Carlos Drummond de Andrade – Coisa Miserável

Coisa miserável,
suspiro de angústia
enchendo o espaço,
vontade de chorar,
coisa miserável,
miserável.

Senhor, piedade de mim,
olhos misericordiosos
pousando nos meus,
braços divinos
cingindo meu peito,
coisa miserável
no pó sem consolo,
consolai-me.

Mas de nada vele
gemer ou chorar,
de nada vale
erguer as mãos e olhos
para um céu tão longe,
para um Deus tão longe
ou, quem sabe? para um céu vazio.

É melhor sorrir
(sorrir gravemente)
e ficar calado
e ficar fechado
entre duas paredes,
sem a mais leve cólera
ou humilhação.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 14/03/2016 

Tess Gallagher – Vão

Entrei neste mundo sem querer
vir. Dele vou sair sem
querer partir. Todo esse tempo,
em que parecia haver duas portas,
apenas uma porta havia – esta
passagem.

Trad.: Nelson Santander

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Opening

I entered this world not wanting
to come. I’ll leave it not
wanting to go. All this while,
when it seemed there were two doors,
there was only one – this
passing through.

Chico Buarque e Francis Hime – Amor Barato

 

Eu queria ser
Um tipo de compositor
Capaz de cantar nosso amor
Modesto

Um tipo de amor
Que é de mendigar cafuné
Que é pobre e às vezes nem é
Honesto

Pechincha de amor
Mas que eu faço tanta questão
Que se tiver precisão
Eu furto

Vem cá, meu amor
Aguenta o teu cantador
Me esquenta porque o cobertor é curto

Mas levo esse amor
Com o zelo de quem leva o andor
Eu velo pelo meu amor
Que sonha

Que enfim, nosso amor
Também pode ter seu valor
Também é um tipo de flor
Que nem outro tipo de flor

Dum tipo que tem
Que não deve nada a ninguém
Que dá mais que maria-sem-vergonha

Eu queria ser
Um tipo de compositor
Capaz de cantar nosso amor
Barato

Um tipo de amor
Que é de esfarrapar e cerzir
Que é de comer e cuspir
No prato

Mas levo esse amor
Com zelo de quem leva o andor
Eu velo pelo meu amor
Que sonha

Que, enfim, nosso amor
Também pode ter seu valor
Também é um tipo de flor
Que nem outro tipo de flor

Dum tipo que tem
Que não deve nada a ninguém
Que dá mais que maria-sem-vergonha

REPUBLICAÇÃO: canção originalmente publicada na página em 13/03/2016

Tom Hirons – Enquanto isso

Enquanto isso, as flores ainda florescem.
A lua aparece, e o sol também.
Bebês sorriem e, em algum lugar,
Contra todas as probabilidades,
Duas pessoas se apaixonam.

Estranhos dividem cigarros e piadas.
A luz brinca na superfície da água.
A graça acontece em ruas improváveis,
E nos abraçamos com força
Contra a entropia, o fogo e as águas.

A vida se inclina para a vida
E, embora a morte, por fim, reclame tudo,
Houve tantos momentos preciosos no intervalo,
Em que tudo era radiante,
E amávamos outra vez este mundo.

Trad.: Nelson Santander

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In the meantime

Meanwhile, flowers still bloom.
The moon rises, and the sun.
Babies smile and somewhere,
Against all the odds,
Two people are falling in love.

Strangers share cigarettes and jokes.
Light plays on the surface of water.
Grace occurs on unlikely streets
And we hold each other fast
Against entropy, the fires and the flood.

Life leans towards living
And, while death claims all things at the end,
There were such precious times between,
In which everything was radiant
And we loved, again, this world.

Chico Buarque – Pedaço de Mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

Intérpretes: Chico Buarque e Zizi Possi

REPUBLICAÇÃO: canção originalmente publicada na página em 13/03/2016

C. K. Williams – A Corsa

Perto do crepúsculo, de uma trilha, de um arroio,
paramos, eu, inquieto e angustiado
pelo sofrimento de alguém que eu amava;
a corsa, sempre sobressaltada.

Apenas sua orelha ligeira se movia,
transpassada pelo sol avermelhado,
tingida de uma cor que eu só vira
na foto de uma criança no ventre.

Nada mais se movia, nem uma folha,
nem o ar, mas ela se assustou e disparou
para dentro da mata crepitante.

A fração de minha dor que às vezes
me liberta partiu com ela; o resto,
no rastro da luz tardia, ficou.

Trad.: Nelson Santander

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The Doe

Near dusk, near a path, near a brook,
we stopped, I in disquiet and dismay
for the suffering of someone I loved,
the doe in her always incipient alarm.

