Nelson Santander – Cinema Paradiso e a visita cruel do tempo

Há 30 anos, de forma despretensiosa, o diretor italiano Giuseppe Tornatore presenteava o mundo com aquele que, ao longo dos anos, se tornaria um dos filmes mais queridos da história do cinema: “Cinema Paradiso”.

O vídeo que ilustra este texto é o da famosa cena do mosaico de beijos, a mesma que encerra o filme. Sempre me questionei por que este trecho em particular me comovia tanto, em um filme repleto de passagens inesquecíveis: a cena em que Totó recebe um beijo inesperado de Elena, após ficar dias parado na frente da casa em que ela morava para provar que a amava; o momento da demolição do cinema; o excerto em que Alfredo – o simpático projecionista da cidade – projeta o filme na parede da praça; a cena do funeral de Alfredo.

Todos esses fragmentos – verdadeiros minicontos – são dotados de elevada voltagem emotiva. Contudo, não se comparam à cena final, na qual Totó, agora adulto, cabelos brancos e cineasta de sucesso, assiste à projeção de um filme que recebera das mãos de sua mãe, a pedido do recém-falecido Alfredo. O filme, na verdade, é uma colagem de várias cenas de beijos e algumas com erotismo e nudez, que o pároco da sua cidade natal costumava censurar nas películas antes da exibição no cinema em que Totó, quando criança, trabalhava como assistente de Alfredo.

Mas o que faz essa passagem me comover tanto? Seria o contexto e o momento em que o trecho é inserido (logo após a cena que mostra a demolição do cinema)? Ou o delicado tema musical composto por Ennio Morricone, que acompanha o desenrolar da cena?

Não. Ou melhor, não apenas isso. Esses elementos são cruciais para criar em “Cinema Paradiso” um ambiente emotivo que atinge seu ápice na fatídica cena dos beijos. No entanto, embora embevecido pelas cenas anteriores do filme e hipnotizado pela melodia inspirada de Morricone, o que mais me comove na cena é antes o vislumbre que ela nos proporciona de nossa própria efemeridade. Esteticamente, amor romântico e beleza física são opostos à doença, antônimos da decrepitude, a antítese da morte. Nada representa mais estar vivo do que as cenas que aparecem na tela: mulheres sensuais e beijos eróticos, arrebatadores, delicados, violentos, apaixonados, singelos – todos os tipos de beijos que o amor romântico criou para se expressar. E trocados por casais formados por atores que, quando filmaram essas cenas nos anos 20, 30, 40 e 50, estavam no auge de sua juventude e beleza física.

No entanto, a sensação de transitoriedade que transborda na célebre passagem se acentua ainda mais ao lembrarmos que os atores que aparecem nessas cenas estão todos mortos – Silvana Mangano, Vittorio Gassman, Cary Grant, Rosalind Russell, Jane Russell, Doris Duranti, Georgia Hale, Charlie Chaplin, Olivia de Havilland, Errol Flynn, Rudolph Valentino, Vilma Banky, James Stewart, Donna Reed, Vittorio de Sica, Yvonne Sanson, Anna Magnani, Marcello Mastroianni, Maria Schell, Jean Gabin, June Astor, Gary Cooper, Clark Gable, Joan Crawford, Greta Garbo, John Barrymore, lolooSpencer Tracy, Ingrid Bergman. Todos mortos – alguns há mais de 90 anos. Atores e atrizes que conheceram a fama e a fortuna, que foram os mais desejados de sua época, e cuja beleza e juventude, hoje, não passam de poeira.

As lágrimas que um arrebatado Totó derrama ao assistir o filme são minhas também. Totó chora a saudade de tudo o que viveu e do que perdeu. A mim me emociona testemunhar, impotente, na película que comove o cineasta, a inexorável marcha do tempo.

PS.: um internauta me avisa que Olivia de Havilland não está morta; tem 102 anos e mora atualmente em Paris. Quando escrevi esse texto, eu podia jurar que havia lido em algum lugar a notícia de que ela falecera há alguns anos. Fica aí uma lição: depois dos 50, jamais confie em sua memória, já que o tempo – a matéria principal do meu texto – também faz estragos nesse campo. De toda forma, a ideia geral que eu quis transmitir permanece intacta – a decrepitude e a senilidade são as características principais da velhice profunda, e só com muita boa vontade dá para dizer que está vivendo quem chegou tão longe na corrida da existência.

Nelson Santander – Gene Tierney

Nem Marilyn, nem Greta, nem Ava, e muito menos Angelina, Sharon, Julia ou Charlize. Para mim o rosto mais bonito com que Hollywood nos presenteou em todos os tempos é o dessa beldade das fotos que acompanham esse texto: Gene Tierney, nascida no dia de hoje, no ano de 1920.

