Linda Pastan – Ética

Na aula de ética, há muitos anos,
nosso professor fazia a seguinte pergunta todo outono:
se houvesse um incêndio em um museu,
o que você salvaria: um quadro de Rembrandt
ou uma mulher idosa que não teria muitos anos
pela frente? Inquietos em cadeiras duras,
pouco preocupados com quadros ou com a velhice,
optávamos um ano pela vida, no outro pela arte
e sempre sem muita convicção. Às vezes,
a mulher tomava emprestado o semblante de minha avó,
e saía de sua cozinha habitual para vagar
por algum museu frio e meio imaginário.
Um ano, me achando esperta, respondi:
por que não deixar a mulher decidir por si mesma?
A Linda, relataria o professor, evita
os fardos da responsabilidade.

Neste outono, em um museu de verdade, eu mesma
uma mulher idosa, ou quase isso, estou
diante de um Rembrandt de verdade. As cores
dentro deste quadro são mais sombrias que o outono,
mais sombrias até do que o inverno — os tons de terra,
embora os elementos mais radiantes da terra queimem
através da tela. Agora sei que a mulher
e a pintura e as estações são quase uma só coisa
e não podem ser salvas por nenhuma criança.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ethics

In ethics class so many years ago
our teacher asked this question every fall:
if there were a fire in a museum
which would you save, a Rembrandt painting
or an old woman who hadn’t many
years left anyhow? Restless on hard chairs
caring little for pictures or old age
we’d opt one year for life, the next for art
and always half-heartedly. Sometimes
the woman borrowed my grandmother’s face
leaving her usual kitchen to wander
some drafty, half imagined museum.
One year, feeling clever, I replied
why not let the woman decide herself?
Linda, the teacher would report, eschews
the burdens of responsibility.
This fall in a real museum I stand
before a real Rembrandt, old woman,
or nearly so, myself. The colors
within this frame are darker than autumn,
darker even than winter — the browns of earth,
though earth’s most radiant elements burn
through the canvas. I know now that woman
and painting and season are almost one
and all beyond saving by children.

Linda Pastan – depois de uma pequena cirurgia

depois de uma pequena cirurgia

este é o ensaio geral

quando o corpo
como um amante fiel
flerta pela primeira vez
com a infidelidade

quando o corpo
como um passageiro em uma longa viagem
ouve o condutor chamar
o nome
da primeira parada

quando o corpo
com todo seu medo e astúcia
faz promessas
que sabe
que não pode cumprir

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

after minor surgery

this is the dress rehearsal

when the body
like a constant lover
flirts for the first time
with faithlessness

when the body
like a passenger on a long journey
hears the conductor call out
the name
of the first stop

when the body
in all its fear and cunning
makes promises to me
it knows
it cannot keep

Linda Pastan – A morte do eu

Como páginas descartadas
do livro
do outono, as folhas
caem tremendo

em vermelho e sépia,
cada uma um poema
ou história,
uma carta não lida.

Pense nos incêndios
na antiga Alexandria,
a fumaça volumosa
de pergaminhos em chamas.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Death of the Self

Like discarded pages
from the book
of autumn, the leaves
come trembling down

in red and umber,
each a poem
or story,
an unread letter.

Think of the fires
in ancient Alexandria,
the voluminous smoke
of parchment burning.

Linda Pastan – A vida que não vivi

A vida que não vivi

aconteceu na Itália:
figos pretos e damascos dourados;
um soar de sinos;
a vibrante réplica das aves
tão migratórias quanto eu era.
Ou em Paris, com seu clássico labirinto
de prédios e pontes
onde o francês se aperfeiçoava
em minha boca, já bêbada
de vinho e marcada por beijos.
Uma taça de prosecco gelado
a cada manhã… aquele belo
rapaz belga a cada tarde…
uma única rosa amarela se tornou
meu marca-páginas de haste longa.
Aprendi sobre o mundo da mesma forma
que algumas mulheres aprendem sobre suas cozinhas –
todas aquelas vielas não varridas, a aparência limpa
dos desertos, as fronteiras-facas afiadas
entre homens e países.
E o tempo passava tão devagar
e tão depressa, um rio
cuja nascente está escondida lá no alto
na curva de uma montanha:
congelamento, desenfreado degelo
e novo congelamento.
Como seixos naquele leito de rio,
houve crianças
perfeitas pelo caminho
e poemas de tempo em tempo.
Mas a arte que importava
era a vida plenamente vivida,
estrofe por estrofe entumescida.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Life I Didn’t Lead

