Abdellatif Laâbi – A Língua Materna

Faz vinte anos que vi minha mãe pela última vez
Ela se deixou morrer de fome
Dizem que todas as manhãs
ela retirava o lenço da cabeça
e batia com ele no chão sete vezes
amaldiçoando os céus e o Tirano
Eu estava na caverna
onde os condenados liam no escuro
e pintavam nas paredes o bestiário do futuro
Faz vinte anos que vi minha mãe pela última vez
Ela me deixou um conjunto de café em porcelana
e embora as xícaras tenham quebrado uma por uma
eram tão feias que não lamentei sua perda
embora o café seja a única bebida que aprecio
Hoje em dia, quando estou sozinho
começo a soar como minha mãe
ou melhor, é como se ela usasse minha boca
para proferir suas blasfêmias, maldições e bobagens
o incontável rosário de seus apelidos
todas as espécies em extinção de seus ditados
Faz vinte anos que vi minha mãe pela última vez
mas sou o último homem
que ainda fala a língua dela

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão vertida pra o inglês por André Naffis-Sahely

N. do T. Li este belo poema, pela primeira vez, na versão digital do The Guardian. No texto que apresenta o poeta, o livro do qual o poema foi extraído e o que pode ser a inspiração para a sua criação, o jornal britânico esclarece: “(…) My Mother’s Language é um característico poema autobiográfico pós-prisão em verso livre simples que confia na linguagem cotidiana e rejeita o uso de uma persona. Um traço do poeta mais experimental sobrevive com relação à pontuação. Não são usados sinais de pontuação: a presença invisível de um ponto final parece ser indicada quando a palavra seguinte recebe uma letra inicial maiúscula. A mãe do poeta, assim como sua língua, permanece sem nome, mas nós a conhecemos e a ouvimos no poema. Na entrevista de conclusão do livro, o poeta conta a Christopher Schaefer um pouco sobre seus pais. Analfabeta como seu pai artesão, sua mãe, que teve 11 filhos, oito dos quais sobreviveram, possuía “uma linguagem rica, cheia de imagens e um grande senso de humor. Ela frequentemente se irritava com sua condição, e foi ouvindo-a falar que talvez – e eu digo talvez – tenha nascido em mim o desejo de escrever”. De acordo com a lenda, a família foi exilada da Espanha, e Laâbi descreve sua mãe como de pele branca e olhos azuis. A referência à litania na 19ª linha, “the unfindable rosary of her nicknames” (o incontável rosário de seus apelidos), pode aludir a alguma mistura cultural distante com o catolicismo. O poema começa com a perda do filho: passa rapidamente, quase com dureza, para o desespero e o aparente suicídio da mãe, e então, com detalhes vívidos, evoca sua fúria: “Dizem que todas as manhãs / ela retirava o lenço da cabeça / e batia com ele no chão sete vezes / amaldiçoando os céus e o Tirano”. Imagina-se o próprio lenço sendo usado como um chicote furioso – uma imagem poderosa. O “Tirano” é, presumivelmente, Hassan II, que governou de 1961 a 1999, o período dos “anos de chumbo”. A imagem da cela da prisão como uma caverna lembra a caverna de Platão, bem como as cavernas pré-históricas cujas pinturas nas paredes sobreviveram. Sugere-se que a escuridão da tirania e do sofrimento pode ser instrutiva, um meio de educação. O “bestiário do futuro” pode não parecer, em um primeiro momento, uma imagem otimista, mas as pinturas rupestres possivelmente retratavam cenas de caça – representando, portanto, alimento e esperança. O bestiário dos prisioneiros não é necessariamente uma perpetuação da brutalidade. A repetição do primeiro verso marca uma mudança de humor para a terna memória tragicômica das xícaras de café de porcelana (presumivelmente, certa vez estimadas). O apego sentimental aos bens herdados é rejeitado com tato: as xícaras feias que se quebram não são lamentadas. O legado da mãe para o filho é algo mais radical. Em uma imagem impressionante, ela ela parece estar usando a boca do filho. Ela se torna claramente audível com “blasfêmias, maldições e bobagens” – a terra idiomática da poesia. A “língua” nesse poema é certamente usada no sentido mais amplo. Não é relevante, aqui, se a mãe fala o dialeto árabe marroquino, ou francês, ou amazigh, ou qualquer outra língua. É o “como” e não o “o quê”, a maneira como ela faz do idioma que usa, a sua e de seus filhos, o idioleto pessoal e familiar e todo o seu contexto e conotação caseiros e inimitáveis. Aquelas xícaras de café começam a ganhar uma dimensão metafórica relevante. O poeta amante do café não lamenta as xícaras quebradas. O café é mais importante do que as xícaras em que é servido, assim como a fala é mais do que uma casca requintada de significantes. (…) My Mother’s Language, como sempre na obra madura de Laâbi, capta a ressonância política no nível da intimidade humana. A intrusão particular de um regime autoritário, que encerrou prematuramente a conexão entre o filho e sua mãe, contém as inevitáveis separações e silenciamentos da existência. O filho que se lembra da mãe, de sua morte não testemunhada e de “todas as espécies em extinção de seus ditados” é, até certo ponto, uma figura universal.

