Sharon Olds – Quando dizem que você tem talvez três meses de vida

Em meu sono, sonhei que visitava seu túmulo —1
e o que jazia entre nós? A bela grama intocada
e o solo fértil, como a rica
terra em que você enterrou nossos lençóis
depois que o deixei — nosso DNA — perto de onde
mais tarde você enterrou seu golden retriever.
Também entre nós o novo teto
de pinho liso, o traje de linho
com que vestiram seu corpo recém-lavado e sem respiração,
a música de câmara terrosa das selvagens
criaturas espirais do submundo,
e seu tecido que tanto amei, e dentro dele o antigo
homem primordial de seu esqueleto.
Presa de narval, marfim de elefante,
símbolo de sua potência masculina e quadris estreitos
que cavalguei, remando no éden. Mas
não era sonho, eu estava bem desperta,
e você ainda não morreu. Posso ler isso para você
em uma semana, diante do fogão a lenha,
as labaredas curvando-se nas pontas e desaparecendo,
ou junto à lagoa, a água ondulando,
ovais de tsuga e faia2 trocando de lugar nela.
Às vezes, você adormece enquanto estou falando.
E diz: quero que leia um poema para mim quando eu morrer.
E: não vamos parar de escrever um para o outro quando eu estiver morto.
E quando eu também estiver!, eu digo. Quando nos conhecemos,
embora tenhamos nos apaixonado imediata e permanentemente,
não conseguimos estabelecer uma união de duas almas,
nem quando parti — cada um de nós teve que
trabalhar, em si mesmo, por anos, para chegar lá.
E agora chegamos! Talvez isso tenha sido
morte o tempo todo! Talvez a vida seja uma
espécie de morte. Talvez isso já fosse o paraíso.

Trad.: Nelson Santander

  1. O poema “Quando dizem que você tem talvez três meses de vida” (“When They Say You Have Maybe Three Months Left”) foi publicado na mais recente coletânea de Sharon Olds, Balladz (2022), que foi finalista do National Book Award de poesia. Ele integra a seção final intitulada Elegias, dedicada a temas de perda e luto, especialmente a morte de seu parceiro, Carl Wallman. Nesse contexto, Olds reflete sobre a fragilidade da vida e a complexidade das relações humanas, questionando a essência da vida e da morte. ↩︎
  2. As árvores mencionadas pertencem às famílias das pináceas (como a tsuga) e das fagineas (como a faia), que são encontradas em diversas regiões temperadas do hemisfério norte, incluindo a Europa e a América do Norte. Os “ovais” referidos no poema são as sementes ou frutos produzidos por essas árvores, que caem ao chão e podem ser identificados como coníferas ou pinhos, dependendo da espécie. Essas estruturas apresentam formatos ovais ou arredondados, evocando a imagem de um ambiente natural dinâmico, onde folhas e sementes se misturam à superfície da água da lagoa, simbolizando continuidade e transformação na natureza. ↩︎

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When They Say You Have Maybe Three Months Left

In my sleep, I dreamed that I came to your grave—
and what lay between us? The beautiful uncut
hair of the grass, and topsoil like the rich
dirt in which you buried our sheets
after I left you—our DNA—near where
you later buried your golden dog.
Also between us the new ceiling
of plain pine, and the linen garment
your fresh-washed unbreathing body had been clothed in,
and the earthen chamber music of wild,
underworld, spiral creatures,
and your tissue I have loved, and within it the ancient
primordial man of your skeleton.
Narwhal tusk, elephant ivory,
icon of your narrow-hipped male power
I rode, rowing in eden. But
it was no dream, I lay broad waking,
and you have not died yet. I can read this to you
in a week, in front of the woodstove,
the flames curving up to points and disappearing,
or beside the pond, the water rippling,
ovals of hemlock and beech changing places in it.
Sometimes you fall asleep as I’m talking to you.
And you’ve said: I want you to be reading me a poem when I die.
And, Let’s not stop writing to each other when I’m dead.
And when I’m dead too! I said. When we met,
though we fell in love immediate and permanent,
we could not make a two-soul union,
nor when I left—each of us had to
work, on ourselves, for years, to get there.
And now we are there! Maybe this has been
death all along! Maybe life is a
kind of dying. Maybe this has been heaven.