took place in Italy:
black figs and gilded apricots;
a clatter of bells;
the vivid repartee of birds
as migratory as I was.
Or in Paris with its classical maze
of buildings and bridges
where French perfected itself
in my mouth, already lush
with wine and bruised with kisses.
A flute of chilled prosecco
every morning… that beautiful
Belgian boy each afternoon…
a single yellow rose became
my long-stemmed bookmark.
I learned the world the way
some women learn their kitchens–
all those unswept alleys, the scoured look
of deserts, the knife-edged borders
between men and countries.
And time went by so slowly,
and so fast, a river
whose source is hidden high
in the curve of a mountain:
freeze and frantic meltdown
and freeze again.
Like pebbles in that riverbed
there were perfect
children along the way
and poems from time to time.
But the art that mattered
was the life led fully,
stanza by swollen stanza.

Linda Pastan – A secretária eletrônica

Ligo e escuto sua voz
na secretária eletrônica
semanas após sua morte,
um fantasma inexperiente que ainda anseia
por mensagens humanas.

Devo deixar uma, contando
como o tecido de nossas vidas
foi rasgado antes do tempo,
e que esse rasgo repentino não
será remendado logo nem facilmente?

Na sua casa que se esvazia, outros
enrolam tapetes, empacotam livros,
tomam café à sua mesa antiga,
e escutam as mensagens deixadas
em uma máquina assombrada

pelo timbre da sua voz,
mais palpável do que fotografias
ou impressões digitais. Neste primeiro dia
deste primeiro outono sem você,
constrangida e resistindo,

mas compelida, disco novamente
o número que sei de cor
– grata, em um mundo diminuído,
pela misericórdia acidental das máquinas –,
escuto e desligo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Answering Machine

I call and hear your voice
on the answering machine
weeks after your death,
a fledgling ghost still longing
for human messages.

Shall I leave one, telling
how the fabric of our lives
has been ripped before
but that this sudden tear will not
be mended soon or easily?

In your emptying house, others
roll up rugs, pack books,
drink coffee at your antique table,
and listen to messages left
on a machine haunted

by the timbre of your voice,
more palpable than photographs
or fingerprints. On this first day
of this first fall without you,
ashamed and resisting

but compelled, I dial again
the number I know by heart,
thankful in a diminished world
for the accidental mercy of machines,
then listen and hang up.

Linda Pastan – O Suicídio

Carregava consigo
aonde quer que fosse
um imposto sobre valor agregado de dor,
como um daqueles pesos

que um corredor prende
às pernas
para tornar o movimento
no espaço mais

deliberado.
E assim ela se moveu
pesadamente naqueles últimos
dias, confundindo

o horizonte
com a linha de chegada,
reescrevendo o roteiro
de sua própria vida

cujos finais alternativos
ela não ficaria aqui
tempo suficiente
para ler.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Suicide

She carried with her
wherever she went
a value-added tax of pain,
like one of those weights

a runner straps
to her legs
to make motion
through space more

deliberate.
And so she moved
heavily through those last
days, mistaking

the horizon
for the finish line,
rewriting the script
of her own life

whose alternative endings
she wouldn’t stay here
long enough
to read.

Linda Pastan – Os pássaros

estão indo para o sul, puxados
por uma bússola nos genes.
Eles não se deixam enganar
por este estranho verão de novembro,
enquanto permanecemos em nossas portas
usando vestidos de algodão.
Nós os observamos

enquanto eles mergulham e se reúnem —
a sombra das asas
cai sobre o coração.
Quando farfalham entre
os galhos vazios, as árvores
devem pensar que suas folhas perdidas
voltaram.

Os pássaros estão indo para o sul,
o instinto é a história mais antiga.
Eles voam sobre seus sósias,
os silentes cata-ventos,
ensinando-nos a todos
com as penas de suas caudas
o verdadeiro norte.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Birds

are heading south, pulled
by a compass in the genes.
They are not fooled
by this odd November summer,
though we stand in our doorways
wearing cotton dresses.
We are watching them

as they swoop and gather—
the shadow of wings
falls over the heart.
When they rustle among
the empty branches, the trees
must think their lost leaves
have come back.

The birds are heading south,
instinct is the oldest story.
They fly over their doubles,
the mute weathervanes,
teaching all of us
with their tailfeathers
the true north.

