Linda Pastan – Mãe Eva

Claro que ela nunca foi uma criança,
tendo despertado certa manhã
já adulta e perfeita,
com apenas Adão, outro inocente,
para amá-la e instruí-la.
Não houve aprendizado, passo a passo,
de como andar, nem cotovelos ou joelhos machucados —
nenhuma pequena transgressão.
Havia apenas o monte redondo
e branco da lua subindo,
que não podia ser sugado
nem servir de apoio.
E talvez a serpente tenha falado
com uma voz feminina, maternal.
Oh, quem pode culpá-la?

Quando segurou seu próprio filho
nos braços, o que ela pensou
daquele novo animal? Será que amou Caim
demais ou de menos, ao olhar
para o seu corpo, agora imperfeito, como se sua costela,
como a de Adão, pudesse ter desaparecido?
Na liturgia das nomeações que continuou
para os filhos em vez de plantas,
nenhuma filha foi mencionada1.
Mas, gerações mais tarde, houve Raquel2,
toda mãe, que sabia
que trazer em dor uma criança ao mundo
é apenas o começo. Perdê-los
(e Benjamim tão jovem)
que é o castigo.

Trad.: Nelson Santander

  1. Esses versos aludem ao mito bíblico da criação, onde Adão nomeia todas as criaturas e plantas no Jardim do Éden (Gênesis 2:19-20). No poema, a “liturgia das nomeações” se estende aos filhos, mas a ausência de menção a uma filha destaca a marginalização das mulheres na narrativa tradicional, sugerindo uma crítica à invisibilidade da experiência feminina no texto bíblico. ↩︎
  2. Raquel, esposa de Jacó, mencionada no livro de Gênesis (Gênesis 29-35). Raquel, que inicialmente foi estéril, finalmente dá à luz José e, posteriormente, Benjamim. Durante o parto de Benjamim, Raquel sofre grandes dores e acaba morrendo (Gênesis 35:16-19). ↩︎

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Mother Eve

Of course she never was a child herself,
waking as she did one morning
full grown and perfect,
with only Adam, another innocent,
to love her and instruct.
There was no learning, step by step,
to walk, no bruised elbows or knees —
no small transgressions.
There was only the round, white mound
of the moon rising,
which could neither be suckled
nor leaned against.
And perhaps the serpent spoke
in a woman’s voice, mothering.
Oh, who can blame her?

When she held her own child
in her arms, what did she make
of that new animal? Did she love Cain
too little or too much, looking down
at her now flawed body as if her rib,
like Adam’s, might be gone?
In the litany of naming that continued
for children instead of plants,
no daughter is mentioned.
But generations later there was Rachel,
all mother herself, who knew
that bringing forth a child in pain
is only the start. It is losing them
(and Benjamin so young)
that is the punishment.

Linda Pastan – Para uma filha saindo de casa

Quando lhe ensinei,
aos oito anos, a andar
de bicicleta, trotando
ao seu lado
enquanto você se equilibrava
sobre duas rodas,
minha própria boca se abrindo
de surpresa ao vê-la
seguir em frente pela curva
do caminho do parque,
fiquei esperando
pelo estrondo
de seu tombo enquanto
corria para alcançá-la,
enquanto você ficava
menor e mais frágil
com a distância,
pedalando, pedalando
por sua vida, gritando
de tanto rir,
os cabelos esvoaçando
atrás de você como um
lenço acenando um
adeus.

Trad.: Nelson Santander

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To a Daughter Leaving Home

When I taught you
at eight to ride
a bicycle, loping along
beside you
as you wobbled away
on two round wheels,
my own mouth rounding
in surprise when you pulled
ahead down the curved
path of the park,
I kept waiting
for the thud
of your crash as I
sprinted to catch up,
while you grew
smaller, more breakable
with distance,
pumping, pumping
for your life, screaming
with laughter,
the hair flapping
behind you like a
handkerchief waving
goodbye.

Linda Pastan – Mamografia de Rotina

Estamos procurando por um verme
na maçã –
aquele fruto que, desde o Éden,

tem sido suscetível
ao frio
ou ao apetite.

