaf. As if the soul
were a blotter of this world —
of the greater, the wetter, the more
tired, the more torn. All singing,
but no song. Hamlet darker than night.
And poor Ophelia less than the flowers
she wore. Both lost. One dead,
the other to follow soon.
One too heavy, one too frail.
Both finding themselves among the fallen.
Each time I think, it is here
that God lives. Right around here,
in this terrible, ruined place
with streets made desolate by neon,
in midwinter and freezing winds.
In these Chicago avenues.

Louis MacNeice – Uma catarata concebida como uma procissão de cadáveres

Cai o rio e por cima do peitoril caixões de funerais frios1
Tombam fundo e repousam na tumba selada da piscina,
E a água amarela limpa a campa e o calhau tampa o necrotério
E o rio-corcel salta e mergulha e borbulha em fúria e frenesi,
E os caixões se espalham, tambores se esbarram, águas escorrem.
E os corcéis-pantera erguem cascos e patas que puxam o caixão,
E os corpos cintilam na fluência fluvial, e da água seus queixos se inclinam
E sorvem o jato e lambem o trago e torcem as cabeças e grasnam,
Afogados e embriagados pela catarata que os arrasta e os enterra
E os soterra e os encerra e solfeja e zomba sobre seus ossos;
Os sons de órgãos que o vento desrepresa jamais penetrarão o fio da correnteza,
E tudo o que ouvirão será o cair dos cascos e o distante tilintar dos arreios,
O soar dos sinos nas cabeças dos cavalos e o riso do coveiro,
E o rumor que perderá seu vigor até se mesclar ao silêncio,
E então o minuto ouvido caindo, sem cessar de ser ouvido,
E depois o minuto seguinte e o minuto seguinte ao minuto seguinte.

Trad.: Nelson Santander

  1. Esse poema sinistro de MacNeice me lembrou o “Noturno Oprimido”, de Carlos Drummond de Andrade. Ambos os poemas exploram a força sombria e incontrolável da água como uma metáfora de morte e esquecimento. Em ambos, a água assume um papel ameaçador e inexorável, carregando consigo o peso de algo irreparável e macabro, com uma carga de sofrimento subjacente. No entanto, enquanto MacNeice enxerga a catarata como uma marcha fúnebre grandiosa e ritualística, Drummond descreve a água de maneira íntima, quase opressora, ligada ao espaço doméstico, onde ela simboliza uma presença sinistra e destrutiva que invade o cotidiano com uma “queixa feroz”. Assim, a água em Drummond torna-se um lamento daquilo que se aproxima e devasta, refletindo uma angústia mais introspectiva, enquanto em MacNeice, ela é a própria procissão da morte, carregada de força coletiva e inevitável. ↩︎

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A Cataract Conceived as the March of Corpses

The river falls and over the walls the coffins of cold funerals
Slide deep and sleep there in the close tomb of the pool,
And yellow waters lave the grave and pebbles pave its mortuary
And the river horses vault and plunge with their assault and battery,
And helter-skelter the coffins come and the drums beat and the waters flow.
And the panther horses lift their hooves and paw and shift and draw the bier,
The corpses blink in the rush of the river, and out of the water their chins they tip
And quaff the gush and lip the draught and crook their heads and crow,
Drowned and drunk with the cataract that carries them and buries them
And silts them over and covers them and lilts and chuckles over their bones;
The organ-tones that the winds raise will never pierce the water ways,
So all they will hear is the fall of hooves and the distant shake of harness,
And the beat of the bells on the horses’ heads and the undertaker’s laughter,
And the murmur that will lose its strength and blur at length to quietness,
And afterwards the minute heard descending, never ending heard,
And then the minute after and the minute after the minute after.

Carl Sandburg – O crepúsculo dos búfalos

Os búfalos se foram.
E os que viram os búfalos se foram.
Os que viram os búfalos aos milhares e como eles pisoteavam a relva da pradaria
     com seus cascos até reduzi-la a pó, suas grandes cabeças baixas, avançando
     em um grandioso cortejo ao crepúsculo,
Os que viram os búfalos se foram.
E os búfalos se foram.

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Buffalo Dusk

The buffaloes are gone.
And those who saw the buffaloes are gone.
Those who saw the buffaloes by thousands and how they pawed the
prairie sod into dust with their hoofs, their great heads down pawing
on in a great pageant of dusk,
Those who saw the buffaloes are gone.
And the buffaloes are gone.

W.S. Merwin – Rio

Li Po1, já se foi o pequeno bote
que o levou dez mil li2 rio abaixo
passando pelos gibões que chamavam
das duas margens e eles também se foram
e as florestas de onde chamavam
também se foram e você se foi e cada
som que você ouviu se foi
agora resta apenas o rio
que sempre seguiu seu próprio curso

Trad.: Nelson Santander

  1. Li Po (ou Li Bai) foi um dos maiores poetas da dinastia Tang, conhecido por suas composições líricas sobre a natureza, o vinho e a transitoriedade da vida. Sua poesia é frequentemente associada à estética taoísta, marcada por uma visão de mundo que enfatiza o fluxo e a impermanência. No poema “River”, W. S. Merwin faz uma referência direta a um famoso poema de Li Po (abaixo, em inglês), que descreve uma viagem de barco pelo rio Yangtzé, capturando a sensação de movimento e efemeridade. Merwin dialoga com essa obra ao evocar o poeta chinês e sua travessia, explorando o tema do desaparecimento e da memória, num tributo à própria transitoriedade da vida e da natureza.

    White King City I left at dawn in the morning
    glow of the clouds,

    The thousand-mile journey to Jiang Ling,
    completed in a single day,

    On either shore the gibbons’ chatter sounds
    without pause,

    While my light boat skims past thousands of crags.

    Em tradução livre:

    Cidade do Rei Branco, deixei ao amanhecer
    no brilho das nuvens matinais,
    A viagem de mil milhas até Jiang Ling,
    concluída em um só dia,
    Nas margens, o tagarelar incessante dos gibões,
    Enquanto meu leve bote desliza por mil rochedos.
    ↩︎
  2. Uma antiga unidade de medida chinesa de distância, ainda utilizada na China hoje em dia, embora seu valor tenha variado ao longo da história. Na época de Li Po, um “li” correspondia aproximadamente a 500 metros. Portanto, “dez mil li” representaria uma extensão significativa, cerca de 5.000 quilômetros, sendo usado poeticamente para sugerir uma longa jornada, muitas vezes exagerada para enfatizar a grandiosidade da travessia. ↩︎

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River

Li Po the little boat is gone
that carried you ten thousand li
downstream past the gibbons calling
all the way from both banks and they
too are gone and the forests they
were calling from and you are gone
and every sound you heard is gone
now there is only the river
that was always on its own way

Mary Oliver – Prece

Não precisa ser
a íris azul, pode ser
a erva daninha em um terreno baldio, ou algumas
pedras pequenas; apenas
preste atenção, então junte

algumas palavras e não tente
torná-las rebuscadas, isso não é
uma competição mas uma porta

que leva à gratidão, e a um silêncio onde
outra voz pode falar.

Trad.: Nelson Santander

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Praying

It doesn’t have to be
the blue iris, it could be
weeds in a vacant lot, or a few
small stones; just
pay attention, then patch

a few words together and don’t try
to make them elaborate, this isn’t
a contest but the doorway

into thanks, and a silence in which
another voice may speak.