All that moved was her pivoting ear
the reddening sun shining through
transformed to a color I’d only seen
on a photo of a child in a womb.

Nothing else stirred, not a leaf,
not the air, but she startled and bolted
away from me into the crackling brush.

The part of my pain which sometimes
releases me from it fled with her, the rest,
in the rake of the late light, stayed.

Haroldo Barbosa e Luis Reis – Notícia de Jornal

 

“Tentou contra a existência
Num humilde barracão
Joana de Tal, por causa de um tal João.
Depois de medicada,
Retirou-se pro seu lar.”

Aí a notícia carece de exatidão.
O lar não mais existe.
Ninguém volta ao que acabou.
Joana é mais uma mulata triste que errou.

Errou na dose, errou no amor,
Joana errou de João.
Ninguém notou, ninguém morou
Na dor que era o seu mal:

– A dor da gente não sai no jornal…

Letra: Haroldo Barbosa / Intérpretes: Chico Buarque e Miltinho

REPUBLICAÇÃO: canção originalmente publicada na página em 13/03/2016

Eavan Boland – Chegamos sempre tarde demais

A memória
tem duas partes.

Primeiro, a revisitação:

o modo como ainda posso ver
aqueles amantes à mesa do café. Ela chora.

Nova Inglaterra. Hora do café da manhã. Inverno. Atrás dela,
além da janela panorâmica,
um bosque de pinheiros brancos.

Neve nova cai, e a antiga,
perdendo o equilíbrio nos ramos,
se desprende em fragmentos,
acrescendo novas frações. Depois,

a reencenação. Sempre a mesma coisa.
Eu me levanto, afasto
o café. E sempre estou indo até ela.

O rubor e o ardor coram
sua fronte agora, e descem pelo pescoço.

Ergo uma das mãos. Aponto para
aquelas árvores, mostro a ela nossa necessidade dessas
belas superações do
que sofremos pelo
que sobrevive. E ela nunca sequer me vê.

Trad.: Nelson Santander

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We are always too late

Memory
is in two parts.

First, the revisiting:

the way even now I can see
those lovers at the café table. She is weeping.

It is New England, breakfast time, winter. Behind her,
outside the picture window, is
a stand of white pines.

New snow falls and the old,
losing its balance in the branches,
showers down,
adding fractions to it. Then

the reenactment. Always that.
I am getting up, pushing away
coffee. Always, I am going towards her.

The flush and scald is
to her forehead now, and back down to her neck.

I raise one hand. I am pointing to
those trees, I am showing her our needs for these
beautiful upstagings of
what we suffer by
what what survives. And she never even sees me.

Caetano Veloso – Como Dois e Dois

Quando você me ouvir cantar
Venha, não creia, eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar…

Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto, não minto, estou longe e perto
Sinto alegrias, tristezas e brinco

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco…

Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar

Tudo vai mal, tudo
Tudo mudou, não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto,
E a mesma lua a furar nosso zinco.

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco.

REPUBLICAÇÃO: canção originalmente publicada na página em 13/03/2016

Eavan Boland – Âmbar

Nunca importou que houvesse outrora um vasto lamento:

árvores nas colinas, nos bosques, chorando —
um ouro fluido vertendo

até o chão através das estações e dos séculos —
até agora.

Nesta amena tarde de setembro, da qual você está ausente,
seguro, como se minha mão pudesse retê-lo,
um ornamento de âmbar

que um dia você me deu.

A razão diz:
Os mortos não podem ver os vivos.
Os vivos nunca verão os mortos novamente.

O ar límpido de que precisávamos para nos encontrar
se perdeu para sempre, e ainda assim

esta resina um dia
recolheu sementes, folhas, e até pequenas penas, enquanto caía
e caía.

Agora, sob a luz do sol, elas parecem tão vivas quanto
sempre foram,

como se o passado se tornasse o presente e a própria memória
um mel báltico —

um desgaste nas margens do visível, uma prova do quanto
pode ser preservado

dentro de uma imperfeita translucidez.

Trad.: Nelson Santander

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Amber

It never mattered that there was once a vast grieving:

trees on their hillsides, in their groves, weeping—
a plastic gold dropping

through seasons and centuries to the ground—
until now.

On this fine September afternoon from which you are absent
I am holding, as if my hand could store it,
an ornament of amber

you once gave me.

Reason says this:
The dead cannot see the living.
The living will never see the dead again.

The clear air we need to find each other in is
gone forever, yet

this resin once
collected seeds, leaves and even small feathers as it fell
and fell

which now in a sunny atmosphere seem as alive as
they ever were

as though the past could be present and memory itself
a Baltic honey—

a chafing at the edges of the seen, a showing off of just how much
can be kept safe

inside a flawed translucence.