Sophia de Mello Breyner Andresen – Homenagem a Ricardo Reis

Não creias, Lídia , que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecemos a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita

Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não – vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo

II
Escuta, Lídia, como os dias correm
Fingidamente imóveis,
E à sombra de folhagens e palavras
Os deuses transparecem
Como para beber o sangue oculto
Que nos tornou atentos

III
Ausentes são os deuses mas presidem.
Nós habitamos nessa
Transparência ambígua,

Seu pensamento emerge quando tudo
De súbito se torna
Solenemente exacto.

O seu olhar ensina o nosso olhar:
Nossa atenção ao mundo
É o culto que pedem.

IV
Falamos junto à luz. Lá fora a noite
Imóvel brilha sobre o mar parado.
À sombra das palavras o teu rosto
Em mim se inscreve como se durasse.

V
Faz tua vida em frente à luz
Um lúcido terraço exacto e branco,
Docemente cortado
Pelo rio das noites.

Alheio o passo em tão perdida estrada
Vive, sem seres ele, o teu destino.
Inflexível assiste
À tua própria ausência.

VI
Irmão do que escrevi
Distante me desejo
Como quem ante o quadro
P’ra melhor ver recua.
Mas tu, Neera, impões
Leis que não são as minhas.
Teus pés batem a dansa
De sombra e desmesura
Em frente da varanda
Fugidia cintilas
Longas mãos brancos pulsos
Torcem os teus cabelos
Quando irrompe da noite
Tua face te toira
E acordas as imagens
Mais antigas que os deuses.

VII
Eros, Neera, sacudiu os seus
Cabelos sobre a testa larga e baixa
Eros – Neera – Antinoos
Irrompe no terraço.

Palmeiras nas ruínas de Palmira
Eros poisou o seu rosto no teu ombro
Eros soltou as feras
Do halali, Neera.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 19/02/2016

Sophia de Mello Breyner Andresen – Traduzido de Kleist

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante
E brilha sobre campos mais floridos
Mas os olhos que vêem essas maravilhas
São olhos apodrecidos

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 17/02/2016

Sophia de Mello Breyner Andresen – Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 05/07/2019

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Sophia de Mello Breyner Andresen – Espera

Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/12/2018

Sophia de Mello Breyner Andresen – Fundo do Mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/12/2017

Sophia de Mello Breyner Andresen – Meio-dia

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem alvas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 09/08/2017

Sophia de Mello Breyner Andresen – Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

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Sophia de Mello Breyner Andresen – Fundo do mar

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

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Sophia de Mello Breyner Andresen – O primeiro homem

Era como uma árvore da terra nascida
Confundindo com o ardor da terra a sua vida,
E no vasto cantar das marés cheias
Continuava o bater das suas veias.

Criados à medida dos elementos
A alma e os sentimentos
Em si não eram tormentos
Mas graves, grandes, vagos,
Lagos
Refletindo o mundo,
E o eco sem fundo
Da ascensão da terra nos espaços
Eram os impulsos do seu peito
Florindo num ritmo perfeito
Nos gestos dos seus braços.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.