Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Quinta Elegia

Quinta elegia

               dedicada a Frau Hertha von Kœnig

Mas quem são eles, dizei-me, os saltimbancos, um pouco
mais efêmeros que nós mesmos, desde a infância
por alguém torcidos – por amor
de que vontade jamais saciada? Entretanto ela os torce,
curva-os, entretece-os, vibra-os,
atira-os e os toma de volta! Do ar untado
e mais liso, eles resvalam
sobre o tapete gasto (adelgaçado
pelo eterno salto), esse tapete
perdido no universo.
Emplastro aderido lá, onde o céu
do subúrbio feriu a terra.
            E apenas lá,
aufereto, mostra a grande maiúscula
inicial da Derelicção… e já o renitente
agarrar torna a rolar os homens mais fortes,
por jogo, como outrora Augusto o Forte, à mesa,
brincando com pratos de zinco.

Ah! e em torno desse centro,
a rosa do contemplar:
floresce e desfolha. Em torno do
triturador, o pistilo atingido por seu próprio
pólen florescente, novamente fecundado – fruto
aparente do desgosto, inconsciente de si mesmo –
com a fina superfície a brilhar
num sorriso leve, simulado.

Lá, o murcho, o enrugado atleta,
o velho que apenas rufla o tambor,
encolhido na pele poderosa como se outrora tivesse contido
dois homens e um já estivesse
morto, enquanto o outro sobrevive ainda,
surdo e um pouco perturbado,
às vezes, na pele viúva.

E o jovem, o homem, como se fosse o filho
de uma nuca e de uma freira: retesado e vigoroso,
cheio de músculos e de simplicidade.

Ó vós,
que um sofrimento ainda pequeno
ganhou alguma vez como brinquedo,
numa de suas longas convalescenças…

Tu, que imaturo, com o baque
apenas conhecido pelos frutos, tu que cem vezes
por dia cais da árvore do movimento construído
em conjunto (árvore mais ágil que a água, percorrendo
em minutos primavera, verão e outono) – cais e roças
o túmulo: às vezes, num breve intervalo, a ternura
hesita em teu rosto, diante de tua mãe raramente
carinhosa; mas logo se perde no corpo
que dissipa, leviano, a expressão tímida e incompleta…
E o homem torna a bater as mãos para o salto… Antes
que a dor se torne mais nítida e próxima do teu coração
sempre alterado, antecipa-a e à sua origem, o ardor
das plantas dos pés, que empurra à flor dos
olhos algumas lágrimas corpóreas.
E contudo, às cegas,
o sorriso…

Anjo, toma, colhe a erva medicinal de flores singelas!
Modela um vaso e dá-lhe abrigo! Preserva-a entre as
alegrias não desabrochadas; celebra-a em
carinhosa urna, com uma inscrição florida e inspirada:
            Subrisio Saltat.

E tu, graciosa,
esquecida no silêncio
das alegrias vivas e apressadas. Talvez
sejam felizes por ti as franjas dos teus cabelos,
ou quem sabe, sobre teus seios jovens e túmidos,
a seda verde-metal sinta-se mimada e nada lhe falte.
Tu,
colocada sempre de um modo novo
sobre os carros oscilantes do equilíbrio,
fruto de feira da indiferença,
exibida ao público, entre os ombros.

Onde, onde é o espaço – levo-o no coração –,
onde, não podendo ainda, eles caiam
um do outro como animais que saltassem
para acasalar-se;
onde os lastros ainda têm peso,
onde os arcos ainda bamboleiam
fugindo às varas
que giram inutilmente…

E de repente, neste árduo Nada,
o ponto inexprimível onde a insuficiência pura
incompreensivelmente se transforma – e salta
àquela vazia plenitude
onde o cálculo de muitos algarismos
se resolve sem números.

