Linda Pastan – Chove sobre a casa de Anne Frank

Chove sobre a casa
de Anne Frank
e sobre os turistas
amontoados sob a sombra
de seus guarda-chuvas,
sobre os perfeitamente silenciosos
turistas que prefeririam estar
em outro lugar
mas que aqui esperam em escadas
tão íngremes pelas quais devem subir
para alguma ocasião
no sótão vazio,
no banheiro pitoresco,
no esqueleto
de uma cozinha
ou no mapa —
cada uma de suas setas
uma farpa de arame —
com todas as datas, as expulsões,
os contornos proibitivos
dos continentes.
E por toda Amsterdam está chovendo
no Museu Van Gogh
aonde iremos apressados depois
para ver como outra pessoa
foi capaz de encontrar o puro
centro de luz
dentro do círculo escuro
de seus demônios.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 27/03/2021

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It is raining on the house of Anne Frank

It is raining on the house
of Anne Frank
and on the tourists
herded together under the shadow
of their umbrellas,
on the perfectly silent
tourists who would rather be
somewhere else
but who wait here on stairs
so steep they must rise
to some occasion
high in the empty loft,
in the quaint toilet,
in the skeleton
of a kitchen
or on the map—
each of its arrows
a barb of wire—
with all the dates, the expulsions,
the forbidding shapes
of continents.
And across Amsterdam it is raining
on the Van Gogh Museum
where we will hurry next
to see how someone else
could find the pure
center of light
within the dark circle
of his demons.

Linda Pastan – Os meses

Janeiro

Retorcidas pelo vento,
meras estruturas para gelo ou neve,
as árvores decidem
resistir por enquanto,

elas brotarão em abril.
E eu devo ser paciente
como as árvores —
uma resolução de inverno

que quebro novamente,
enquanto o frio pressiona
sua lâmina afiada
contra minha garganta.

Fevereiro

Após uma interminável
hibernação
no peitoril da janela,
a orquídea floresce —

pontos púrpuras bordados,
acima e abaixo,
numa fina haste.
Lá fora, a neve

derrete no ar e se transforma
em chuva.
Mês abreviado.
Todo tipo de clima.

Março

Quando o Rei dos Elfos veio
levar a criança
no poema de Goethe, o pai disse:
não tenha medo,

é apenas o vento…
Como se não fosse o vento
que leva embora os fragmentos
delicados deste mundo —

folhas remanescentes nos cantos
do jardim, uma rosa quaresmal
que pensou estar segura
ao florescer tão cedo.

Abril

No borrão em tons pastéis
do jardim,
a cereja
e a Cercis1

sacodem a chuva
de seus delicados
ombros, enquanto pétalas
da dogwood

rosa
descem pelas valetas
como oníricos
rios de cores.

Maio

Maçã-de-maio, narciso,
jacinto, lírio,
e junto aos degraus
da varanda da frente

todos os tons
ondulantes de lilás
e lavanda roxa,
a flor favorita de minha mãe,

doce respiração flutuando pelas
janelas abertas:
perfume da memória — condutora
da primavera.

Junho

O besouro de junho
na porta telada
zune como uma máquina
pequena e feia,

e um coro de sapos
e grilos zumbindo como Musak2
em todas as janelas.
O que não vemos claramente

nos conforta.
Cintilação de relâmpago, rosnado
de trovão — apenas o calor
limpando a garganta.

Julho

Nesta noite, os vagalumes
acendem suas breves
velas
em todas as árvores

de verão —
cor de flocos de lua,
cor de renda
fluorescente

onde o oceano arrasta
sua bainha rasgada
sobre a areia
escura.

Agosto

Descalça
e atordoada pelo sol,
mordo esse pêssego maduro
de um mês,

reunindo crianças
em meus braços
em toda sua glória
areenta,

enchendo
minha mesa todas as noites
com nada além
de milho e tomates.

Setembro

Seu romance de verão
acabou, mas os amantes
ainda se agarram
um ao outro

assim como as
folhas verdes se agarram
às árvores
no calor estranho

de setembro, como se
desta vez
não houvesse
outono.