Sharon Olds – O irmão dela

Não acho que eu quisesse “casar com ele
quando eu crescesse”, o irmão mais velho dela,
não acho que eu quisesse casar — eu era como
um arco de Diana, apenas
levemente curvado.
Eu tinha 9 anos. Não me lembro dela definhando
e ficando dourada, mas quando pesquisei o endereço deles
na internet, reconheci a janela do quarto dela,
voltada para o leste — virava à direita e subia
as escadas, virava à direita e atravessava sua porta,
todos os dias após a escola — e os quartos dos pais e do irmão,
voltados para a baía. A casa parecia
um bolo, feito em uma padaria real
em Paris, França, as telhas curvas
da cobertura como ondulações de glacê
espremidas do tubo com um X
como uma cruz na ponta do bico. Ó minha querida,
você tinha 9 anos. Quanto tempo levou para você morrer,
depois de esmaltar aquela árvore de natal de prata
com tinta à base de chumbo? Mais que sua mãe.
Acho que você foi encolhendo, mais e mais,
soldadinha querida.
Nos arquivos, encontrei sua história no canto
superior de um jornal de
1953, a indenização
que um juiz concedeu ao seu pai pela morte
no natal. Eu procurava notícias do seu irmão — eu nunca
havia pensado em casar com ele até meus
78 anos, ele teria 82
ou algo assim — mas descobri que ele fora assassinado anos
depois, no carro, em frente à casa dele.
Eu queria deitar no quarto dele, com ele,
pele com pele, à vista do vetusto
sol fresco refletido nas cristas do vento
ocidental sobre a água que se estendia
até o mar, indo e vindo. Nunca pude
abraçá-la, ou sequer pensar: Aonde quer que
vás, lá estarei eu também contigo
.

Trad.: Nelson Santander

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Her Brother

I don’t think I wanted to “marry him
when I grew up,” her elder brother,
I don’t think I wanted to marry—I was like
an archery bow of Diana, only
very slightly curved.
I was 9. I don’t remember her dwindling
and goldening, but when I looked up their address,
on the net, I knew the window of her bedroom,
facing east—right turn and up
the stairs, right turn and through her door,
each day after school—her parents’ and brother’s rooms
facing the Bay. The house looked
like a cake, made in a royal bakery
in Paris France, the curved-scale
tiles of the roof like ripples of frosting
squeezed out of the bag with an X
like a cross at the tip of the nozzle. O my darling,
you were 9. How long did it take you to die,
after glazing that Xmas tree silver
with lead paint? Longer than your mother.
I think you curled up, more and more,
dearest soldier.
In the archives, I found your story in the upper
corner of a newspaper for
1953, the amount
a judge awarded your father in yule
death. I was looking for news of your brother—I had
never thought of marrying him till I was
78, he’d be 82
or so—but I found he’d been murdered years
later, in his car outside his home.
I had wanted to lie in his room, with him,
skin to skin within sight of the ancient
fresh sun in ridges of western
wind on the water leading out
to the sea, and in, and out. I never got to
hold her, or even to think, Whithersoever
thou goest, there I will be with thee also.