Em 1944 ela estreou seu filme mais famoso, o belíssimo “Laura” – uma das obras que ajudou a consolidar no cinema o subgênero de filmes policiais conhecido como “film noir”.

Falando em beleza, a música tema de “Laura”, com o mesmo título, é também uma das melodias mais marcantes do cinema. Escrita por David Raksin especialmente para a película, nos anos que se seguiram “Laura” foi redescoberta por músicos de jazz. Acabou virando um standard desse estilo musical e foi objeto de mais de 400 regravações(!)

Gene se foi em 1991, aos 70. Sua beleza já se havia apagado há décadas – culpa em parte de uma depressão devastadora que lhe tirou o viço e a vontade no auge da carreira e a deixou incapacitada por anos, e do tempo, que de tudo nos despoja. “Laura” – o filme e a canção – permanecem.

Permanece também o meu sentimento de encanto diante dessa três belezas conjugadas.

O poeta John Keats tinha razão:

A beleza é a verdade, a verdade é a beleza
— É tudo o que há para saber, e nada mais.

Nelson Santander – Philip Roth

Morreu Philip Roth, meu último grande herói literário. Sua vasta bibliografia explora uma gama enorme de temas, mas a faceta que mais me impressionou foi a que ele abordou em seus últimos livros: a questão da velhice. A leitura de “Homem Comum” – principal obra de Roth sobre o tema – há cerca de 8 anos, quando ainda me considerava jovem demais para pensar nesse assunto, foi um choque, seja pela maneira crua e realista com que ele abordava o tema, seja por me despertar para o fato de que em breve eu mesmo estaria mergulhado nesse universo que não tem nada de ficcional. Uma coisa é certa: sua morte, aos 85, põe fim ao fardo que ele considerava esta fase da vida. Que ele consiga, ao menos, descansar em paz.

“(…) Durante algumas horas depois dos três telefonemas seguidos — e depois da banalidade e inutilidade previsíveis daquela tentativa de levantar ânimos, de fazer reviver o velho esprit de corps relembrando episódios das vidas de seus colegas, tentando encontrar coisas para dizer que pudessem animar os desesperançados e fazê-los recuar da beira do abismo —, o que ele queria fazer era não apenas ligar para sua filha, que encontrou no hospital com Phoebe, mas também reanimar a si próprio telefonando para seus pais e conversando com eles. No entanto, o que ele aprendera não era nada em comparação com a desgraça inevitável que é o final da vida. Se fosse tomar conhecimento do sofrimento mortal de cada homem e mulher que conhecera durante todos os seus anos de vida profissional, da história dolorosa de arrependimento, perda e estoicismo de cada um, de medo, pânico, isolamento e terror, se soubesse que cada coisa que lhes pertencera do modo mais visceral lhes fora arrancada e como estavam sistematicamente sendo destruídos, teria de ficar ao telefone o dia todo, e mais a noite toda, fazendo pelo menos mais umas cem ligações. A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre.(…)” (trecho de “Homem Comum”, Companhia das Letras, Trad. Paulo Henriques Britto, p. 74)

Stig Dagerman – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tampouco me legaram o disfarçado furor do cético, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.

 

Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a!

Mas tenho o que entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!

As formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. Sussurram odiosas. Enchem-me o quarto de murmúrios.
O prazer: “Entrega-te sem restrições”!
O talento: “Usa-me tão mal como a mim mesmo”!
A minha sede de gozo: “Só os gulosos sabem viver”!
A solidão: “Despreza os homens”!
Este desejo de morte: “Fere, Mata”!»

Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a ávida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesma se alimenta.

E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus atos, por isso tudo me pode ser desculpado.

O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exatamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem refletida do desespero. De fato, assim que o desespero me diz – “perca a esperança, o dia não passa de um momento de luz entre duas noites”, há uma falsa voz que me grita – “tenha confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias”.

A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau — agir como se todos os atos fossem defensáveis — deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos para sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece…

Noites há em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objetos pontiagudos que me rodeiam, no peso do teto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o fato de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!

Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de uma forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: “Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis”! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o fato da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!

Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o fato de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.

Dir-se-á que preciso ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus atos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objetivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitetei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam? Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anônima chamada população mundial, sou também uma unidade autônoma.

Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.

Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem senão viver? Faz máquinas? Escreve livros? Faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa. Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. Importa é saber-se um fim autônomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.

Posso até isentar-me do poder da morte. É verdade que não consigo afastar a ideia que ela se me cola constantemente aos calcanhares. Muito menos sou capaz de lhe negar realidade. Mas posso aniquilar a sua ameaça, evitando escorar a minha vida em pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória.