O médico me mostra
fotografias aéreas,
paisagens lunares

de crateras e lagos,
falhas na superfície
por onde eu poderia cair um dia

vales onde cada sombra
poderia significar um eclipse
total.

Isso é apenas uma base1, ele diz,
como se meu corpo fosse um acampamento
a partir do qual se poderia começar a escalar.

Nas montanhas,
eles sonham com neve e ficam atentos
a avalanches.

Penso nas amazonas2
com apenas um
seio,
as cordas dos arcos
tensionando-se
para a guerra.

(Como podemos
nos
tocar novamente?)

Você está bem, o médico
me diz agora e sorri,
como se pudesse devolver a inocência,

como se pudesse devolver
à maçã
sua casca espiralada.

Trad.: Nelson Santander

  1. A mamografia de base é o exame inicial usado como referência para futuras comparações. É uma mamografia de rotina feita para estabelecer um ponto de partida na monitoração da saúde da mama, especialmente importante para detectar mudanças ao longo do tempo que possam indicar potenciais problemas. ↩︎
  2. A referência às amazonas com apenas um seio remete à figura das guerreiras da mitologia grega, conhecidas por sua destreza militar. Segundo a lenda, algumas amazonas amputavam ou queimavam um seio para melhor manusear armas como o arco e flecha. O poema utiliza essa imagem simbólica para explorar os temas da força, resistência e auto-sacrifício, evocando paralelos com a experiência contemporânea de mulheres enfrentando o risco de amputação da mama devido ao câncer. ↩︎

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Routine Mammogram

We are looking for a worm
in the apple–
that fruit which ever since Eden

has been susceptible
to frost
or appetite.

The doctor shows me
aerial photographs,
moonscapes

of craters and lakes,
faults in the surface
I might fall through one day

valleys where every shadow
could mean total
eclipse.

This is just a baseline, he says
as if my body were a camp
you could start climbing from.

In the mountains
they dream of snow and listen
for avalanche.

I think of Amazon women
with just one
breast,
their bowstrings
tightening
for war.

(How will we
ever
touch again?)

You’re fine, the doctor
tells me now and smiles,
as if he could give innocence back,

as if he could give back
to the apple
its spiraled skin.

Linda Pastan – Últimos Ritos

Ela desistiu do sexo.
Desistiu de viajar.
Desistiu da euforia
do álcool no cérebro
ao primeiro gole de vinho —
aquele doce ardor
ao deslizar pela garganta.
E as discussões,
as celebrações,
ela desistiu disso também,
como desistiu dos livros —
suas páginas pesadas demais para folhear.
O que resta é um borrão
de céu onde o tempo
ensaia seus próprios finais.
O que resta é o vazio azul
por trás da vela branca
da touca engomada da enfermeira,
conduzindo-a para o mar.

Trad.: Nelson Santander

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Last Rites

She’s given up sex.
She’s given up travel.
She’s given up the rush
of alcohol to the brain
at the first sip of wine—
that sweet burn
as it slips down the throat.
And her quarrels,
her celebrations,
she’s given them up too
as she’s given up books—
their pages too heavy to turn.
What’s left is a blur
of sky where the weather
rehearses its own finales.
What’s left is blue emptiness
behind the white sail
of the nurse’s starched cap,
steering her out to sea.

Linda Pastan – Conversa Imaginária

Você me diz para viver cada dia
como se fosse o último. Estamos na cozinha,
onde antes do café eu reclamo
do dia que terei pela frente — essa corrida de obstáculos
de minutos e horas,
mercados e médicos.

Mas por que o último?, pergunto. Por que não
viver cada dia como se fosse o primeiro —
todo puro espanto, Eva esfregando
os olhos ao despertar naquela primeira manhã,
o sol surgindo como
uma donzela no oriente?

Você tritura o café
com o rugido baixo de uma mente
tentando se limpar. Eu ponho
a mesa, e olho pela janela
onde o orvalho batizou cada
superfície viva.