Sharon Olds – Transformações

O irmão dela se tornou médico, como o pai.
Eu ia à casa dela todos os dias, depois da escola,
e me sentava em sua cama. Ela estava doente, mas não contagiosa.
Eu não sabia de nada. Não sabia
que a avó dela estava morta — a mãe de seu pai —
e que sua mãe também havia morrido, por causa da tinta
com chumbo que elas borrifaram no pinheiro, na garagem
fechada, e que minha amiga, com seus cabelos perfeitamente lisos e
esverdeados, como a pátina
sobre cabeças de anjos antigos, estaria morta em uma semana,
ou menos, nenhuma criança no funeral.
Então o pai dela veio à nossa escola, e as meninas da nossa
classe foram à sala do Diretor, para onde
eu tinha sido enviada, muitas vezes, para me deitar
na enfermaria, porque eu eu era tão
malcomportada que achavam que eu era louca. Ele deu
uma de suas bonecas de contos de fadas para cada
uma das meninas da classe — o médico que havia
perdido a mulher, a mãe e a filha
em uma semana. Então ele enfiou a mão na sacola, tirou sua
melhor boneca, murmurou algo,
e a deu para mim. Eu me senti mal por me sentir
orgulhosa, e agora me assola um estranho
medo — há quanto tempo éramos
melhores amigas antes de ela morrer? Anos,
eu acho, mas tenho certeza de que era ela
que me queria lá todos os dias,
ou era eu que queria estar lá? Eram
as duas coisas. Eu dormia com aquela boneca — embora seus pés
e mãos de plástico fossem dolorosos, e sua saia
de tule ressecada arranhasse — até que minha mãe
se mudou, e a caixa com minhas coisas se perdeu,
como minha querida, eu nem estava lá quando ela desapareceu.

Trad.: Nelson Santander

OLDS, Sharon Balladz. New York: Alfred A. Knopf, 2022. p. 235

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Transformations

Her brother became a doctor, like their father.
I would walk to her house every day, after school,
and sit on her bed. She was sick, but not catching.
I knew nothing. I didn’t know
her grandma was dead—her father’s mother—
and her mother was dead, too, from the lead
paint they had sprayed the fir with in the closed
garage, and my friend, her hair dead-straight and
greenish, like tarnish on old paint
on angels’ heads, would be dead in a week
or so, no children at the funeral.
Then her father came to our school, and the girls in our
class went to the Principal’s, where
I had been sent, often, to lie down
in the Nurse’s Office, because I was so
bad they thought I was crazy. He gave
one of her Storybook Dolls to each
of the girls in her class—the doctor who had
lost his wife, his mother, his daughter,
in a week. Then he reached into the bag, and brought out
her best doll, and said something,
and gave it to me. I felt bad that I felt
proud, and now a strange fear
comes to me—how long had we been
best friends before she died? Years,
I think, but am I sure it was she
who wanted me there every day
or I who wanted to be there. It was
both. I slept with that doll—though her plastic
feet and hands were painful, and her parched
net skirt scratched—until my mother
moved, and my box of things was lost,
like my darling, I had not even been there when she vanished.

Sharon Olds – Balada da melhor amiga

Às vezes, do nada, lembro do poder
     da casa dela, e do caminho até lá
     descendo a rua estreita, a curva acentuada
     à direita, abrindo-se para
    
a agradável rua sem saída, a
     casa da minha melhor
     amiga — o quê?
     Estilo italiano? Janelas ogivais,

varandas, telhado,
     o terreno íngreme atrás, descendo
     suavemente ate a baía. E depois
     as pedras planas até o pórtico

dórico — entre elas, ervas daninhas floridas,
     sem erva-do-orvalho, sem hera, apenas
     pequenas flores, então lá estava, como uma mansão,
     um pequeno palacete de Berkeley, a elegante

casa de um médico, segura, onde ela estava
     morrendo, com 9 anos de idade, e eu não
     me permiti perceber.
     Se a mãe dela estivesse lá, talvez eu pudesse ter

pedido para tirar um cochilo
     com minha amiga quando ela
     adormecesse — mas a mãe dela
     havia morrido no dia anterior, meu trabalho

era não deixar minha amiga saber —

para que ela pudesse morrer acreditando que ainda tinha
     uma mãe. O que eu não teria dado para
     ter sido autorizada a me deitar ao lado
     de seu querido corpo esquelético.