Praças, ó praças em Paris, feira infinita,
onde a modista Madame Lamort
tece e retorce os caminhos inquietos do mundo –
numerosas fitas – em laços imprevistos, folhos, flores,
laçarotes, frutos artificiais, tudo falsamente colorido
para os módicos chapéus de inverno
do Destino.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Anjo!: talvez haja uma praça que desconhecemos, onde,
sobre um tapete indizível, os amantes, incapazes aqui,
pudessem mostrar suas ousadas, altivas figuras
do ímpeto amoroso, suas torres de alegria, suas trêmulas
escadas que há muito se tocam onde nunca houve apoio:
e poderiam diante dos espectadores em círculo,
incontáveis mortos silenciosos. E estes arrojariam
suas últimas, sempre poupadas,
sempre ocultas, desconhecidas moedas de felicidade
para sempre válidas, diante do par
verdadeiramente sorridente, sobre o tapete
apaziguado.

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die fünfte Elegie

Frau Hertha Koenig zugeeignet

Wer aber sind sie, sag mir, die Fahrenden, diese ein wenig
Flüchtigern noch als wir selbst, die dringend von früh an
wringt ein wem, wem zu Liebe
niemals zufriedener Wille? Sondern er wringt sie,
biegt sie, schlingt sie und schwingt sie,
wirft sie und fängt sie zurück; wie aus geölter,
glatterer Luft kommen sie nieder
auf dem verzehrten, von ihrem ewigen
Aufsprung dünneren Teppich, diesem verlorenen
Teppich im Weltall.
Aufgelegt wie ein Pflaster, als hätte der Vorstadt-
Himmel der Erde dort wehe getan.
            Und kaum dort,
recht, da und gezeigt: des Dastehns
großer Anfangsbuchstab…, schon auch, die stärksten
Männer, rollt sie wieder, zum Scherz, der immer
kommende Griff, wie August der Starke bei Tisch
einen zinnenen Teller.

Ach und um diese
Mitte, die Rose des Zuschauns:
blüht und entblättert. Um diesen
Stampfer, den Stempel, den von dem eignen
blühenden Staub getroffnen, zur Scheinfrucht
wieder der Unlust befruchteten, ihrer
niemals bewußten, – glänzend mit dünnster
Oberfläche leicht scheinlächelnden Unlust.

Da: der welke, faltige Stemmer,
der alte, der nur noch trommelt,
eingegangen in seiner gewaltigen Haut, als hätte sie früher
zwei Männer enthalten, und einer
läge nun schon auf dem Kirchhof, und er überlebte den andern,
taub und manchmal ein wenig
wirr, in der verwitweten Haut.

Aber der junge, der Mann, als wär er der Sohn eines Nackens
und einer Nonne: prall und strammig erfüllt
mit Muskeln und Einfalt.

Oh ihr,
die ein Leid, das noch klein war,
einst als Spielzeug bekam, in einer seiner
langen Genesungen…

Du, der mit dem Aufschlag,
wie nur Früchte ihn kennen, unreif,
täglich hundertmal abfällt vom Baum der gemeinsam
erbauten Bewegung (der, rascher als Wasser, in wenig
Minuten Lenz, Sommer und Herbst hat) –
abfällt und anprallt ans Grab:
manchmal, in halber Pause, will dir ein liebes
Antlitz entstehn hinüber zu deiner selten
zärtlichen Mutter; doch an deinen Körper verliert sich,
der es flächig verbraucht, das schüchtern
kaum versuchte Gesicht… Und wieder
klatscht der Mann in die Hand zu dem Ansprung, und eh dir
jemals ein Schmerz deutlicher wird in der Nähe des immer
trabenden Herzens, kommt das Brennen der Fußsohln
ihm, seinem Ursprung, zuvor mit ein paar dir
rasch in die Augen gejagten leiblichen Tränen.
Und dennoch, blindlings,
das Lächeln…

Engel! o nimms, pflücks, das kleinblütige Heilkraut.
Schaff eine Vase, verwahrs! Stells unter jene, uns noch nicht
offenen Freuden; in lieblicher Urne
rühms mit blumiger schwungiger Aufschrift:
            “Subrisio Saltat”.

Du dann, Liebliche,
du, von den reizendsten Freuden
stumm Übersprungne. Vielleicht sind
deine Fransen glücklich für dich –,
oder über den jungen
prallen Brüsten die grüne metallene Seide
fühlt sich unendlich verwöhnt und entbehrt nichts.
Du,
immerfort anders auf alle des Gleichgewichts schwankende Waagen
hingelegte Marktfrucht des Gleichmuts,
öffentlich unter den Schultern.