Trad.: Nelson Santander

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Imaginary Conversation

You tell me to live each day
as if it were my last. This is in the kitchen
where before coffee I complain
of the day ahead—that obstacle race
of minutes and hours,
grocery stores and doctors.

But why the last? I ask. Why not
live each day as if it were the first—
all raw astonishment, Eve rubbing
her eyes awake that first morning,
the sun coming up
like an ingénue in the east?

You grind the coffee
with the small roar of a mind
trying to clear itself. I set
the table, glance out the window
where dew has baptized every
living surface.

Linda Pastan – Notícias da Turma

Minha turma do colégio de 1950
está desaparecendo além dos limites
do mundo — uma avalanche sem neve.
Rosalie da maquiagem carregada;
Alex que nos superou até na corrida rumo à morte;
três Susans, dois Davids, e um Roger.

Quando vejo o nome do nosso representante de
turma em um e-mail recebido,
penso em como as famílias devem ter se sentido
durante a Segunda Guerra Mundial quando viam
a bicicleta da Western Union se aproximando.

E lembro-me de todos nós enfileirados na aula
de ginástica enquanto os capitães escolhiam suas equipes.
A fila diminuía até que, ora em uma perna,
ora em outra, eu ficava quase sozinha.
Talvez quem esteja fazendo a escolha agora
pense que eu não seria boa em morrer.

Trad.: Nelson Santander

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Class Notes

My high school class of 1950
is disappearing over the edge
of the world—a snowless avalanche.
Rosalie of the pancake makeup;
Alex who outran us even towards death;
three Susans, two Davids, and a Roger.

When I see our class representative’s
name on an incoming email,
I think of how families must have felt
during World War II when they saw
the Western Union bicycle approaching.

And I remember all of us lining up
in gym class as captains chose their teams.
The line would dwindle until, on one leg
then the other, I was standing almost alone.
Maybe whoever is doing the choosing now
thinks that I would be no good at dying.

Linda Pastan – O último tio

O último tio está partindo
em sua nau fúnebre (a tradicional
limusine preta) após trancar
as portas atrás de si
para toda uma geração.

E veja: somos os mais velhos agora,
com nossos rotos retalhos
de história, solitários
na costa não mapeada
deste século novo e cru.

Trad.: Nelson Santander

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The last uncle

The last uncle is pushing off
in his funeral skiff (the usual
black limo) having locked
the doors behind him
on a whole generation.

And look, we are the elders now
with our torn scraps
of history, alone
on the mapless shore
of this raw, new century.

Linda Pastan – O Ordinário

Pode acontecer em um dia
de clima normal —
as flores de sempre reunidas,
ou folhas caídas
desgrenhando o gramado.
Você pode estar alimentando o cachorro,
ou tomando uma xícara de chá,
e então: o telegrama;
ou o telefonema;
ou a dor aguda percorrendo
todo o comprimento do seu
braço esquerdo, ou do dele.
E enquanto sua vida é mudada
para um trilho diferente
(a paisagem
através de janelas encardidas
é quase a mesma, embora
totalmente diferente) você se pergunta
por que o vento não
ruge e sopra como faz
tão convincentemente
em Lear, por exemplo.
É a patética falácia
que você almeja — as rosas
reduzidas a seus espinhos,
as folhas caídas,
itens para uma contagem de corpos.
E enquanto você se deita na cama
como uma efígie de si mesma,
é o ordinário
que vem salva-lo —
a xícara de chá de porcelana esperando
para ser lavada, o velhos cães
ganindo para sair.

Trad.: Nelson Santander

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The Ordinary

It may happen on a day
of ordinary weather—
the usual assembled flowers,
or fallen leaves
disheveling the grass.
You may be feeding the dog,
or sipping a cup of tea,
and then: the telegram;
or the phone call;
or the sharp pain traveling
the length of your
left arm, or his.
And as your life is switched
to a different track
(the landscape
through grimy windows
almost the same though
entirely different) you wonder
why the wind doesn’t
rage and blow as it does
so convincingly
in Lear, for instance.
It is pathetic fallacy
you long for—the roses
nothing but their thorns,
the downed leaves
subjects for a body count.
And as you lie in bed
like an effigy of yourself,
it is the ordinary
that comes to save you—
the china teacup waiting
to be washed, the old dogs
whining to go out.

