Charles Simic — Shelley

Poeta das folhas mortas, varridas como fantasmas,
Arrebanhadas como multidões ceifadas pela peste1,
Eu o li pela primeira vez
Em uma noite chuvosa em Nova York,

Com meu atroz sotaque eslavo,
Recitando os versos melífluos
De um volume surrado e manchado
Que havia comprado mais cedo naquele dia
Em um sebo na Quarta Avenida,
Gerido por um iniciado nas artes ocultas.

Com o pouco dinheiro que me restava,
Caminhei pelas ruas com o nariz enfiado no livro.
Sentei-me em uma cafeteria suja,
Com as moscas mortas do verão passado sobre a mesa.
O dono era um ex-marinheiro
Que desenvolvera uma enorme corcunda
De tanto observar a chuva e a rua vazia.
Ficou feliz em me ver ali, absorto na leitura.
Reabastecia minha xícara com um líquido escuro como as
[águas do Estige.

Shelley falava de um rei louco, cego e moribundo;
De governantes que não veem, não sentem, não sabem;
De túmulos dos quais um Fantasma glorioso pode
Irromper para iluminar nosso dia tempestuoso.2

Eu também me sentia como um fantasma glorioso
A caminho do jantar
Em um restaurante chinês que conhecia tão bem.
Havia um garçom de três dedos
Que trazia minha sopa e arroz todas as noites
Sem jamais dizer uma palavra.

Nunca vi mais ninguém lá.
A cozinha era separada por uma cortina
De contas de vidro que tilintavam suavemente
Sempre que a porta da frente se abria.
Naquela noite, a porta da frente se abriu
Para deixar entrar uma menina pálida de óculos.

O poeta falava do imperecível universo
Das coisas… de vislumbres de um mundo remoto
Que visitam a alma durante o sono…
De um deserto povoado apenas por tormentas…3

As ruas estavam repletas de guarda-chuvas quebrados,
Pareciam pipas fúnebres
Que aquela pequena menina chinesa poderia ter feito.
Os bares da MacDougal Street esvaziavam.
Tinha havido uma briga.
Um homem se apoiava em um poste, braços estendidos como um crucificado,
A chuva lavando o sangue de sua face.

Em uma viela mal iluminada,
Onde a calçada brilhava como um espelho de salão de baile
Na hora de fechar —
Um homem bem vestido e descalço
Me pediu dinheiro.
Seus olhos brilhavam, ele parecia triunfante
Como um mestre de esgrima
Que acabara de desferir um golpe mortal.

Que estranho era tudo aquilo… A loteria do mundo
Naquela noite escura de outubro…
O volume amarelado de poesia
Com seus Esplendores e Sombras
Que eu estudava à luz das vitrines:
Farmácias e barbearias,
Temendo meu pequeno quarto sem janelas,
Frio como o túmulo de um imperador infante.

Trad.: Nelson Santander

  1. Ao longo do poema, Simic faz várias referências a poemas de Shelley. Nesses versos, p.e., temos uma referência direta à “Ode to the West Wind” , onde Shelley descreve as folhas mortas sendo carregadas pelo vento do outono. ↩︎
  2. Referência ao famoso soneto “England in 1819“, em que Shelley critica o rei George III e a monarquia britânica. ↩︎
  3. Aqui, o poeta se refere ao poema “Mont Blanc: Lines Written in the Vale of Chamouni“, que começa com os versos “The everlasting universe of things / Flows through the mind”. ↩︎

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Shelley

Poet of the dead leaves driven like ghosts,
Driven like pestilence-stricken multitudes,
I read you first
One rainy evening in New York City,

In my atrocious Slavic accent,
Saying the mellifluous verses
From a battered, much-stained volume
I had bought earlier that day
In a second-hand bookstore on Fourth Avenue
Run by an initiate of the occult masters.