Aqui é que não é lugar de permanência: eternamente voltado para o mar a comparar a sua liberdade com a minha. Chegará o momento de retomar o caminho da terra e enfrentar os responsáveis pela opressão que me faz vítima. Serei forçado a reconhecer que o homem deu vida a formas que, pelo menos na aparência, se revelam mais fortes do que ele. Mesmo a minha recente liberdade não é suficiente para as fatigar, mas somente para suspirar sob o seu peso.

Entretanto, entre as exigências que pesam sobre o homem, sei distinguir as exigências absurdas das inelutáveis. E absurdo é termos perdido para sempre uma forma de liberdade: a que advém de se possuir um elemento próprio. O peixe, tal como o pássaro e o animal terrestre, têm o seu. Thoreau ainda podia contar com a floresta de Walden – mas onde está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?

Sou obrigado a responder: em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será limitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.

É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.

Paulo Mendes Campos – O Amor Acaba

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Nelson Santander – Que a Terra lhe seja Leve

Quando me deparei pela primeira vez com o trabalho de Belchior, a melhor impressão que tive sobre ele não foi em razão da qualidade intrínseca de suas composições. Corriam os anos 80, e, como músico amador que era, eu estava mais ligado no trabalho realizado pela geração pop daquela época – Legião, Titãs, Paralamas, Ira!, etc. Da MPB, apreciava quase que somente Caetano e Chico.

Foi então que caiu em minhas mãos uma fita cassete pirata de um dos últimos álbuns lançados pelo artista na época. Pertencia ao amigo Arlindo Mellão, fã do cearense e de gente como Sá & Guarabyra, 14 Bis e Geraldo Azevedo.

O álbum, até hoje relativamente raro, chamava-se “Um Show: 10 Anos de Sucesso”, e continha nove das principais canções que ele havia composto até então em seus poucos mais de 10 anos de carreira, em arranjos nos quais se destacavam os teclados de Raposo e a guitarra de Sérgio Zurawski – bem ao estilo dos anos 80 – que modernizavam as canções dando-lhes nova roupagem (ainda considero esses arranjos os melhores de todas as versões feitas por ele).

Trazia canções como:

“Paralelas” (sucesso na voz de Vanusa, com o poderoso refrão: “No Corcovado, quem abre os braços sou eu / Copacabana, esta semana, o mar sou eu / Como é perversa a juventude do meu coração / Que só entende o que é cruel, o que é paixão”);

“Comentário a respeito de John” (“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho / Deixem que eu decido a minha vida. / Não preciso que me digam, de que lado nasce o sol / Porque bate lá o meu coração”);

“Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais” (clássicos absolutos na voz de Elis);

“A Palo Seco” (“Se você vier me perguntar por onde andei / No tempo em que você sonhava / De olhos abertos lhe direi: / Amigo, eu me desesperava…”);

“Galos, Noites e Quintais” e o seu maior sucesso (junto com “Apenas um Rapaz Latino Americano”): “Medo de Avião”.

Na época, eu tinha apenas 18 anos. E estava apaixonado por aquela que viria a se tornar minha esposa. Precisava desesperadamente de uma desculpa para encontrar o objeto de meus desejos e pareceu uma boa ideia ir até a casa do Mellão à noite para pedir-lhe a fita de empréstimo. Na volta, eu poderia encontrar com ela – o que acabou acontecendo.

No dia seguinte, coloquei a fita para ouvir. E foi uma revelação. Belas melodias e letras absurdamente boas que eram uma mistura de poesia, erudição e ironia. Belchior sabia compor. E como. A maioria das canções acima mencionadas são clássicos absolutos da MPB e não envelheceram nada desde que foram escritas.

A descrição acre que ele faz da juventude de sua época, em “Como Nossos Pais”, poderia ser aplicada aos jovens de hoje, sem mexer em nenhuma linha da canção. “Velha Roupa Colorida” permanece como uma das melhores canções já escritas sobre a passagem do tempo:

(…) Como Poe, poeta louco americano, eu pergunto ao passarinho:
“Assum Preto, ‘passo’ preto, black bird, o que se faz?”
E raven, never, raven, never, never, never, never, never, raven,
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“Tudo já ficou atrás”
E never, never, never, never, never, never, raven
Pássaro Preto, assum preto, black bird me responde:
“O passado nunca mais…”

Contudo, naquela época, a música que mais me impactou não foi nenhuma dessas. Eu tinha apenas 18 anos e estava apaixonado pela primeira vez na vida. Por isso, a canção que mais me marcou daquela fita foi uma verdadeira ode ao amor erótico chamada “Divina Comédia Humana”:

“(…) Aí um analista amigo meu
Me disse que desse jeito
Não vou viver satisfeito
Porque o amor é uma coisa mais profunda que um transa sensual

Deixando a profundidade de lado
Eu quero é ficar colado à pele dela noite e dia
Fazendo tudo de novo e dizendo sim! à paixão, morando na filosofia

Quero gozar no seu céu,
Pode ser no seu inferno
Viver a divina comédia humana
Onde nada é eterno (…)”

A habilidade de Belchior em traduzir sentimentos complexos em melodias e letras era extraordinária. Amor, sexo, paixão, tempo, medo. Morte. Todos esses temas foram explorados com maestria pelo artista. Esse último e mais assustador, enfim, o alcançou e o derrotou no dia de ontem.