Wo, o wo ist der Ort – ich trag ihn im Herzen –,
wo sie noch lange nicht konnten, noch voneinander
abfieln, wie sich bespringende, nicht recht
paarige Tiere; –
wo die Gewichte noch schwer sind;
wo noch von ihren vergeblich
wirbelnden Stäben die Teller
torkeln…

Und plötzlich in diesem mühsamen Nirgends, plötzlich
die unsägliche Stelle, wo sich das reine Zuwenig
unbegreiflich verwandelt –, umspringt
in jenes leere Zuviel.
Wo die vielstellige Rechnung
zahlenlos aufgeht.

Plätze, o Platz in Paris, unendlicher Schauplatz,
wo die Modistin, Madame Lamort,
die ruhlosen Wege der Erde, endlose Bänder,
schlingt und windet und neue aus ihnen
Schleifen erfindet, Rüschen, Blumen, Kokarden, künstliche Früchte –, alle
unwahr gefärbt, — für die billigen
Winterhüte des Schicksals.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Engel!: Es wäre ein Platz, den wir nicht wissen, und dorten,
auf unsäglichem Teppich, zeigten die Liebenden, die’s hier
bis zum Können nie bringen, ihre kühnen
hohen Figuren des Herzschwungs,
ihre Türme aus Lust, ihre
längst, wo Boden nie war, nur an einander
lehnenden Leitern, bebend, – und könntens,
vor den Zuschauern rings, unzähligen lautlosen Toten:
Würfen die dann ihre letzten, immer ersparten,
immer verborgenen, die wir nicht kennen, ewig
gültigen Münzen des Glücks vor das endlich
wahrhaft lächelnde Paar auf gestilltem
Teppich?

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Quarta Elegia

Ó árvores da vida, quando atingireis o inverno?
Ignoramos a unidade. Não somos lúcidos como as aves
migradoras. Precipitados ou vagarosos
nos impomos repentinamente aos ventos
e tornamos a cair num lago indiferente.
Conhecemos igualmente o florescer e o murchar.
No entanto, em alguma parte, vagueiam leões ainda,
alheios ao desamparo enquanto vivem seu esplendor.

Nós, porém, quando pensamos totalmente o Uno,
logo sentimos o lastro do Outro. A hostilidade
aguarda, muito perto. Os amantes
não hesitam, sem cessar,
entre limites – eles que aspiravam refúgio, espaço, busca?
Compõe-se, então, para a fugitiva imagem de um momento,
um fundo de oposição, penosamente, para que
a possamos ver; que clareza se nos proporciona,
a nós que ignoramos o contorno da sensação,
aderidos ao exterior de sua forma. – Quem
desconhece a angustiosa espera diante
do palco sombrio do próprio coração?
Olhai: ergue-se o pano sobre o cenário
de um adeus. Fácil de compreender. O jardim habitual
a oscilar ligeiramente. Só então aparece o bailarino.
Ele não. Basta. E enquanto se move com desenvoltura,
muda de aspecto; torna-se um burguês
e entra na casa pela porta da cozinha.
Não quero essas máscaras ocas, prefiro
o boneco de corpo cheio. Susterei
o títere, os cordéis e o rosto
feito de aparência. Estou aqui, à espera.
Ainda que as lâmpadas se apaguem, ainda
que me digam: “acabou-se” – ainda que do palco
se evole o vácuo na corrente de ar cinzento,
ainda que os antepassados silenciosos
não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo
a criança de olhos castanhos e estrábicos –,
ficarei à espera. Sempre há o que ver.

Não tenho razão? Tu, que por mim provaste
a amargura da vida, pai, penetrando
a minha, tu, que provaste a infusão
turva de meu destino, quando ao teu lado
crescia, e, inquieto pelo ressaibo de futuro
tão estranho, puseste à prova
meu olhar velado ainda – tu, meu pai,
que desde que morreste, tantas vezes
na esperança que levo em mim, tens medo,
e que por meu destino incerto abandonas
a serenidade dos mortos, reinos
de serenidade, não tenho razão?