The little money I had being almost spent,
I walked the streets my nose in the book.
I sat in a dingy coffee shop
With last summer’s dead flies on the table.
The owner was an ex-sailor
Who had grown a huge hump on his back
While watching the rain, the empty street.
He was glad to have me sit and read.
He’d refill my cup with a liquid dark as river Styx.

Shelley spoke of a mad, blind, dying king;
Of rulers who neither see, nor feel, nor know;
Of graves from which a glorious Phantom may
Burst to illumine our tempestuous day.

I too felt like a glorious phantom
Going to have my dinner
In a Chinese restaurant I knew so well.
It had a three-fingered waiter
Who’d bring my soup and rice each night
Without ever saying a word.

I never saw anyone else there.
The kitchen was separated by a curtain
Of glass beads which clicked faintly
Whenever the front door opened.
The front door opened that evening
To admit a pale little girl with glasses.

The poet spoke of the everlasting universe
Of things … of gleams of a remoter world
Which visit the soul in sleep …
Of a desert peopled by storms alone …

The streets were strewn with broken umbrellas
Which looked like funereal kites
This little Chinese girl might have made.
The bars on MacDougal Street were emptying.
There had been a fist fight.
A man leaned against a lamp post arms extended as if crucified,
The rain washing the blood off his face.

In a dimly lit side street,
Where the sidewalk shone like a ballroom mirror
At closing time—
A well-dressed man without any shoes
Asked me for money.
His eyes shone, he looked triumphant
Like a fencing master
Who had just struck a mortal blow.

How strange it all was … The world’s raffle
That dark October night …
The yellowed volume of poetry
With its Splendors and Glooms
Which I studied by the light of storefronts:
Drugstores and barbershops,
Afraid of my small windowless room
Cold as a tomb of an infant emperor.

Charles Simic – O dicionário

Talvez haja uma palavra em algum lugar
para descrever o mundo nesta manhã,
uma palavra para o jeito como a primeira luz
se deleita em perseguir as sombras
pelas vitrines e entradas das lojas.

Outra palavra para o modo como ela se detém
sobre um par de óculos de aros finos
que alguém deixou cair na calçada
na noite passada e cambaleou às cegas,
falando sozinho ou começando a cantar.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 08/02/2020

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The dictionary

Maybe there is a word in it somewhere
to describe the world this morning,
a word for the way the early light
takes delight in chasing the darkness
out of store windows and doorways.

Another word for the way it lingers
over a pair of wire-rimmed glasses
someone let drop on the sidewalk
last night and staggered off blindly
talking to himself or breaking into song.

Charles Simic – Minha contenda com o Infinito

Eu preferia o fugaz,
Como a lembrança de um gole de vinho
De nobre safra
Na língua, de olhos fechados…

Quando me tocaste no ombro,
Ó luz, inexprimível em teu esplendor,
Em nada me ajudaste.
Apenas prolongaste minha insônia.

Estava absorto no espetáculo,
Secretamente lamentando o fugidio:
Todos os seus beijos e encantos
Provisórios, de vida breve.

Aqui, com o novo dia surgindo,
E um único espantalho no horizonte
Dirigindo o tráfego
De corvos e suas sombras.

Trad.: Nelson Santander

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My Quarrel with the Infinite

I preferred the fleeting,
Like a memory of a sip of wine
Of noble vintage
On the tongue with eyes closed . . .

When you tapped me on the shoulder,
O light, unsayable in your splendor.
A lot of good you did me.
You just made my insomnia last longer.

I sat rapt at the spectacle,
Secretly ruing the fugitive:
All its provisory, short-lived
Kissed and enchantments.

Here with the new day breaking,
And a single scarecrow on the horizon
Directing the traffic
Of crows and their shadows.

Charles Simic – O ausente

Alguém está chegando tarde em casa.
A lâmpada deixada para ele na janela
Arde à medida que o dia amanhece,
E arderá ainda por muitos meses.