Fica um buraco enorme na música brasileira, até porque o mercado da música não tem conseguido repor compositores com a mesma qualidade de um Belchior, de um Chico ou de um Caetano. Cada vez que morre um gênio desses, ficamos mais órfãos de artistas com a capacidade que eles têm de ler e reinterpretar nosso tempo através de seus trabalhos.

Mas para mim não é nem isso o que mais incomoda. Como tudo na vida, o que mais nos afeta é aquilo que nos diz mais de perto. Minha dor é perceber que, com a morte de Belchior, vai também – simbolicamente enterrado com o artista – um pedaço de minha vida. Aquele pedaço mais febril, intenso, irracional e louco a que chamamos juventude.

Diante desta perda, desesperadamente eu grito em português, recorrendo aos conselhos do compositor, que me responde – não sem uma pitada de ironia – através de “Pequeno Perfil de um Cidadão Comum”:

– Que a terra lhe seja leve…

Nelson Santander – Saindo do Armário da Sacristia

Dias atrás, jantávamos, eu e minha esposa, com um casal de amigos. O cardápio, caprichosamente preparado por nosso anfitrião, contou com uma entrada de queijos diversos, patês, pães e pelo menos cinco tipos de azeites especiais. O prato principal foi um risoto diferente de tudo o que eu já havia experimentado antes. Tudo regado a vinho. Muito vinho. Na verdade, encerramos a noite após acabar com três garrafas e meio de uma carta que contava com dois belos chilenos e dois exemplares do melhor vinho brasileiro.
A conversa estava agradável e, em um dado momento, derivou para assuntos envolvendo o sobrenatural. Nosso anfitrião – segundo ele mesmo confessa – morre de medo de fantasmas, espíritos ou qualquer tipo de manifestação do “outro mundo”. Morrer de medo é pouco: ele diz que literalmente se borra todo quando imagina estar diante de uma manifestação sobrenatural – e contou várias histórias supostamente inexplicáveis que teria presenciado. Depois, como era de se esperar, nossos anfitriões quiseram saber minha opinião sobre o assunto. Costumo ser discreto sobre esses temas, para evitar ferir susceptibilidades. Mas o papo camarada e, principalmente, a quantidade de vinho que havia mandado goela abaixo me destravou a língua. Expliquei que não acredito em manifestações sobrenaturais. Naturalmente, o assunto evoluiu para questões religiosas e, mais uma vez, tive que (ou quis) ser sincero quando nossa anfitriã me perguntou:
– Mas e quando a gente morre, o que você acha que acontece?
– Nada. Simplesmente acaba. Temos apenas esta vida. Morreu, acabou.
Meus amigos são teístas: ele, cristão; ela eu ainda não descobri em que acredita, mas parece que em algo ligado ao espiritismo, pois em um dado momento deixou transparecer que acredita na reencarnação. Obviamente eles não se contentaram com a minha resposta e o assunto se estendeu por mais uns 20 ou 30 minutos, envolvendo todos os temas que são abordados quando teístas debatem respeitosamente com céticos (a existência ou não de Deus; a santidade de Cristo; a própria existência histórica de Cristo; se existem almas, espíritos e fantasmas; como as pirâmides foram construídas(!), etc.). Ao final, meu anfitrião, falando entre brincando e sério, me disse algo assim:
– Putz, Nelson. As coisas que você disse deram um tilt aqui na minha cabeça. Acho que nem vou dormir hoje…
Respondi que ele deveria manter a sua crença, se isso o fazia feliz. E a conversa terminou aí.
Não sei se ele realmente conseguiu dormir naquela noite. Espero realmente que sim. Eu ficaria muito consternado em saber que, de alguma maneira, afetei negativamente a vida de alguém apenas por emitir opiniões pessoais sobre temas que tocam tão profundamente as pessoas.