E vós – não tenho razão? –, vós que me
amastes pelo tímido início de amor
que vos tinha e do qual me evadia,
pois o espaço que amava em vosso rosto
em espaço cósmico se transformava. – Enquanto
aguardo diante do palco dos títeres – não,
quando me transformar inteiramente num intenso
olhar, um Anjo surgirá para refazer
o equilíbrio, como o ator que anima os títeres.
Anjo e boneco: haverá por fim espetáculo.
Congrega-se então o que, sem cessar,
nossa existência mesma desagrega. E nasce
das nossas estações o ciclo da transformação
total. Muito acima de nós, o Anjo brincará.
Olhai, os moribundos não mais suspeitariam
que é pretexto e irrealidade tudo o que aqui
fazemos. Oh, dias da infância, em que atrás
das figuras havia mais do que passado e em que
diante de nós não se abria o futuro!
Crescíamos, é certo, aspirando, às vezes,
tornar-nos grandes, talvez por amor
daqueles que nada mais tinham, senão
o “ser grandes”. E lá permanecíamos,
em nossos caminhos solitários,
na alegria do perdurável, nos limites
do mundo e do brinquedo, no espaço que desde
a origem foi criado para um puro evento.

Quem mostra uma criança tal como é? Quem a
situa na constelação com a medida da distância
em suas mãos? Quem faz sua morte
com pão cinzento que endurece – ou a abandona
dentro da boca redonda, como o coração
de uma bela maçã?… Compreendemos facilmente
os criminosos. Mas isto: conter a morte,
toda a morte, ainda antes da vida,
tão docemente contê-la e não ser perverso,
isto é inefável.

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die vierte Elegie

O Bäume Lebens, o wann winterlich?
Wir sind nicht einig. Sind nicht wie die Zug-
vögel verständigt. Überholt und spät,
so drängen wir uns plötzlich Winden auf
und fallen ein auf teilnahmslosen Teich.
Blühn und verdorrn ist uns zugleich bewußt.
Und irgendwo gehn Löwen noch und wissen,
solang sie herrlich sind, von keiner Ohnmacht.

Uns aber, wo wir eines meinen, ganz,
ist schon des andern Aufwand fühlbar. Feindschaft
ist uns das Nächste. Treten Liebende
nicht immerfort an Ränder, eins im andern,
die sich versprachen Weite, Jagd und Heimat.
Da wird für eines Augenblickes Zeichnung
ein Grund von Gegenteil bereitet, mühsam,
daß wir sie sähen; denn man ist sehr deutlich
mit uns. Wir kennen den Kontur
des Fühlens nicht: nur, was ihn formt von außen.
Wer saß nicht bang vor seines Herzens Vorhang?
Der schlug sich auf: die Szenerie war Abschied.
Leicht zu verstehen. Der bekannte Garten,
und schwankte leise: dann erst kam der Tänzer.
Nicht der. Genug! Und wenn er auch so leicht tut,
er ist verkleidet und er wird ein Bürger
und geht durch seine Küche in die Wohnung.

Ich will nicht diese halbgefüllten Masken,
lieber die Puppe. Die ist voll. Ich will
den Balg aushalten und den Draht und ihr
Gesicht und Aussehn. Hier. Ich bin davor.
Wenn auch die Lampen ausgehn, wenn mir auch
gesagt wird: Nichts mehr –, wenn auch von der Bühne
das Leere herkommt mit dem grauen Luftzug,
wenn auch von meinen stillen Vorfahrn keiner
mehr mit mir dasitzt, keine Frau, sogar
der Knabe nicht mehr mit dem braunen Schielaug:
Ich bleibe dennoch. Es giebt immer Zuschaun.

