Gary Snyder – Parta agora

Você não vai querer ler isso,
leitor,
esteja avisado, afaste-se
da escuridão,
parta agora.

— sobre a morte e a
morte da amada — não é meditação vaga
ou homilia, não se trata de ironia,
de deus ou de uma revelação ou
aceitação do — ou batalha contra o —
fim de nossa vida,
é sobre como os olhos
afundam e os dentes se destacam
depois de alguns dias quentes.
Seu último
suspiro, e eu ainda não estava pronto
para que aquele suspiro, o derradeiro, finalmente
chegasse. Após dez longos anos.
Tão magra que as articulações apareciam,
cada tendão e saliência.
Buda, descendo da montanha
depois de todo aquele jejum,
parecia mais rechonchudo que ela.
“I met a walking
skeleton, his name was Thomas Quinn”1
cantávamos
naquele tempo em que
ela mal conseguia andar, mas andava.
Eu lhe ministrava os remédios todas as noites e sempre
nos beijávamos doce e ferozmente depois da aplicação;
beijávamo-nos com força, e nossos dentes se chocavam, seus
lábios ressequidos, ferozes, ela era toda
ossos, respiração e olhos.

Não fazíamos amor há oito anos,
ela tinha orifícios que drenavam o tempo todo
em seus flancos, novos que surgiam,
fase final — e ela falava quando conseguia.

Filhas, mãe, irmã, primos, amigos
entravam e saíam do quarto. Até mesmo a
enfermeira calejada estava em lágrimas.

“Goodnight sweetheart, well it’s time to go.”2
nosso dueto, rostos colados,
nas últimas seis semanas

Ela observava os pássaros fazendo ninho
na árvore do lado de fora.
Então ela morreu.
Eu a limpei com uma esponja e vesti nela uma blusa
com mangas para cobrir os cotovelos descarnados,
um vestido longo e diáfano
como o de Mumtaz Mahal —

Eu estava só. Então eles vieram.
Uma filha exclamou:
“Ela é um cadáver!” e ficou paralisada
do lado de fora no deque. Fazia calor.
No terceiro dia
a van da funerária veio buscá-la,
recuando até perto da porta,
Ajudei a enrolá-la nos lençóis,
deslizei-a em uma maca e a levei até o carro,
e eles subiram a colina de cascalho áspero
nosso grupo familiar ali em silêncio
enquanto eu me virava, prendia a respiração
e fechava os olhos para o céu.

Cinco dias de calor e eles me chamaram,
apenas Kai3 e eu, para testemunhar a cremação.
Com custo extra. Só nós dois
queríamos estar lá, para ver.
Seguimos a limusine
por um pátio de concreto com caçambas de cascalho,
passamos por um portão e chegamos
a um galpão de chapas metálicas
coberto de mato que antes era uma oficina
até a sala da fornalha e da chaminé,
que parecia um forno de cerâmica,
onde caixões de papelão vazios
se espalhavam empilhados ao redor.

Havia um jovem em uma escrivaninha
preenchendo papéis, suando, enquanto
dispúnhamos o incenso e o sino, a vela;
e fui até o leve caixão de papelão
e abri a tampa. O cheiro me atingiu como um golpe.
Eu pensara que a funerária
tivesse algum tipo de refrigeração,
como uma câmara fria,
talvez tivesse. Mas isso não ajudou muito.
Seu rosto magro mais afundado, desidratado,
olhos ainda abertos mas opacos, dentes mais proeminentes, seu corpo,
seu corpo com certeza, o corpo da minha doce senhora
reduzido ao essencial, e coloquei dois livros sobre
seu peito, livros que ela escrevera,
para levá-los em sua jornada, olhei-a de novo
e mais uma vez,
fechei e assenti.

Ele a enrolou com cuidado, deslizou a
caixa para dentro da fornalha, fechou a porta com firmeza,
como quem carrega um torpedo,
queimamos incenso e entoamos os
sutras sobre a impermanência e por todos os seres que viveram
ou que ainda viverão; coisas escritas apenas em magia
e apenas para os mortos — não para você, caro leitor —
observando o medidor de temperatura da fornalha,
alimentada a propano, subir progressivamente.

Então agora podemos ir.
Talvez eu saiba para onde ela foi —

Kai e eu mais uma vez
demos um profundo suspiro
— este é o preço do apego —

“Valeu a pena. Sem dúvida, valeu a pena —”

Ainda apaixonado, estando ali,
vendo e cheirando e sentindo,
pensando em adeus,

valeu até mesmo pelo cheiro.

Trad.: Nelson Santander

  1. A menção a “Thomas Quinn” e a imagem do “esqueleto ambulante” foram extraídos da canção popular “The State of Arkansas”, dos Almanac Singers, e seus versos “Met a walking skeleton / Whose name was Thomas Quinn” (Conheci um esqueleto / ambulante, seu nome era Thomas Quinn). Essa canção, que retrata as duras condições de vida dos trabalhadores agrícolas do Arkansas, utiliza a metáfora do esqueleto para simbolizar a exaustão física e a desnutrição. ↩︎
  2. “Boa noite, querida; bem, é hora de ir”. Os versos se referem à canção “Goodnight Sweetheart, Goodnight”, uma das canções mais populares do grupo vocal britânico The Overtones. Essa balada atemporal, com melodias suaves e letras românticas, se tornou um clássico do repertório do grupo.” ↩︎
  3. Um dos filhos de Gary Snyder com Masa Uehara – terceira esposa do poeta – com quem foi casado de 1967 a 1989. ↩︎

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Go Now

You don’t want to read this,
reader,
be warned, turn back
from the darkness,
go now.

