Ferreira Gullar – Pela rua

Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
        e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
      miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
   solto ao fumo da gasolina queimada.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 09/07/2019

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Ferreira Gullar – Manhã

As portas batem as toalhas voam
o dia se esbaqueia como um pássaro dentro da casa
(ou uma lembrança
dentro da casa)

Véspera do dia em que de repente enlouquecerei.

Ferreira Gullar – Poema

Se morro
o universo se apaga como se apagam
as coisas deste quarto
                                se apago a lâmpada:
os sapatos–da–ásia, as camisas
e guerras na cadeira, o paletó–
dos–andes,
               bilhões de quatrilhões de seres
e de sóis
               morrem comigo.

Ou não:
               o sol voltará a marcar
               este mesmo ponto do assoalho
               onde esteve meu pé;
                                         deste quarto
               ouvirás o barulho dos ônibus na rua;
                       uma nova cidade
                       surgirá de dentro desta
                       como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens
a mesma história que eu leio, comovido.

Ferreira Gullar – Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 30/10/2017

Ferreira Gullar – Digo Sim

Poderia dizer
que a vida é bela, e muito,
e que a revolução caminha com pés de flor
nos campos de meu país,
com pés de borracha
nas grandes cidades brasileiras
e que meu coração
é um sol de esperança entre pulmões
e nuvens

Poderia dizer que meu povo
é uma festa só na voz
de Clara Nunes
no rodar
das cabrochas no Carnaval
da Avenida.
Mas não. O poeta mente.

A vida nós a amassamos em sangue
e samba
enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. A vida
nós a fazemos nossa
alegre e triste, cantando
em meio à fome
e dizendo sim
– em meio à violência e a solidão dizendo
sim –
pelo espanto da beleza
pela flama de Thereza
pelo meu filho perdido
neste vasto continente
por Vianinha ferido
pelo nosso irmão caído
pelo amor e o que ele nega
pelo que dá e que cega
pelo que virá enfim,
não digo que a vida é bela
tampouco me nego a ela:
– digo sim

Ferreira Gullar – de Sete Poemas Portugueses (4)

Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento

Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

Fonte, flor em fogo,
quem é que nos espera
por detrás da noite ?

Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 23/04/2016

Ferreira Gullar – Ano Novo

Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

REPUBLICAÇÃO. Poema publicado no blog originalmente em 10/04/2016.

Ferreira Gullar – Despedida

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato,
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

REPUBLICAÇÃO. Poema publicado originalmente no blog em 28/03/2016.

Ferreira Gullar – Praia do Caju

Escuta:
o que passou passou
e não há força
capaz de mudar isto.

Nesta tarde de férias, disponível, podes,
se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá de novo
o lume
que na carne das horas se perdeu.

Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina se perdeu
sob as folhas da tarde
nas vozes conversando na varanda
no riso de Marília no vermelho
guarda-sol esquecido na calçada.

O que passou passou e, muito embora,
voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casas, a amarela,
a branca, a de azulejo, e o sol
que nelas bate é o mesmo
sol
que o Universo não mudou nestes vinte anos.

Caminhas no passado e no presente.
Aquela porta, o batente de pedra,
o cimento da calçada, até a falha do cimento. Não sabes já
se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste, o muro,
a esquina, o gato na janela,
  em soluços quase te perguntas
  onde está o menino
  igual àquele que cruza a rua agora,
  franzino assim, moreno assim.
      Se tudo continua, a porta
  a calçada a platibanda,
  onde está o menino que também
  aqui esteve? aqui nesta calçada
  se sentou?

  E chegas à amurada. O sol é quente
  como era, a esta hora. Lá embaixo
  a lama fede igual, a poça de água negra
  a mesma água o mesmo
  urubu pousado ao lado a mesma
  lata velha que enferruja.
  Entre dois braços d’água
  esplende a croa do Anil. E na intensa
  claridade, como sombra,
  surge o menino
  correndo sobre a areia. É ele, sim,
  gritas teu nome: “Zeca,
  Zeca!”
      Mas a distância é vasta
  tão vasta que nenhuma voz alcança.

  O que passou passou.
  Jamais acenderás de novo
  o lume
  do tempo que apagou.

REPUBLICAÇÃO. Poema publicado originalmente no blog em 28/03/2016.

Ferreira Gullar – O Que Se Foi

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

REPUBLICAÇÃO. Poema originalmente publicado no blog em 28/03/2016.