Outubro

Quão repentinamente
a floresta
se transformou
novamente. Sinto-me

como Daphne3, parada
com os braços
estendidos em direção
à estação,

envolvida
pelas cores, coroada
com o dourado martelado
das folhas.

Novembro

Essas folhas
anônimas, seus corpos
molhados pressionados
contra a janela

ou caindo —
eu as conto
enquanto durmo,
absolvendo a gravidade,

absolvendo até mesmo a morte
que conhece como eu
os imperativos
da estação.

Dezembro

A pomba branca do inverno
perde suas primeiras
preciosas penas;
elas derretem

ao tocar
o chão quente
como notas
de uma música que já foi

familiar; a terra
estremece e
e se volta para
o solstício.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

  1. Cercis é o nome científico do gênero de árvores que inclui a Redbud, mencionada no original do poema. Optei por usar o termo Cercis em vez de manter “redbud” para aproveitar a meia-rima com a palavra “jardim” e criar a aliteração formada pelas palavras “cereja”, “Cercis” e “sacodem”, evocando o som da chuva sobre as plantas do jardim.
  2. Música ambiente
  3. Daphne, na mitologia grega, era uma ninfa da natureza, conhecida por sua beleza e conexão com o mundo natural. Segundo a lenda, ela foi transformada em uma árvore de loureiro para escapar do deus Apolo, que estava obcecado por ela. Essa história simboliza a profunda ligação entre Daphne e a natureza, mostrando sua identificação com o ambiente natural e sua escolha de se tornar parte dele.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/01/2024

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The Months

January

Contorted by wind,
mere armatures for ice or snow,
the trees resolve
to endure for now,

they will leaf out in April.
And I must be as patient
as the trees—
a winter resolution

I break all over again,
as the cold presses
its sharp blade
against my throat.

February

After endless
hibernation
on the windowsill,
the orchid blooms—

embroidered purple stitches
up and down
a slender stem.
Outside, snow

melts midair
to rain.
Abbreviated month.
Every kind of weather.

March

When the Earl King came
to steal away the child
in Goethe’s poem, the father said
don’t be afraid,

it’s just the wind. . .
As if it weren’t the wind
that blows away the tender
fragments of this world—

leftover leaves in the corners
of the garden, a Lenten Rose
that thought it safe
to bloom so early.

April

In the pastel blur
of the garden,
the cherry
and redbud

shake rain
from their delicate
shoulders, as petals
of pink

dogwood
wash down the ditches
in dreamlike
rivers of color.

May

May apple, daffodil,
hyacinth, lily,
and by the front
porch steps

every billowing
shade of purple
and lavender lilac,
my mother’s favorite flower,

sweet breath drifting through
the open windows:
perfume of memory—conduit
of spring.

June

The June bug
on the screen door
whirs like a small,
ugly machine,

and a chorus of frogs
and crickets drones like Musak
at all the windows.
What we don’t quite see

comforts us.
Blink of lightning, grumble
of thunder—just the heat
clearing its throat.

July

Tonight the fireflies
light their brief
candles
in all the trees

of summer—
color of moonflakes,
color of fluorescent
lace

where the ocean drags
its torn hem
over the dark
sand.

August

Barefoot
and sun-dazed,
I bite into this ripe peach
of a month,

gathering children
into my arms
in all their sandy
glory,

heaping
my table each night
with nothing
but corn and tomatoes.

September

Their summer romance
over, the lovers
still cling
to each other

the way the green
leaves cling
to their trees
in the strange heat

of September, as if
this time
there will be
no autumn.

October

How suddenly
the woods
have turned
again. I feel

like Daphne, standing
with my arms
outstretched
to the season,

overtaken
by color, crowned
with the hammered gold
of leaves.

November

These anonymous
leaves, their wet
bodies pressed
against the window

or falling past—
I count them
in my sleep,
absolving gravity,

absolving even death
who knows as I do
the imperatives
of the season.

December

The white dove of winter
sheds its first
fine feathers;
they melt

as they touch
the warm ground
like notes
of a once familiar

music; the earth
shivers and
turns towards
the solstice.