Ela ainda tinha seus finos cabelos amarelo-esverdeados,
     densos, de tonalidade acre,
     como se o veneno de chumbo que elas respiraram tivesse
     acentuado seu tom verde-limão —

O que eu não teria dado para
     ser autorizada a adormecer com ela
     e sonhar, viva — o que eu não daria
     agora? Nada, não tenho nada para dar,

nada da sorte que acompanhou minha vida afortunada
     Mas rezo para que esta noite eu durma e que,
     9 e 9 anos, possamos nos abraçar em um
     sonho verde.

Trad.: Nelson Santander

OLDS, Sharon Balladz. New York: Alfred A. Knopf, 2022. p. 119-121

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Best Friend Ballad

Sometimes I’ll suddenly remember the power
     of her house, and of the approach to it,
     down the narrow, extreme-curve-to-the-
     right street, opening onto the
    
somehow delicate cul-de-sac, my
     best friend’s
     house—what?
     Italianate? Ogive windows,

balconies, tile roof,
     the land fallen off steep behind it to the
     gradual slope to the Bay. And then
     the flat stones up to her Doric

portico—between them, flowering
     weeds, no ice plant, no ivy, just tiny
     blossoms, then there it was, like a villa,
     a little Berkeley palace, a doctor’s

elegant home of safety where she was
     dying, 9 years old, and I didn’t
     let myself realize it.
     If her mother had been there, maybe I could have

asked her if I could take a nap
     with my friend when she fell
     asleep—but her mother
     had died the day before, my job

was to not let my friend know it—

so she could die as if she had
     a mother. What would I have given to
     have been allowed to lie down
     next to her dear skeletal body.

She still had her fine, yellow-green,
     thick, sour-color hair,
     as if the lead poison they’d breathed had
     sharpened the chartreuse of it—

what would I have given to be
     allowed to fall asleep with her
     and dream, alive—what would I give
     now? Nothing, I have nothing to give,

none of the luck which followed in my fortunate
     life. But I pray for a sleep tonight in which,
     9 and 9, we can hold each other in a
     green dream.

Sharon Olds – Meu filho, o homem

De repente, seus ombros ficam muito mais largos,
como Houdini expandia seu corpo
enquanto o acorrentavam. Parece que foi ontem
que eu o ajudava a vestir o pijama,
guiava suas pernas para o interior dourado,
fechava o zíper e o jogava para cima,
pegando-o no ar. Não consigo imaginá-lo
não sendo mais criança, e sei que devo me preparar,
vencer meu medo dos homens agora que meu filho
vai se tornar um. Não era isso
que eu tinha em mente quando ele irrompeu de mim
como um baú selado atravessando o gelo do Hudson,
quebrou o cadeado, soltou as correntes,
e surgiu em meus braços. Agora ele me olha
do mesmo jeito que Houdini estudava uma caixa
em busca da saída, depois sorria e se deixava algemar.

Trad.: Nelson Santander

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My Son the Man

Suddenly his shoulders get a lot wider,
the way Houdini would expand his body
while people were putting him in chains. It seems
no time since I would help him to put on his sleeper,
guide his calves into the gold interior,
zip him up and toss him up and
catch his weight. I cannot imagine him
no longer a child, and I know I must get ready,
get over my fear of men now my son
is going to be one. This was not
what I had in mind when he pressed up through me like a
sealed trunk through the ice of the Hudson,
snapped the padlock, unsnaked the chains,
and appeared in my arms. Now he looks at me
the way Houdini studied a box
to learn the way out, then smiled and let himself be manacled.