Nossa pequena rua é escura à noite.
As gaiolas são cobertas cedo.
Os peixinhos dourados mal se mexem em seus aquários.
Até mesmo as luzes da varanda estão apagadas,

Deixando apenas a janela acesa
Para as mariposas prestarem suas homenagens
Até que o tempo esfrie
E os telhados fiquem cobertos de neve.

Trad.: Nelson Santander

The Absent One

Someone’s late coming home.
The lamp left for him in the window
Burns as the day breaks,
And will burn for months after.

Our small street is dark at night.
The birdcages are covered early.
The goldfish barely stir in their jars.
Even the porch lights are off,

Leaving only his window lit
For moths to pay their respects
Until the weather turns cold
And the roofs are white with snow.

Charles Simic – Na Biblioteca

Para Octavio

Há um livro chamado
“Um Dicionário dos Anjos”.
Ninguém o abre há cinquenta anos,
Eu sei, porque quando o fiz
As capas rangeram, as páginas
desmancham-se. Nele descobri
Que os anjos eram tão abundantes
Quanto moscas. Ao entardecer, o céu
Costumava ficar repleto deles.
Você precisava agitar os dois braços
Apenas para mante-los à distância.
Agora o sol brilha
Através de altas janelas.
A biblioteca é um lugar tranquilo.
Anjos e deuses amontoados
em sombrios tomos fechados.
O grande segredo está
Em alguma estante pela qual
Miss Jones passa em sua ronda diária.
Ela é muito alta, então mantém
A cabeça inclinada como se estivesse escutando.
Os livros estão sussurrando.
Eu não ouço nada, mas ela sim.

Trad.: Nelson Santander

Republicação com alterações na tradução: poema publicado no blog originalmente em 14/05/2018

Charles Simic – In Library

There’s a book called
“A Dictionary of Angels.”
No one has opened it in fifty years,
I know, because when I did,
The covers creaked, the pages
Crumbled. There I discovered
The angels were once as plentiful
As species of flies. The sky at dusk
Used to be thick with them.
You had to wave both arms
Just to keep them away.
Now the sun is shining
Through the tall windows.
The library is a quiet place.
Angels and gods huddled
In dark unopened books.
The great secret lies
On some shelf Miss Jones
Passes every day on her rounds.
She’s very tall, so she keeps
Her head tipped as if listening.
The books are whispering.
I hear nothing, but she does.

Charles Simic – Medo

O medo passa de homem para homem
Inconscientemente,
Como uma folha passa o seu estremecimento
Para outra.

De repente, a árvore toda está tremendo,
E não há nenhum sinal do vento.

Trad.: Nelson Santander

Fear

Fear passes from man to man
Unknowing,
As one leaf passes its shudder
To another.

All at once the whole tree is trembling,
And there is no sign of the wind.

Charles Simic – Igreja de madeira

É só uma choupana fechada com uma torre
Sob o céu de um verão escaldante
Em uma estrada secundária percorrida raramente
Onde as sombras de árvores grandes
Roçam-se tranquilamente como forcas enfileiradas,
E corvos privados de carniça
Grasnam uns com os outros sobre dias melhores.

A congregação talvez ainda esteja em oração.
Das fotos salpicadas, famílias de fazendeiros
Enfileiradas com suas cabeças inclinadas
Como se ouvissem seus passos se aproximando.
Tão lentamente que você deve estar se perguntando
Como é que estamos aqui num minuto
E, no seguinte, desaparecemos para sempre?

Experimente a porta fechada e bata uma vez.
Os corvos ficarão fora de visão.
Acima de você, o campanário inclinado
Ainda sentindo o impacto da última tormenta.
E depois o silêncio da tarde…
Mesmo o descrente deve sentir a sua força.

Trad.: Nelson Santander

Wooden Church

It’s just a boarded-up shack with a tower
Under the blazing summer sky
On a back road seldom travelled
Where the shadows of tall trees
Graze peacefully like a row of gallows,
And crows with no carrion in sight
Caw to each other of better days.