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My Mother’s Language

It’s been twenty years since I last saw my mother
She starved herself to death
They say that each morning
she would pull her headscarf off
and strike the floor seven times
cursing the heavens and the Tyrant
I was in the cave
where convicts read in the dark
and painted the bestiary of the future on the walls
It’s been twenty years since I last saw my mother
She left me a china coffee set
and though the cups have broken one by one
they were so ugly I didn’t regret their loss
even though coffee’s the only drink I like
These days, when I’m alone
I start to sound like my mother
or rather, it’s as if she were using my mouth
to voice her profanities, curses and gibberish
the unfindable rosary of her nicknames
all the endangered species of her sayings
It’s been twenty years since I last saw my mother
but I am the last man
who still speaks her language

Abdellatif Laâbi – Duas horas em um trem

Em uma viagem de trem de duas horas
Eu revejo o filme da minha vida
Cerca de dois minutos por ano
Meia hora para a minha infância
outra para o meu tempo na prisão
Enquanto o amor, livros e viagens
compartilham o resto
A mão de minha parceira gradualmente
se funde à minha e sua cabeça,
que repousa em meu ombro,
parece leve como uma pomba
Quando chegarmos
estarei com cinquenta e poucos anos
e terei pouco mais de uma hora
de vida

Trad.: Nelson Santander

Two Hours on a Train

On a two-hour train ride
I replay the film of my life
Roughly two minutes per year
A half hour for my childhood
another for my time in prison
While love, books and travels
share the rest
My partner’s hand gradually
fuses into my own and her head,
which rests on my shoulder
feels as light as a dove
By the time we’ll arrive
I’ll have reached my fifties
and I’ll have little over an hour
left to live

Abdellatif Laâbi – Por que esta folha?

Por que esta folha?
Salvo por um detalhe,
o mundo não mudou
em tão pouco tempo
Salvo por um detalhe
esta manhã é uma réplica
cinzenta
da anterior
Salvo por um detalhe
o peso esmagador do peito
não se reduziu nem um grama
Salvo por um detalhe
sentimo-nos ainda vivos
um pouco mais
um pouco menos
O mesmo equilíbrio
frágil ou não
Salvo por um detalhe
o de uma pergunta desconcertante:
Por que esta folha
nem mais amarela nem mais verde que as outras
foi a que caiu da árvore?

Trad.: Carlito Azevedo

Pourquoi cette feuille?

Pourquoi cette feuille?
À un détail près
le monde n’a pas changé
en si peu de temps
À un détail près
ce matin est une réplique
grisaille à l’appui
du précédent
À un détail près
le poids écrasant la poitrine
ne s’est pas allégé d’un iota
À un détail près
l’on se sent toujours vivant
un peu plus
un peu moins
Le même équilibre
fragile ou non
À un détail près
celui de cette petite question entêtante:
Pourquoi cette feuille
ni plus jaune ni plus verte que les autres
est-elle tombée de l’arbre?