Sharon Olds – A promessa

Depois do segundo drinque no restaurante,
de mãos dadas sobre a mesa vazia,
estamos novamente nessa, renovando nossa promessa
de matar um ao outro. Vocês bebe gim,
bagas de zimbro azul-noturno
se dissolvendo em seu corpo, eu bebo Fumé1,
degustando seu aroma terroso e defumado, estamos
ocupando a terra, já somos parte do solo,
e onde quer que estejamos, também estamos em nossa
cama, encaixados, nus, colados
um ao outro, meio desfalecidos
depois do amor, flutuando
de um lado para o outro através da fronteira da consciência,
nossos corpos leves, abraçados. Sua mão
se contrai sobre a mesa. Você tem medo
de que eu me acovarde. O que você não quer
é ficar deitado em uma cama de hospital por um ano
depois de um derrame, sem conseguir
pensar ou morrer, você não quer
ficar preso a uma cadeira como uma avó empertigada,
praguejando. O salão está escuro ao nosso redor,
globos de marfim, cortinas rosa,
amarradas na cintura – e lá fora,
um crepúsculo de verão leve, luminoso e
altivo. Digo-lhe que você não
me conhece se pensa que não sou capaz
de matá-lo. Pense em como flutuamos juntos,
olho no olho, mamilos nos mamilos,
sexo no sexo, metades de uma criatura
subindo até a crista da matéria
e além – você me conhece da sala de partos brilhante
e salpicada de sangue, se um leão
tivesse você entre as mandíbulas, eu o atacaria, se os cordames
que atam sua alma são seus próprios pulsos, eu os cortarei.

Trad.: Nelson Santander

  1. A autora provavelmente se refere ao Pouilly-Fumé, um tipo de vinho branco seco, produzido na região de Pouilly-sur-Loire, no departamento de Nièvre, França. O nome “Pouilly” é uma abreviação de Pouilly-sur-Loire, a aldeia de onde os vinhos vêm, e “Fumé” é uma abreviação de Blanc Fumé, que é o apelido local para Sauvignon Blanc. ↩︎

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The Promise

With the second drink, at the restaurant,
holding hands on the bare table,
we are at it again, renewing our promise
to kill each other. You are drinking gin,
night-blue juniper berry
dissolving in your body, I am drinking Fume,
chewing its fragrant dirt and smoke, we are
taking on earth, we are part soil already,
and wherever we are, we are also in our
bed, fitted, naked, closely
along each other, half passed out
after love, drifting back
and forth across the border of consciousness,
our bodies buoyant, clasped. Your hand
tightens on the table. You’re a little afraid
I’ll chicken out. What you do not want
is to lie in a hospital bed for a year
after a stroke, without being able
to think or die, you do not want
to be tied to a chair like a prim grandmother,
cursing. The room is dim around us,
ivory globes, pink curtains,
bound at the waist – and outside,
a weightless, luminous, lifted-up
summer twilight. I tell you you do not
know me if you think I will not
kill you. Think how we have floated together
eye to eye, nipple to nipple,
sex to sex, the halves of a creature
drifting up to the lip of matter
and over it – you know me from the bright, blood-
flecked delivery room, if a lion
had you in its jaws I would attack it, if the ropes
binding your soul are your own wrists, I will cut them.

Sharon Olds – Ode à terra

Querida terra, peço desculpa por tê-la desprezado,
pensei que você fosse apenas o cenário
para os protagonistas — as plantas,
os animais e os animais humanos.
É como se eu amasse apenas as estrelas
e não o céu que deu a elas
espaço para brilhar. Sutil, variada,
sensível, você é a pele do nosso solo,
você é a nossa democracia. Quando compreendi
que nunca a havia honrado como uma igual
viva, senti vergonha de mim mesma,
como se não tivesse reconhecido
uma personagem que parecia tão diferente de mim,
mas agora posso ver-nos a todos, feitos dos
mesmos materiais básicos —
primos daquela primeira explosão do nada —
em nossa intrincada equação juntos. Ó terra,
ajude-nos a encontrar maneiras de servir à sua vida,
você que nos gerou e nos alimentou
e que, no final, vai nos acolher,
e girar conosco, e oscilar e orbitar.