Enfim, é isso: sou um cético em relação a questões sobrenaturais e religiosas. Ou ateu, como queiram. E não é de hoje. Obviamente, como todo brasileiro, fui um cristão (católico) exemplar na infância até a adolescência. Fui batizado, crismado e participei ativamente de uma comunidade de jovens católicos. Tocava violão no coro da Igreja São Benedito, em Avaré. No entanto, à medida que, por curiosidade própria e muita leitura, aprimorava meus conhecimentos sobre ciência, história, literatura, filosofia, etc., “os velhos mitos pretéritos” – como diria Drummond – que eu um dia abraçara foram sendo abandonados, um a um. Primeiramente, as crenças mais frágeis (como aquelas no poder das cartomantes e benzedeiras, em tarô, em sonhos proféticos, na parapsicologia, etc.). Depois, aquelas que diziam mais de perto acerca dos dogmas de minha religião (a existência de Satanás; o nascimento virginal de Jesus; os milagres que ele supostamente realizou; a ressurreição; etc.). Finalmente, lá por volta dos meus 15 ou 16 anos, encarei o mito final: Deus. Não houve uma grande batalha entre a fé e a razão. Nada disso. Quando faceei uma das questões mais fundamentais da humanidade – a existência ou não de um ser todo poderoso que criou todo o universo –, eu já havia chegado a um ponto em que não havia mais como manter a crença na existência de tal divindade.
Abandonei minha fé com o alívio de quem carregou um fardo muito pesado por muito tempo. Sim, alívio. Sim, um fardo. No momento em que concluí que tudo não passava de um grande engodo, me senti livre, solto, em paz. Livre do medo do sobrenatural; livre do medo de nunca saber se seria ou não acolhido em “Sua morada” pelo fato de haver sonegado um wafer da Tostines do meu irmão ou porque havia olhado as pernas de uma colega de escola repleto de pensamentos não muito cristãos; em paz por não precisar mais tentar conciliar o Deus infinitamente bondoso descrito em minha religião com a realidade nua de um mundo cruel que todos os dias se apresentava aos meus sentidos: o mal que não poupava culpados ou inocentes; a total ausência de justiça no mundo; a aleatoriedade com que justos e injustos eram “punidos”; a existência de lugares como Auschwitz ou a persistência da fome na Somália. A questão “como Deus permitia um mundo como esse?” foi definitivamente solucionada para mim quando encarei a verdade da resposta mais simples de todas: não há Deus nenhum.
Não, não houve mágoas na despedida. Minha descrença não nasceu de uma revolta qualquer contra Deus (apesar de todo o espanto que eu experimentava diante das questões acima mencionadas). Ela foi fruto de todo o conhecimento que deliberadamente adquiri somado a uma observação aguda do que acontecia (e acontece) no mundo.
Obviamente, no exato momento em que inúmeros pontos de interrogação foram solucionados, várias outras novas questões surgiram como consequência lógica do fato de não existir um deus sobrepairando o cosmos – e confesso que ainda hoje não tenho a resposta para todas elas. Como surgiu o universo? Qual o sentido da vida? Se não há um Deus vigiando meus passos, se não há um paraíso celeste a ser alcançado se eu só fizer o bem e me arrepender dos pecados, o que me impede de fazer o mal? O que vem depois da morte?
Não sei como surgiu o universo. Ninguém o sabe ainda. Mas a ciência tem avançado bastante sobre o tema e tenho certeza de que logo, logo teremos uma resposta. E mesmo que nunca tenhamos, a colocação de um deus na origem de tudo é tão arbitrária quanto a colocação de qualquer outra coisa no lugar (um buraco negro, por exemplo), sem comprovação fática de tais afirmações.
Qual o sentido da vida? Penso que não há nenhum sentido predeterminado para a existência das pessoas. Cada um de nós deve encontrar o sentido que deve emprestar à sua existência (e, não, isso não é algo fácil de se alcançar) e fazer o melhor que puder com isso.
Por que eu não faço o mal? Pode parecer estranho para algumas pessoas, mas a religião NÃO detém a exclusividade dos padrões morais. Fazer o certo ao invés do errado, o bem ao invés do mal, está muito mais ligado a regras de bom senso que se impõem ao convívio em sociedade do que ao atendimento a certos ditames bíblicos e religiosos. Aliás, quando a religião se arvora em ditar regras morais, o caldo entorna – principalmente quando ela se julga a verdadeira intérprete das vontades de deus aqui na terra. Para ficar apenas em um exemplo, basta analisar como quase todas as religiões tratam os homossexuais. A biologia, a neurociência e a sociedade já avançaram o suficiente para concluir que a homossexualidade é apenas uma expressão da sexualidade humana. Nada além disso. Não é uma doença. E não é um pecado, como quer fazer crer quase que a totalidade de todas as religiões. Mesmo as mais “generosas” delas, como a igreja católica, quando o assunto é homossexualidade costumam manifestar sua contrariedade em frases cheias de condescendência como “ame o pecador, odeie o pecado”. E o fazem com um ar de superioridade moral que faria o Cristo da fábula cristã corar de vergonha…