— about death and the
death of a lover — it’s not some vague meditation
or a homily, not irony,
no god or enlightenment or
acceptance — or struggle — with the
end of our life,
it’s about how the eyes
sink back and the teeth stand out
after a few warm days.
Her last
breath, and I still wasn’t ready
for that breath, that last, to come
at last. After ten long years.
So thin that the joints showed through,
each sinew and knob
Shakyamuni coming down from the mountain
after all that fasting
looked plumper than her.
“I met a walking
skeleton, his name was Thomas Quinn” —
we sang
back then
she could barely walk, but she did.
I gave her the drugs every night and we always
kissed sweetly and fiercely after the push;
kissed hard, and our teeth clacked, her
lips dry, fierce, she was all
bones, breath and eyes.

We hadn’t made love in eight years
she had holes that drained all the time
in her sides, new ones that came,
end game — and she talked when she could.

Daughters, mother, sister, cousins, friends
in and out of the room. Even the
hardened hospice nurse in tears.

“Goodnight sweetheart, well it’s time to go.”
our duet, cheek to cheek,
for that last six weeks

She watched the small nesting birds
in the tree just outside.
Then she died.
I sponged her and put on a blouse
with sleeves to cover gaunt elbows,
a long gauzy skirt
like Mumtaz Mahal —

I was alone. Then they came.
One daughter cried out
“She’s a corpse!” and stood fixed
outside on the deck. It was warm.
The third day
the van from the funeral home came for her,
backing up close to the door,
I helped roll her into the sheets
slid on a gurney and wheeled to the car
and they drove up the rough gravel hill
our family group standing there silent
as I turned, held my breath,
closed my eyes to the sky.

Five days of heat and they called me,
just Kai and me, to come witness cremation.
It cost extra. Only the two of us
wanted to be there, to see.
We followed the limousine
through a concrete-yard with hoppers of gravel
through a gate beyond that
to an overgrown
sheet metal warehouse that once was a body-shop
to the furnace and chimney room,
it looked like a kiln for a potter,
there were cardboard coffins
stacked up empty around.

The young man at a desk and a table
filling out papers, sweating, as we
set out the incense and bell, the candle,
and I went to the light cardboard coffin
and opened the lid. The smell hit like a blow.
I had thought that the funeral home
had some sort of cooling
like a walk-in
maybe they did. But it didn’t much help.
Her gaunt face more sunken, dehydrated,
eyes still open but dull, teeth bigger, her body,
her body for sure, my sweet lady’s body
down to essentials, and I placed two books on
her breast, books she had written,
to send on her way, looked again
and again,
and closed it and nodded.

He rolled it up close, slid the
box in the furnace, locked down the door,
like loading a torpedo
we burned incense and chanted the
texts for impermanence and all beings who have lived
or who ever will yet; things writ only in magic
and just for the dead — not for you dear reader
watching the temperature gauge on the furnace,
firing with propane, go steadily up.

So now we can go.
Maybe I know where she’s gone —

Kai and I one more time
take a deep breath
— this is the price of attachment —

“Worth it. Easily worth it —”

Still in love, being there,
seeing and smelling and feeling it,
thinking farewell,

worth even the smell.

Gary Snyder – Dezembro em Yase

Naquele Outubro
em que escolheu ser livre
na grama alta e seca junto ao pomar
você disse “quem sabe um dia, talvez daqui a dez anos”.

Terminada a universidade te vi
só mais uma vez. Você estava estranha.
E eu obcecado com um projeto.

Agora se passaram os tais dez anos
e até mais um pouco: eu sempre soube
onde você estava –

Devia ter ido te ver
movido pela esperança de recuperar seu amor.
Você continua solteira.
Mas não fiz nada disso.

Só em sonhos, como esta madrugada,
a intensidade terrível
de nosso amor de garotos
me ocupa de novo a mente, a carne.

Tivemos aquilo que todos
se esforçam tanto para ter;
e abandonamos tudo para trás aos dezenove anos.

Me sinto com mil anos, como se tivesse
vivido muitas vidas.

E talvez nunca descubra
se sou um idiota
ou fiz o que exigia
o meu karma.

Trad.: ?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 20/02/2017

December at Yase

You said, that October,
In the tall dry grass by the orchard
When you chose to be free,
“Again someday, maybe ten years.”

After college I saw you
One time. You were strange,
And I was obsessed with a plan.

Now ten years and more have
Gone by: I’ve always known
where you were—
I might have gone to you
Hoping to win your love back.
You still are single.

I didn’t.
I thought I must make it alone. I
Have done that.

Only in dream, like this dawn,
Does the grave, awed intensity
Of our young love
Return to my mind, to my flesh.

We had what the others
All crave and seek for;
We left it behind at nineteen.

I feel ancient, as though I had
Lived many lives.

And may never now know
If I am a fool
Or have done what my
karma demands.

Gary Snyder – Dezembro em Yase

Naquele Outubro
em que escolheu ser livre
na grama alta e seca junto ao pomar
você disse “quem sabe um dia, talvez daqui a dez anos”.

Terminada a universidade te vi
só mais uma vez. Você estava estranha.
E eu obcecado com um projeto.

Agora se passaram os tais dez anos
e até mais um pouco: eu sempre soube
onde você estava –

Devia ter ido te ver
movido pela esperança de recuperar seu amor.
Você continua solteira.
Mas não fiz nada disso.

Só em sonhos, como esta madrugada,
a intensidade terrível
de nosso amor de garotos
me ocupa de novo a mente, a carne.

Tivemos aquilo que todos
se esforçam tanto para ter;
e abandonamos tudo para trás aos dezenove anos.

Me sinto com mil anos, como se tivesse
vivido muitas vidas.

E talvez nunca descubra
se sou um idiota
ou fiz o que exigia
o meu karma.