Linda Pastan – Memória de um pássaro

Memória de um pássaro

               Paul Klee, aquarela e lápis sobre papel

O que resta é um bico,
uma asa,
uma sensação de penas,

o resto, perdido
em um borrão pontilhista de minúsculos
retângulos.

O pássaro voou,
deixando para trás
uma ausência.

Essa é a própria
essência
do voo — um pássaro

tão veloz
que somente a memória
pode capturá-lo.

Trad.: Nelson Santander

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Memory of a Bird

               Paul Klee, watercolor and pencil on paper

What is left is a beak,
a wing,
a sense of feathers,

the rest lost
in an pointillist blur of tiny
rectangles.

The bird has flown,
leaving behind
an absence.

This is the very
essence
of flight—a bird

so swift
that only memory
can capture it.

Linda Pastan – À minha janela

Tenho pensado muito
sobre a neve,
a peregrinação muda
de todos aqueles flocos,
e nas errâncias escuras
das folhas.

Tenho seguido
todas as quatro estações
e observado como elas trilham
o mesmo caminho
pelos mesmos bosques,
repetidas vezes.

Costumava tomar uma infinidade
de trens, confiando
na estratégia dos trilhos,
da distância.
Embarquei em navios
confiando no norte arbitrário.

Agora fico parada
à minha janela
observando a neve
que só conhece uma direção,
caindo em silêncio
em direção ao silêncio.

Trad.: Nelson Santander

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At My Window

I have thought much
about snow,
the mute pilgrimage
of all those flakes
and about the dark wanderings
of leaves.

I have stalked
all four seasons
and seen how they beat
the same path
through the same woods
again and again.

I used to take a multitude
of trains, trusting
the strategy of tracks,
of distance.
I sailed on ships
trusting the arbitrary north.

Now I stand still
at my window
watching the snow
which knows only one direction,
falling in silence
towards silence.

Linda Pastan – 18 de dezembro: para M

Ao declinar do século,
com o aquecimento do clima
e até as estações perdendo o rumo,
ouça-me: é hora
de nos aquietarmos, de inclinarmos nossos rostos
em direção à luz e captarmos as notas musicais

que adoçam a língua
como flocos de neve caindo e derretendo
nesta manhã nua de dezembro.

Sua boca foi moldada para canções de ninar
ou hinos, e sua recusa
em cantar desconcerta

oitavas inteiras de ar. Chega
de abstinência. Cada dia
que se encerra se vai, não resta uma folha,

e em breve chegará
o tempo de adormecermos sob o império
de todo esse silêncio.

Trad.: Nelson Santander

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December 18: for M

At the waning of the century,
with the weather warming
and even the seasons losing their way

listen to me. It is time
to sit still, to tilt your face
to the light and catch the notes of music

which sweeten the tongue
like snowflakes as they fall and melt
this bare December morning.

Your mouth was shaped for lullaby
or hymn, and your refusal
to sing bewilders

whole octaves of air. Enough
abstinence. Each day
that ends is gone, not a leaf is left

and soon enough it will be
time to sleep under the sway
of all that silence.

Linda Pastan – Consagrada a Apolo

Às vezes, sou Dafne1.
Minhas mangas farfalham
ao vento,
e sinto a raiz verde
do loureiro, nutrindo-se
ou sofrendo com a estação.

E já fui Niobe2,
toda mãe,
toda lágrimas,
além de mim mesma
escondida em algum lugar
na pedra essencial.

Você diz que escrevo
como um homem
e espera que eu
sorria.

Ou me segura como se
eu fosse estilhaçar;
e de fato me despedaço
em suas mãos
como peças de um vasto
e não solucionado quebra-cabeça.

Talvez seja de Apolo3
que eu ainda fuja,
apesar de sua música
e de seus métodos de cura.

Agora pinto minha boca
vermelha de sangue,
e em seus contornos,
secretos como qualquer rio,
sou Helena4 novamente,
e perigosa.