Sim, as religiões, de uma forma geral, tratam a homossexualidade como um pecado e transformam um grupo enorme de pessoas (segundo estatísticas, cerca de 10% da população mundial) em seres humanos de segunda classe, fadados a sublimar seus desejos ou, se professarem a fé que os condena, a viver com a sensação de estar pecando eternamente, em pensamentos ou atos. Os reflexos nas vidas destas pessoas são incalculáveis para nós, heterossexuais: expulsão ou rejeição da família, virar vítima de preconceito ou de chacota, dificuldade em arranjar emprego e a obrigação de se manter no armário para não chocar familiares e amigos são apenas alguns dos desafios que esses seres humanos têm que enfrentar em seu dia-a-dia apenas pelo fato de sentirem atração por alguém do mesmo sexo.
Então, respondendo à pergunta: eu procuro ter uma vida honesta e digna, e procuro tratar meus semelhantes e dessemelhantes da maneira como gostaria de ser tratado (antes que alguém diga que foi Cristo quem disse isso eu respondo: não, foi Buda, quinhentos anos antes dele) porque isso é a coisa certa a fazer. Porque assim fui educado. E porque, ética e moralmente, essa é a obrigação de todo ser humano. Aliás, existe todo um sistema filosófico, denominado Humanismo Secular, em que se sustenta minha postura. Se alguém tiver curiosidade é só dar uma olhada na Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Humanismo_secular
A essa altura alguém pode estar-se perguntando o porquê de só agora eu ter resolvido “sair do armário” da sacristia. Por que revelar minha descrença?
Eu poderia responder que é porque me cansei de omitir esse aspecto de minha vida, o que sempre me causa a sensação de não estar sendo totalmente sincero com as pessoas – e que talvez até fizesse a diferença para algumas delas. Não sei. Como se sabe, há quem baseie toda sua vida em suas crenças pessoais e a algumas destas pessoas repugna a amizade de um ateu. Sob esse aspecto, sair do armário me ajudaria a filtrar certas amizades: obviamente, eu não quero que gostem de mim por aquilo em que creio ou não creio, mas por quem sou.
Poderia dizer também que abri o jogo porque estou de saco cheio de certas coisas que estão acontecendo no mundo e no Brasil por culpa exclusiva da religião e de seus preceptores. E estou mesmo. Puto. É frustrante, em pleno século XXI, ver um grupo de pessoas que se julgam “fiéis” a um deus vingativo e obtuso, e que, em nome desta crença, praticam as maiores barbaridades e os maiores crimes contra a humanidade de que se tem notícia desde a inquisição católica. O Estado Islâmico é o exemplo mais acabado do nível de maldade e de corrupção humana a que a fé cega pode nos conduzir.
E é triste, frustrante, assistir impotente o avanço das correntes cristãs mais conservadoras na vida dos brasileiros (crentes ou não) e na política nacional. Líderes de diversas denominações neopentecostais – pastores que se tornaram milionários à custa de pessoas absolutamente carentes de tudo e que doam aos seus templos o pouco que têm na esperança de obter uma vida melhor com a ajuda de Deus (que, no caso, ajuda apenas os pastores dessas seitas caça-níquel) – gradativamente ocupam espaços públicos, como redes de televisão, teatros e cinemas falidos e o Congresso Nacional, e os usam para tentar impor a todos – inclusive àqueles que não compartilham de suas crenças – uma moral torta e atrasada, como que querendo levar o Brasil de volta à Idade Média. Pautas progressistas vão sendo gradativamente abandonadas em detrimento da adoção de medidas que parecem saídas de um livro de Nathaniel Hawthorne: redução da maioridade penal; alteração do estatuto do desarmamento; alteração do estatuto da família de modo a impedir o reconhecimento de núcleos familiares que não sejam aqueles constituídos de homem e mulher; a aprovação de um “Estatuto do Nascituro”, que impedirá o aborto até mesmo em caso de estupro; a definição do aborto como crime hediondo (!); criminalização da heterofobia (seja lá o que isso signifique); a instituição do Dia do Orgulho Hétero (!!!); etc. É desolador.