Trad.: Nelson Santander

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Ode to Dirt

Dear dirt, I am sorry I slighted you,
I thought that you were only the background
for the leading characters—the plants
and animals and human animals.
It’s as if I had loved only the stars
and not the sky which gave them space
in which to shine. Subtle, various,
sensitive, you are the skin of our terrain,
you’re our democracy. When I understood
I had never honored you as a living
equal, I was ashamed of myself,
as if I had not recognized
a character who looked so different from me,
but now I can see us all, made of the
same basic materials—
cousins of that first exploding from nothing—
in our intricate equation together. O dirt,
help us find ways to serve your life,
you who have brought us forth, and fed us,
and who at the end will take us in
and rotate with us, and wobble, and orbit.

Sharon Olds – Depois de 37 anos minha mãe pede desculpas pela minha infância

Quando você se inclinou para mim, braços abertos,
como quem tenta atravessar uma fogueira,
quando você cambaleou em minha direção, gritando
que sentia muito pelo que havia feito comigo, seus
olhos se enchendo de um líquido terrível como
bolhas de mercúrio de um termômetro partido
deslizando pelo chão, quando você bradou baixinho
A quem mais eu poderia recorrer? Quem mais eu tinha?, os
pratos em pedaços em suas mãos oscilando em minha direção, a
água escorrendo de seus olhos como pedras úmidas
sob forte pressão, eu não consegui
imaginar como seria o resto de minha vida.
O céu parecia estar se estilhaçando, como uma janela
por onde alguém entra e sai, seu
rosto delicado brilhava como
cristal despedaçado, com verdadeiro arrependimento, o
arrependimento do corpo. Não conseguia imaginar como
seriam meus dias com você arrependida, com
você desejando não ter feito o que fez, o
céu desabando ao meu redor, os fragmentos
cintilando em meus olhos, seu corpo velho e
mole caído sobre mim em horror, eu a
segurei em meus braços e disse: Está tudo bem,
não chore, está tudo bem, o ar se encheu de
vidro voando, eu mal sabia o que havia
dito ou quem eu seria agora que a tinha perdoado.

Trad.: Nelson Santander

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After 37 Years My Mother Apologizes for My Childhood

When you tilted toward me, arms out
like someone trying to walk through a fire,
when you swayed toward me, crying out you were
sorry for what you had done to me, your
eyes filling with terrible liquid like
balls of mercury from a broken thermometer
skidding on the floor, when you quietly screamed
Where else could I turn? Who else did I have?, the
chopped crockery of your hands swinging toward me, the
water cracking from your eyes like moisture from
stones under heavy pressure, I could not
see what I would do with the rest of my life.
The sky seemed to be splintering, like a window
someone is bursting into or out of, your
tiny face glittered as if with
shattered crystal, with true regret, the
regret of the body. I could not see what my
days would be, with you sorry, with
you wishing you had not done it, the
sky falling around me, its shards
glistening in my eyes, your old, soft
body fallen against me in horror I
took you in my arms, I said It’s all right,
don’t cry, it’s all right, the air filled with
flying glass, I hardly knew what I
said or who I would be now that I had forgiven you.

Sharon Olds – Uma semana depois

Uma semana depois, eu disse a um amigo: acho que
nunca poderia escrever sobre isso.
Talvez daqui a um ano eu consiga escrever alguma coisa.
Há algo em mim que talvez algum
dia possa ser escrito; por ora está dobrado, e redobrado,
como um bilhete da escola. E em meu sonho
alguém jogava jacks1, e no ar havia um
jack arremessado, enorme, pairando
em chamas. E quando acordei, dei por mim
contando os dias desde a última vez que vira
meu marido – apenas dois anos, e algumas semanas
e horas. Tínhamos assinado os papéis e descido até o
térreo do Edifício Chrysler,
a beleza intacta de seu saguão ao nosso redor
como a tumba de um rei, no teto o pequeno
aeroplano pintado, no mural, voando. E
entrou em meu contrito coração, esta manhã,
suave e timidamente, de forma cautelosa,
indomável, uma visão mais ampla da doçura
e vastidão de sua vida que prossegue,
desconhecida e invisível para mim,
inaudível, intocada – mas conhecida, visível,
audível, palpável. E ocorreu-me,
por um momento, momento a momento,
ficar feliz por ele estar com aquela
que ele acredita ter sido feita para ele. E pensei em minha
mãe, a minutos de sua morte, oitenta e cinco
anos desde o nascimento, os ossos
de passarinho de seus ombros sob minha mão, a
casca de ovo da nuca, enquanto ela jazia em paz
nos lençóis limpos, e eu podia lhe falar com o melhor
do meu pobre e parcial amor, podia cantar para ela,
e percebia a sorte
e o privilégio daquela hora.