Trad.: Nelson Santander

  1. Na mitologia grega, Dafne foi uma ninfa que, para escapar do amor obsessivo de Apolo, foi transformada em uma árvore de louro por seu pai, o deus do rio Peneu. ↩︎
  2. Niobe era uma rainha que se gabava de ser superior à deusa Leto por ter mais filhos. Em retaliação, os filhos de Leto, Apolo e Ártemis, mataram todos os filhos de Niobe, e ela, consumida pela dor, foi transformada em pedra. ↩︎
  3. Apolo é o deus da música, da poesia, da cura e das artes. Ele é frequentemente associado à luz e à verdade. No poema, Apolo simboliza uma força poderosa e, apesar de seus atributos positivos (música e cura), é descrito como alguém de quem o eu-lírico parece sentir a necessidade de fugir, sugerindo uma resistência às expectativas masculinas e pressões externas. ↩︎
  4. Helena de Troia, conhecida por sua extraordinária beleza, foi a causa da Guerra de Troia após ser sequestrada por Páris. ↩︎

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Sacred to Apollo

Sometimes I am Daphne.
My sleeves rustle
in the wind,
and I feel the green root
of the bay, nourishing
or aching with the season.

And I have been Niobe,
all mother,
all tears,
but myself
somewhere hidden
in the essential stone.

You say I write
like a man
and expect me
to smile.

Or you hold me as though
I would break;
and indeed I come apart
in your hands
like pieces of a vast
and unsolved puzzle.

Perhaps it is Apollo
I still flee from,
despite his music
and his healing ways.

Now I paint my mouth
red for blood,
and in its twistings,
secret as any river,
I am Helen again
and dangerous.

Linda Pastan – 50 anos

Embora saibamos
como terminará—
em luto e silêncio—
seguimos com nossos dias comuns
como se os atos de ferver um ovo
ou arrumar uma cama
fossem tão pequenos
que deveriam ser ignorados
pela morte. E talvez

os poucos anos restantes, ensolarados,
mas sem um grande propósito,
de algum modo perdurem,
como um quadro de amantes que perdura
radiante e verdadeiro na parede
de algum obscuro museu holandês,
muito depois que os nomes
do artista e dos modelos
tenham desaparecido.

Trad.: Nelson Santander

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50 Years

Though we know
how it will end:
in grief and silence,
we go about our ordinary days
as if the acts of boiling an egg
or smoothing down a bed
were so small
they must be overlooked
by death. And perhaps

the few years left, sun drenched
but without grand purpose,
will somehow endure,
the way a portrait of lovers endures
radiant and true on the wall
of some obscure Dutch museum,
long after the names
of the artist and models
have disappeared.

Linda Pastan – Uma quase elegia para Tony Hoagland

Seus poemas me fazem querer
escrever meus próprios poemas,

o que é uma espécie de plagio
do espírito.

Mas quando sua morte me lembra
que a minha está a caminho,

fecho o livro, agarrando-me
a este frágil mundo como as folhas

lá fora, que se agarram à sua árvore
pouco antes de mudarem de cor e cair.

Preciso de tempo para ler todos os poemas
que você deixou para trás, que atravessam

a escuridão aqui à minha janela,
mas que nada fizeram para salvá-lo.

Trad.: Nelson Santander

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Almost an Elegy: For Tony Hoagland

Your poems make me want
to write my poems,

which is a kind of plagiarism
of the spirit.

But when your death reminds me
that mine is on its way,

I close the book, clinging
to this tenuous world the way the leaves

outside cling to their tree
just before they turn color and fall.

I need time to read all the poems
you left behind, which pierce

the darkness here at my window
but did nothing to save you.

Linda Pastan – Fantasmas

Fantasmas

Nós abandonamos os mortos. Nós os abandonamos.
– Joseph Fasano

Abandonamos os mortos como eles
nos abandonaram. Mas às vezes
o fantasma de minha mãe senta-se ao pé da cama

tentando me consolar por todas
as outras perdas: meu pai desejando
ser perdoado, perdoar;

a longa fila de primos e tias
pacientemente esperando suas vezes
de serem lembrados; os cães

que já foram minhas sombras
ganindo agora nos portões do além.
Minha mãe alisa meu travesseiro

como se fosse um campo de neve
pronto para ser arado por sonhos onde,
por momentos breves, meus mortos voltam:

Jon ainda criança com o boné militar do meu tio,
Franny com o rosário dos dias
deslizando entre seus dedos.