Linda Pastan – Pilhagem: para uma jovem amiga

Em um dia tempestuoso de transição, de uma estação para a outra,
você falou sobre como foi ajudar sua mãe a fechar sua casa,
sobre as escolhas que teve de fazer — o que descartar,
o que manter — como se fosse sua própria infância
à espera de ser pilhada. Você conservou um tapete persa,
todo em vermelho e dourado, para nele pisar todos os dias,
mantendo vivo o passado sob seus pés;
aquelas bonecas russas com as quais você brincava
quando menina: avó, mãe, filha;
quatro cadeiras Bentwood desgarradas de sua mesa.
Eu ouvia, imaginando que seria a próxima a tentar
amontoar uma vida inteira de coisas
em um minguante universo de caixas.
Já comecei a desmantelar minha vida, jogando
fora cartas de pessoas que lembro ter amado,
escolhendo entre livros — este para ficar,
aquele para ir — como se eu fosse uma juíza
sentenciando alguns à morte, e o restante
ao purgatório da estante que se esvazia.
Talvez eu devesse simplesmente queimar tudo.
Mas não vivemos no que deixamos para trás?
No crepúsculo desbotado da Kodak? Em nossas facas
e colheres de prata oxidando na mesa eventual
de um neto? Eles não se tornaram
uma espécie de museu do além?
Os faraós estavam certos. Eles levaram
consigo todo seu mundo — vasos e baús,
estátuas douradas, joias — pilhados talvez,
mas não por mil anos.
A tumba de Nefertiti nunca foi encontrada.

Trad.: Nelson Santander

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Plunder: To a Young Friend

On a day of windy transition, one season to the next,
you spoke of helping your mother close her house,
of the choices you had to make—what to discard,
what to keep—as if it were your childhood itself
waiting to be plundered. You kept a Persian rug,
all reds and golds, to walk on every day,
keeping the past alive under your feet;
those nested Russian dolls you played with
as a girl: grandmother, mother, daughter;
four bentwood chairs wrenched from their table.
I listened, thinking I’d be next to try
to crowd a lifetime of things
into a shrinking universe of boxes.
I’ve started dismantling my life already, throwing
out letters from people I remember loving,
choosing among books—this one to stay,
that one to go—as if I were a judge
sentencing some to death, the rest
to the purgatory of the emptying shelf.
Perhaps I should simply burn it all.
But don’t we live on in what we’ve left behind?
In the fading twilight of Kodak? In our sterling
knives and spoons tarnishing on a grandchild’s
casual table? Don’t these become
a kind of museum of the afterlife?
The Pharaohs had it right. They took
their whole world with them—vases and chests,
gilded statues, jewels—plundered perhaps,
but not for a thousand years.
Nefertiti’s tomb has never been found.

Linda Pastan – A Turista

Fora de Nápoles,
vimos a entrada
para o submundo,
logo após comermos pizza
naquele lugar especial
e antes
de tomarmos a balsa
para Capri.
Poderíamos riscá-lo de nossa
lista de lugares para ver,
mas não havia nada
a ser visto.
Terra nua de atributos.
Ar incolor.
E ao nos lembrarmos de Odisseu
e sua jornada até aqui,
encontrando o fantasma
de sua mãe, morta há muito tempo,
nos sentimos logrados,
como se alguém
de nossa crescente lista
de amigos perdidos
devesse ter surgido
para nos cumprimentar.

Trad.: Nelson Santander

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The Tourist

We saw the entrance
to the underworld
outside of Naples,
just after eating pizza
at that special place
and before
boarding the ferry
to Capri.
We could tick it off
our list of sights to see,
but there was nothing
to see.
Ground bleached of features.
Colorless air.
And remembering Odysseus
and his journey here,
meeting the ghost
of his long dead mother,
we felt cheated,
as if someone
from our growing list
of lost friends
should have emerged
to greet us.