Mas não foi por isso. Ou pelo menos não exclusivamente por isso. Embora minhas preocupações políticas e humanitárias não possam ser descartadas, a questão é mais íntima e pessoal.
Poucas pessoas conhecem minha forma de pensar sobre este tema. Pouquíssimas na verdade. Mas em minha convivência com algumas dessas pessoas ocorreu o que sempre acontece nas interações humanas: meu ponto de vista não só foi muitas vezes aceito como se tornou o fator transformador na maneira com que elas viam o mundo. Como tudo na vida, no entanto, há consequências. O fardo de viver uma vida sabendo que ao morrer tudo estará acabado ou de que não existe uma força superior que irá nos amparar nos momentos de sofrimento e dor não é para qualquer um carregar. Alguns sucumbem e voltam às suas crenças anteriores. Outros não podem se dar a este luxo, pois, como um exército que queima as pontes após atravessá-las, o conhecimento que adquiriram inviabiliza acreditar de novo na existência de uma vida pós-morte ou um paraíso além-túmulo.
E me entristece profundamente saber que alguém a quem eu amo mais do que tudo esteja sofrendo ante a ausência de uma certeza metafísica. E que eu possa ser o causador, ainda que indireto, de tal sofrimento.
Então, esse texto é para você. Para dizer que não, eu não posso lhe devolver o paraíso perdido, pois você nunca o teve. Não tenho como deixá-la confortavelmente aos cuidados de um ente cuja existência é absolutamente indefensável, pois você se sentiria lograda. E não posso prometer que você nunca mais será acometida de certas angústias já que isso, muitas vezes, é a essência da vida de quem teve a coragem de encarar o abismo de frente.
Mas posso, se você me permitir, dar-lhe alguns conselhos.
Primeiro, procure não pensar no assunto. Algumas verdades somente podem ser suportadas com a armadura semi-inviolável que apenas os anos são capazes de nos conceder. Comigo pelo menos foi assim. Dia virá em que você poderá encarar o tema de frente e com desassombro. Por enquanto, apenas viva sua vida da melhor maneira possível, plenamente e sem medo.
Segundo, faça muitos amigos. Aprofunde suas amizades. Curta cada momento com seus companheiros de viagem. A convivência com amigos fiéis é a receita certa para a felicidade e nos ajuda a esquecer a dor da existência.
Terceiro: viaje. O quanto puder. Nem vou perder meu tempo nesse tópico porque você mesma já descobriu o efeito “mágico” que as viagens proporcionam ao nosso bem-estar.
Quarto: aprimore seus conhecimentos. Investigue. Descubra. Não se limite às matérias da faculdade. Seja curiosa: leia romances de boa qualidade, leia filosofia, ciência. Ouça muita música. Assista a bons filmes.
E leia poesia. Muita poesia. Como disse o filósofo norte-americano Richard Rorty, ao descobrir-se portador de um câncer terminal inoperável no pâncreas: “Gostaria que tivesse passado mais tempo da minha vida com versos. Isso não é porque tema ter perdido as verdades que são incapazes de serem a afirmadas em prosa. (…) Ao contrário, é porque teria vivido mais plenamente se tivesse sido capaz de recitar mais velhos poemas – da mesma forma que também teria se tivesse tido mais amigos íntimos. Culturas com vocabulários mais ricos são mais plenamente humanas – mais distantes das bestas – do que as mais pobres; homens e mulheres individuais são mais completamente humanos quando suas memórias estão amplamente estocadas com versos”.
E, principalmente, divirta-se. A vida é curta mesmo. Não vale a pena vive-la se não houver diversão.
E se tudo isso não funcionar, venha pra cá. Não há angústia que não ceda a uma volta de meia hora de carro pela cidade sem destino certo, não é mesmo?