Hab ich nicht recht? Du, der um mich so bitter
das Leben schmeckte, meines kostend, Vater,
den ersten trüben Aufguß meines Müssens,
da ich heranwuchs, immer wieder kostend
und, mit dem Nachgeschmack so fremder Zukunft
beschäftigt, prüftest mein beschlagnes Aufschaun, –
der du, mein Vater, seit du tot bist, oft
in meiner Hoffnung, innen in mir, Angst hast,
und Gleichmut, wie ihn Tote haben, Reiche
von Gleichmut, aufgibst für mein bißchen Schicksal,
hab ich nicht recht? Und ihr, hab ich nicht recht,
die ihr mich liebtet für den kleinen Anfang
Liebe zu euch, von dem ich immer abkam,
weil mir der Raum in eurem Angesicht,
da ich ihn liebte, überging in Weltraum,
in dem ihr nicht mehr wart…: wenn mir zumut ist,
zu warten vor der Puppenbühne, nein,
so völlig hinzuschaun, daß, um mein Schauen
am Ende aufzuwiegen, dort als Spieler
ein Engel hinmuß, der die Bälge hochreißt.
Engel und Puppe: dann ist endlich Schauspiel.
Dann kommt zusammen, was wir immerfort
entzwein, indem wir da sind. Dann entsteht
aus unsern Jahreszeiten erst der Umkreis
des ganzen Wandelns. Über uns hinüber
spielt dann der Engel. Sieh, die Sterbenden,
sollten sie nicht vermuten, wie voll Vorwand
das alles ist, was wir hier leisten. Alles
ist nicht es selbst. O Stunden in der Kindheit,
da hinter den Figuren mehr als nur
Vergangnes war und vor uns nicht die Zukunft.
Wir wuchsen freilich und wir drängten manchmal,
bald groß zu werden, denen halb zulieb,
die andres nicht mehr hatten als das Großsein.
Und waren doch in unserem Alleingehn,
mit Dauerndem vergnügt und standen da
im Zwischenraume zwischen Welt und Spielzeug,
an einer Stelle, die seit Anbeginn,
gegründet war für einen reinen Vorgang.

Wer zeigt ein Kind, so wie es steht? Wer stellt
es ins Gestirn und giebt das Maß des Abstands
ihm in die Hand? Wer macht den Kindertod
aus grauem Brot, das hart wird, – oder läßt
ihn drin im runden Mund, so wie den Gröps
von einem schönen Apfel?… Mörder sind
leicht einzusehen. Aber dies: den Tod,
den ganzen Tod, noch vor dem Leben so
sanft zu enthalten und nicht bös zu sein,
ist unbeschreiblich.

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Terceira Elegia

Uma coisa é cantar a amada. Outra, ai de mim,
é cantar o culpado e oculto Deus-Rio do sangue.
Aquele que a amada reconhece de longe, seu amante, que sabe
ele do Senhor da Volúpia que tantas vezes o assaltava
em plena solidão, antes que a mulher amada o abrandasse,
como se nem mesmo ela existisse? Como o deus emergia
a irreconhecível face gotejante, invocando a noite
para o delírio infinito! Oh, Netuno do sangue,
com o hediondo tridente e o vento obscuro de seu peito,
concha enrodilhada! Ouve como a noite se escava
e se esvazia. Não se origina em vós, estrelas, o prazer
que o amante respira no rosto da amada? A compreensão profunda
de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranquilas?

Tu não foste, ai, sua mãe não foi, quem assim
distendeu o arco expectante de suas sobrancelhas.
Não foi ao teu encontro, jovem terna e sensível,
que se animaram esses lábios numa expressão fecunda.
Crês que assim o agitaria teu passo ligeiro,
ó tu que te moves como a brisa da manhã?
Apavoraste, entretanto, seu coração; antigos
terrores nele despertaram a esse embate.
Chama-o… Não podes arrancá-lo inteiramente ao
convívio sombrio. Mas ele quer e se evade; abrandado,
habitua-se à intimidade do teu coração e toma e se inicia.
Porém, iniciou-se ele alguma vez?
Mãe, fizeste-o pequeno, tu foste o seu início.
Ele era tão novo… Inclinaste o mundo amigo
para seus olhos novos e apartaste o que era estranho.
Onde, onde estão os anos em que tua forma esbelta
bastava para lhe ocultar o vacilante caos?
Tantas coisas assim dissimulaste: a escuridão suspeita
do quarto, tornaste inofensiva; de teu coração,
refúgio pleno, um espaço mais humano retiraste,
para uni-lo ao espaço de suas noites. Não nas trevas,
mas em tua presença mais próxima pousaste a luz noturna,
como luz de amizade. Nenhum ruído que não explicasses,
sorrindo, como se há muito soubesses quando o pavimento
assim se comportava. E ele ouvia, apaziguado, tal era o poder
da tua suave permanência. Atrás do armário se ocultava,
num manto enorme, seu destino e as desordenadas linhas
do futuro inquieto, às dobras da cortina se amoldavam.