Às vezes, vagueio pela
galeria de túmulos, lendo
as lápides, lembrando de um lugar

onde as cinzas que espalhei uma vez
sopraram de volta no vento, manchando
minha testa com seu alfabeto escuro.

Na casa onde cresci,
as mesmas árvores sentinelas
sombreiam a varanda

como sombreavam os verdes anos
da minha infância, quando meus mortos
estavam vivos e cheios de promessa.

Trad.: Nelson Santander

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Ghosts

We abandon the dead. We abandon them.
Joseph Fasano

We abandon the dead as they
abandoned us. But sometimes
my mother’s ghost sits at the foot of the bed

trying to comfort me for all
the other losses: my father longing
to be forgiven, to forgive;

the long line of cousins and aunts
patiently waiting their turns
to be remembered; the dogs

who were my shadows once
whining now at the gates of the afterlife.
My mother smoothes my pillow

as though it were a field of snow
ready to be plowed by dreams where
for brief moments my dead come back:

Jon as a toddler in my uncle’s army cap,
Franny with the rosary of days
slipping through her fingers.

At times I wander through
the library of graves, reading
the headstones, remembering a place

where the ashes I scattered once
blew back on the wind, staining
my forehead with their dark alphabet.

In the house where I grew up,
the same sentinel trees
shade the porch

as they shaded the green years
of my childhood when my dead
were alive and full of promise.

Linda Pastan – Uma precoce vida pós-morte

Uma precoce vida pós-morte

“…um homem sábio, em tempos de paz, deve preparar-se
para a guerra.”
Horácio

Por que não nos despedimos agora mesmo,
na falácia da saúde perfeita,
antes que o inevitável aconteça?
Poderíamos aperfeiçoar nossa forma de dizer adeus,
como aqueles personagens de A Hora Final1
que se despediram à sombra
da bomba enquanto, jovens e de mãos dadas,
assistíamos ao filme no cinema.
Poderíamos usar as palavras amorosas
que, de outra forma, não teríamos tempo de dizer.
Poderíamos nos abraçar por horas
em um ensaio geral perfeito.

Depois simplesmente continuaríamos,
pelos anos que nos restassem.
Os altos e baixos que estão por vir –
artérias se fechando como rios assoreados
ou células descontroladas nos empurrando rumo à saída –
seriam como posfácios de nossas vidas
e não importariam. E desfrutaríamos
de uma precoce vida pós-morte de dias comuns,
imunes ao clima inclemente
já previsto a longo prazo.
Nada poderia nos atingir. Nunca
teríamos que dizer adeus novamente.

Trad.: Nelson Santander

  1. “On the Beach” (“A Hora Final”, no Brasil) é um filme de 1959 dirigido por Stanley Kramer, baseado no romance homônimo de Nevil Shute. O enredo se passa em um mundo pós-apocalíptico, após uma guerra nuclear que devastou o hemisfério norte. Os sobreviventes na Austrália aguardam a chegada inevitável da radiação letal. O filme é estrelado por Gregory Peck, Ava Gardner, Fred Astaire e Anthony Perkins. ↩︎

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An Early Afterlife

“…a wise man in time of peace, shall make the necessary for war.”
Horácio

Why don’t we say good-bye right now
in the fallacy of perfect health
before whatever is going to happen
happens. We could perfect our parting,
like those characters in On the Beach
who said farewell in the shadow
of the bomb as we sat watching,
young and holding hands at the movies.
We could use the loving words
we otherwise might not have time to say.
We could hold each other for hours
in a quintessential dress rehearsal.

Then we would just continue
for however many years were left.
The ragged things that are coming next –
arteries closing like rivers silting over
or rampant cells stampeding us to the exit –
would be like postscripts to our lives
and wouldn’t matter. And we would bask
in an early afterlife of ordinary days,
impervious to the inclement weather
already in our long-range forecast.
Nothing could touch us. We’d never
have to say good-bye again.