Nelson Santander – Sonho Sertanejo

Não gosto de música sertaneja. Quem me conhece sabe que é um estilo musical que não me atrai nem um pouco. Segundo penso, 99% das composições musicais sertanejas não passam de canções simplórias, de melodias pobres enfeitadas com letras mais pobres ainda. E não estou falando só do estilo sertanejo da moda – o tal “sertanejo universitário”, com suas melodias monocórdias, suas letras de rimas pobres, metáforas de mau gosto (“meteoro da paixão”) e temáticas insípidas. Meu desgosto se estende também ao sertanejo que explodiu nos anos 80 – uma vertente mais romântica, cujos expoentes são a dupla Zezé de Camargo e Luciano – e alcança a tal “música sertaneja de raiz” (seja lá o que isso signifique).

Não posso deixar de reconhecer, todavia, que mesmo esse gênero musical legou, em quase todas as suas fases, algumas canções que se não podem ser equiparadas aos melhores trabalhos de Chico, Caetano ou Tom Jobim, não fazem feio em relação ao grosso da MPB. De memória posso citar “Mágoa de Boiadeiro”, de Índio Vago e Nonô Basílio; “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira; “Vida Vida Marvada”, do Rolando Boldrin; “Fogão de Lenha”, de Carlos Colla, Maurício Duboc e Xororó; e “Evidências”, de José Augusto e Paulo S Valle.
Mas o fato é que, pra mim, a maior parte do que já foi composto nesse estilo não presta. Por isso não sou daqueles que gritam “Aêêêê!!!” quando o cantor de barzinho dedilha a introdução daquela canção que começa com o verso “Doente de amor procurei remédio na vida noturna…” Minha reação, nessas horas, está mais pra chamar o garçom e pedir a conta…
Por isso estranhei quando acordei hoje cedo com o refrão de uma música sertaneja que eu não conhecia na cabeça. Ainda na cama fiquei vasculhando na memória para ver se me lembrava de alguma música com a melodia sonhada. Nada. Peguei então o fiapo da letra de que me lembrava no sonho (algo parecido com “vi você com uma toalha embrulhada no corpo”) e joguei no nosso oráculo futurista, que não me decepcionou. Na tela de resultados do google lá estava a canção do meu sonho: “24 Horas de Amor”, de Carlos Cezar e José Fortuna, gravada por Mato Grosso e Mathias nos anos 90, e, mais recentemente, por Bruno e Marrone.
Vocês sabem como são os sonhos: eles brotam do e dialogam diretamente com o nosso subconsciente e por isso quando são bonitos, são absurdamente bonitos, pois revolvem nossos desejos e anseios mais profundos. Portanto, a canção que soava em minha cabeça quando acordei era absolutamente maravilhosa. Arrebatadora. Será que a canção do mundo real também o seria? Teria ela como competir com um sonho?
Foi com essas questões na cabeça que coloquei o fone de ouvidos do smartphone e toquei o play.
Ouvi primeiro a versão de Mato Grosso e Mathias e, na sequência, a de Bruno e Marrone, ambas ao vivo. A versão de Bruno e Marrone é bem melhor do que a da outra dupla, seja pelo registro vocal dos goianos, que é superior tecnicamente, seja pela banda de apoio que acompanha a dupla – muito competente e profissional. Diante disso, ouvi uma vez mais a mesma música nessa versão. E outra. E outra.
Ok, se formos analisar a composição com olhos críticos implacáveis chegaremos à conclusão de que estamos diante de uma simples canção romântica, com uma melodia razoável e uma letra singela. Mas, no meu caso, a memória afetiva falou mais alto. A música real não rivalizou com a do sonho. Mas também não perdeu de goleada.
Eu devo ter escutado esta música em algumas oportunidades em bares ou restaurantes com música ao vivo, sem nunca ter reparado na melodia e na letra. Não conscientemente. Mas meu subconsciente tem vida própria e ficou trabalhando na surdina, como um ladrão que arma uma tocaia.
Na letra – simples – o eu-lírico dos compositores descreve uma cena prosaica: ele desperta de manhã sentindo o cheiro do perfume da mulher amada – que está ausente há muito tempo – mas, ao procurá-la olhando ao redor e apalpando o lugar na cama onde ela dormia, só encontra o vazio. O eu-lírico então chora ao lembrar que tudo está acabado. Em seguida constata que o cheiro do perfume é real, o que o faz acreditar que o objeto de seu desejo está ali. Até este ponto da canção, a melodia é suave e cadenciada. O refrão – que acompanha a surpresa revelada neste trecho da letra – é forte e reproduz musicalmente a emoção experimentada pelo eu-lírico ao fazer a grande revelação da música: a mulher amada aparece de repente no quarto, como que por encanto.

“E de repente eu vi
Você sair com a toalha no seu corpo
E se agarrar em mim
Como nos velhos tempos de amor tão louco.

Nada mais sei de nós
Porque morremos abraçados no desejo
Na doação total
Perdidos na loucura destes beijos”

A segunda parte da canção descreve então o encontro amoroso do casal, que vivencia sua paixão por “24 horas sem sair de nossa alcova”, e previsivelmente termina com o casal vivendo feliz para sempre.
Como eu disse, prosaica. Brega, até. Mas por que me comoveu tanto? Tenho alguns palpites.
O primeiro é que a letra narra aquilo que é uma espécie de fantasia adolescente que quase todo mundo tem: a de reencontrar um grande amor perdido de forma semelhante à da canção.
A melodia também, embora simples, é bem bonita, principalmente o refrão, que tem uma força insuspeita e uma mudança de sol para si bemol que empresta um efeito bem interessante à música.
Provavelmente é isso. Não sei.
Mas sei de duas coisas: primeiro, não devemos negligenciar o poder do nosso subconsciente. Ele filtra o mundo de uma maneira cuja lógica só ele entende. Às vezes ele resolve apresentar as conclusões a que chegou ao seu eu consciente. Mas quando isso ocorre, nem sempre o resultado é algo esperado. No caso do meu sonho sertanejo, por exemplo, eu terminei gostando de uma música que faz parte de um estilo musical que eu francamente desprezo.
A segunda coisa de que tenho certeza é a seguinte: vou ficar com a desgraça dessa música na cabeça por um bom tempo…