Trad.: Nelson Santander

  1. A autora se refere a um jogo infantil tradicional nos Estados Unidos, conhecido no Brasil como “jogo das cinco marias” ou “pedrinhas”. O jogo é composto por pequenas peças de metal ou plástico (chamadas jacks) e uma bolinha, e o objetivo é jogar a bolinha para o alto enquanto se recolhem os jacks do chão em sequência. ↩︎

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/03/2020

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A week later

A week later, I said to a friend: I don’t
think I could ever write about it.
Maybe in a year I could write something.
There is something in me maybe someday
to be written; now it is folded, and folded,
and folded, like a note in school. And in my dream
someone was playing jacks, and in the air there was a
huge, thrown, tilted jack
on fire. And when I woke up, I found myself
counting the days since I had last seen
my husband – only two years, and some weeks,
and hours. We had signed the papers and come down to the
ground floor of the Chrysler Building,
the intact beauty of its lobby around us
like a king’s tomb, on the ceiling the little
painted plane, in the mural, flying. And it
entered my strictured heart, this morning,
slightly, shyly as if warily,
untamed, a greater sense of the sweetness
and plenty of his ongoing life,
unknown to me, unseen by me,
unheard, untouched-but known, seen,
heard, touched. And it came to me,
for moments at a time, moment after moment,
to be glad for him that he is with the one
he feels was meant for him. And I thought of my
mother, minutes from her death, eighty-five
years from her birth, the almost warbler
bones of her shoulder under my hand, the
eggshell skull, as she lay in some peace
in the clean sheets, and I could tell her the best
of my poor, partial love, I could sing her
out with it, I saw the luck
and luxury of that hour.

Sharon Olds – Sexo sem amor

Como conseguem fazer isso, os que fazem amor
sem amor? Belos como bailarinos,
deslizando um sobre o outro como patinadores
no gelo, dedos enganchados
nos corpos um do outro, rostos
vermelhos como carne, vinho, molhados como as
crianças recém-nascidas que serão entregues pelas
mães. Como eles conseguem chegar a
chegar a chegar a Deus chegar às
águas calmas e não amar
aquele que chegou até lá com eles, a luz
se elevando lentamente como vapor saindo de suas peles
unidas? Esses são os verdadeiros devotos,
os puristas, os profissionais, os que não
aceitam falsos profetas e amam o
sacerdote em vez de Deus. Eles não
confundem o amante com seu próprio prazer,
são como grandes corredores: sabem que estão sozinhos
com a estrada, o frio, o vento,
o ajuste dos tênis, e sua saúde cárdio-
vascular – apenas fatores, como o parceiro
na cama, e não a verdade, que é o
corpo único e solitário no universo
contra seu próprio melhor tempo.

Trad.: Nelson Santander

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Sex Without Love

How do they do it, the ones who make love
without love? Beautiful as dancers,
gliding over each other like ice-skaters
over the ice, fingers hooked
inside each other's bodies, faces
red as steak, wine, wet as the
children at birth whose mothers are going to
give them away. How do they come to the
come to the come to the God come to the
still waters, and not love
the one who came there with them, light
rising slowly as steam off their joined
skin? These are the true religious,
the purists, the pros, the ones who will not
accept a false Messiah, love the
priest instead of the God. They do not
mistake the lover for their own pleasure,
they are like great runners: they know they are alone
with the road surface, the cold, the wind,
the fit of their shoes, their over-all cardio-
vascular health--just factors, like the partner
in the bed, and not the truth, which is the
single body alone in the universe
against its own best time.