The congregation may still be at prayer.
Farm folk from fly-specked photos
Standing in rows with their heads bowed
As if listening to your approaching steps.
So slow they are, you must be asking yourself
How come we are here one minute
And in the very next gone for ever?

Try the locked door, then knock once.
The crows will stay out of sight.
High above you, there is the leaning belfry
Still feeling the blow of the last storm.
And then the silence of the afternoon . . .
Even the unbeliever must feel its force.

Charles Simic – O altar

A estátua de plástico da Virgem
Em cima de uma penteadeira
Com um espelho enegrecido
De um salão de beleza de pesadelo.

Dois seixos do túmulo de um astro de rock,
Um pequeno e sorridente macaco de dar corda,
Uma concha, uma moeda egípcia de bronze,
E o canhoto vermelho de um ingresso de cinema.

Uma mancha de luz solar na emoldurada
Fotografia de comunhão de um menino
Com os olhos de alguém
Que irá se afogar em um lago naquele verão.

Um altar dignificando o deus do acaso.
O que é belo, ele adverte,
É encontrado acidentalmente e não procurado.
O que é belo facilmente se perde.

Trad.: Nelson Santander

The Altar

The plastic statue of the Virgin
On top of a bedroom dresser
With a blackened mirror
From a bad-dream grooming salon.

Two pebbles from the grave of a rock star,
A small, grinning wind-up monkey,
A seashell, bronze Egyptian coin,
And a red movie ticket stub.

A splotch of sunlight on the framed
Communion photograph of a boy
With the eyes of someone
Who will drown in a lake that summer.

An altar dignifying the god of chance.
What is beautiful, it cautions,
Is found accidentally and not sought after.
What is beautiful is easily lost.

Charles Simic – O dicionário

Talvez haja uma palavra em algum lugar
para descrever o mundo nesta manhã,
uma palavra para o jeito como a primeira luz
se deleita em perseguir as sombras
pelas vitrines e entradas das lojas.

Outra palavra para o modo como ela se detém
sobre um par de óculos de aros finos
que alguém deixou cair na calçada
na noite passada e cambaleou às cegas,
falando sozinho ou começando a cantar.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The dictionary

Maybe there is a word in it somewhere
to describe the world this morning,
a word for the way the early light
takes delight in chasing the darkness
out of store windows and doorways.

Another word for the way it lingers
over a pair of wire-rimmed glasses
someone let drop on the sidewalk
last night and staggered off blindly
talking to himself or breaking into song.

Charles Simic – Na Biblioteca

                  Para Octavio

Há um livro chamado
“Um Dicionário dos Anjos”.
Não foi aberto por ninguém em cinquenta anos,
Eu sei, porque quando o fiz
As capas rangeram, as páginas
desintegraram-se. Nele descobri
Que os anjos já foram tão abundantes
Quanto moscas. O céu ao entardecer
Costumava ficar repleto deles.
Você precisava agitar ambos os braços
Apenas para mante-los afastados.
Agora o sol está brilhando
Através de altas janelas.
A biblioteca é um lugar tranquilo.
Anjos e deuses amontoados
em sombrios tomos fechados.
O grande segredo está
Em alguma estante pela qual
Miss Jones passa em sua ronda diária.
Ela é muito alta, então mantém
Sua cabeça inclinada como se estivesse escutando.
Os livros estão sussurrando.
Eu não ouço nada, mas ela sim.

Trad.: Nelson Santander

Charles Simic – In Library

There’s a book called
“A Dictionary of Angels.”
No one has opened it in fifty years,
I know, because when I did,
The covers creaked, the pages
Crumbled. There I discovered
The angels were once as plentiful
As species of flies. The sky at dusk
Used to be thick with them.
You had to wave both arms
Just to keep them away.
Now the sun is shining
Through the tall windows.
The library is a quiet place.
Angels and gods huddled
In dark unopened books.
The great secret lies
On some shelf Miss Jones
Passes every day on her rounds.
She’s very tall, so she keeps
Her head tipped as if listening.
The books are whispering.
I hear nothing, but she does.