Linda Pastan – Em algum lugar do mundo

Em algum lugar do mundo
algo está acontecendo que
lentamente seguirá seu curso até aqui.

Uma frente fria virá destruir
as camélias, ou talvez será
uma onda de calor que irá queimá-las.

Um vírus viajará sem passaporte
ou papéis para me encontrar ao apertar
outra mão ou beijar uma face.

Em algum lugar, uma pequena discussão
teve início, umas poucas palavras acaloradas
incendeiam uma conflagração,

e o cheiro de fumaça
está a caminho;
o cheiro da guerra.

Onde quer que eu vá, bato na madeira —
em tampos de mesas ou troncos de árvores.
Lavo minhas mãos repetidamente.

Examino os jornais
e invento códigos de alarmes que não sejam
a data de nascimento do meu marido nem a minha.

Mas em algum lugar algo está acontecendo
contra o qual não há planejamento, apenas
aquelas duas velhas conspiradoras: Esperança e Sorte.

N. do T.: poema publicado pela primeira vez na Michigan Quarterly Review, no outono de 2007 (aqui: https://sites.lsa.umich.edu/mqr/2017/05/from-the-archive-somewhere-in-the-world-by-linda-pastan/).

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Somewhere in the World

Somewhere in the world
something is happening
which will make its slow way here.

A cold front will come to destroy
the camellias, or perhaps it will be
a heat wave to scorch them.

A virus will move without passport
or papers to find me as I shake
a hand or kiss a cheek.

Somewhere a small quarrel
has begun, a few overheated words
ignite a conflagration,

and the smell of smoke
is on its way;
the smell of war.

Wherever I go I knock on wood—
on tabletops or tree trunks.
I rinse my hands over and over again.

I scan the newspapers
and invent alarm codes which are not
my husband’s birth date or my own.

But somewhere something is happening
against which there is no planning, only
those two aging conspirators, Hope and Luck.

Linda Pastan – Fim da jornada

Que esforços fazemos para chegar à morte em segurança,
a bagagem intacta, cada filho contabilizado,
as feridas da travessia rapidamente curadas.
Consideramos os anos como paradas ao longo do caminho
de um longo voo em direção à catástrofe que
nos aguarda, pensando: finalmente livres e em casa.
Acene, acene com seu lenço para o fim da jornada;
desvie os olhos das janelas encardidas de crepúsculo
onde paisagens passam correndo, terríveis e encantadoras.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Journey’s End

How hard we try to reach death safely,
luggage intact, each child accounted for,
the wounds of passage quickly bandaged up.
We treat the years like stops along the way
of a long flight from the catastrophe
we move to, thinking: home free all at last.
Wave, wave your hanky towards journey’s end;
avert your eyes from windows grimed with twilight
where landscapes rush by, terrible and lovely.

Linda Pastan – Imortalidade

Meu pai dizia que ninguém realmente morre
até que não reste mais ninguém para
pensar neles.
Você vive de novo, dizia ele,
toda vez que alguém se lembra de você.

Eu era jovem demais na época para pensar
na morte dele, muito menos na minha.
Tudo o que eu conseguia pensar era naquele momento
em Peter Pan em que a plateia
aplaudia para manter a Sininho viva.

Minha mãe morreu há trinta anos,
e eu me lembro dela todos os dias:
seu bico de viúva1, seus lilases, o jeito como ela dizia
“Oh, querida…” quando minha vida dava errado.
Pai, raramente penso em você.

Será que o releguei a um purgatório
de esquecimento porque você punia
o que chamava de insolência
com dias de silêncio?
E, no entanto, aqui está você agora.

Trad.: Nelson Santander

  1. Expressão usada para a linha de cabelo que algumas pessoas apresentam em forma de “V” na parte frontal superior da testa ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Immortality

My father said nobody really dies
until there’s no one left behind
to think of them.
You live again, he said,
each time someone remembers you.

I was too young then to believe
in his death, let alone in mine.
All I could think of was that moment
in Peter Pan the audience
clapping to keep Tinker Bell alive.

My mother has been dead now thirty years,
and I remember her every day:
her widow’s peak, lilacs, the way she said
“Oh, sweetheart…” when my life went wrong.
Father, I seldom think of you.

Have I consigned you to a purgatory
of neglect, and is it because you punished
what you called insolence
with days of the silent treatment?
And yet, here you are now.