E quando ele jazia, o aplacado, sob
cujas pálpebras sonolentas tua leve forma
suavemente se perdia, parecia amparado…
Quem impedia, porém, quem retinha
nas profundezas de seu ser os fluxos da origem?
Ah, não havia precaução no adormecido; dormindo,
a sonhar, febril, como se abandonava!
Ele, o novo, o perturbado, como se enredava
nas garras vegetais do vir-a-ser interior,
como se emaranhava em primitivas estruturas, em
formas que fugiam, bestiais, crescentes
e opressivas! Como ele se entregava! Amava.
Amava seu mundo interior, caos selvagem,
bosque antiquíssimo e adormecido, sobre cujo
silencioso despenhar verde-luz, seu coração
se erguia. Amava. Abandonado, as próprias raízes mergulhou
na origem poderosa, onde sobrevivia seu pequeno nascimento.
Desceu, amando, ao sangue mais antigo, ao abismo
onde jaz o Espanto, regurgitado pelos ancestrais.
E cada sobressalto o reconhecia e acenava, conivente.
Sim, o Horror sorriu-lhe… Poucas vezes com tal ternura sorriste,
mãe. Como não amaria ele o que assim lhe sorria? Antes de ti
ele o amou, pois quando o trazias, estava dissolvido
na água que torna mais leve a semente.

Não amamos como as flores, depois de uma
estação; circula em nossos braços, quando amamos,
a seiva imemorial. Ó jovem, amávamos em nós,
não um ser futuro, mas o fermento inumerável;
não uma criança, entre todas, mas os pais,
ruínas de montanhas repousando em nossas
profundezas; e o seco leito fluvial das mães
de outrora; e toda a paisagem silenciosa,
sob o destino puro ou nebuloso: –
eis aqui, jovem, o que adveio antes de ti.

E tu mesma, que sabes? Conjuraste
no amado a pré-história obscura… Que
sentimentos, em seres desaparecidos agitaste!
Que mulheres, nele, te odiaram! Que homens
sombrios em suas veias jovens despertaste!
Crianças mortas para ti se volveram…
Oh, retoma diante dele, docemente,
uma tranquila tarefa cotidiana – dá-lhe a paz
dos jardins e o contrapeso das noites…
              Retém-no…

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die dritte Elegie

Eines ist, die Geliebte zu singen. Ein anderes, wehe,
jenen verborgenen schuldigen Fluß-Gott des Bluts.
Den sie von weitem erkennt, ihren Jüngling, was weiß er
selbst von dem Herren der Lust, der aus dem Einsamen oft,
ehe das Mädchen noch linderte, oft auch als wäre sie nicht,
ach, von welchem Unkenntlichen triefend, das Gotthaupt
aufhob, aufrufend die Nacht zu unendlichem Aufruhr.
O des Blutes Neptun, o sein furchtbarer Dreizack.
O der dunkele Wind seiner Brust aus gewundener Muschel.
Horch, wie die Nacht sich muldet und höhlt. Ihr Sterne,
stammt nicht von euch des Liebenden Lust zu dem Antlitz
seiner Geliebten? Hat er die innige Einsicht
in ihr reines Gesicht nicht aus dem reinen Gestirn?

Du nicht hast ihm, wehe, nicht seine Mutter
hat ihm die Bogen der Braun so zur Erwartung gespannt.
Nicht an dir, ihn fühlendes Mädchen, an dir nicht
bog seine Lippe sich zum fruchtbarern Ausdruck.
Meinst du wirklich, ihn hätte dein leichter Auftritt
also erschüttert, du, die wandelt wie Frühwind?
Zwar du erschrakst ihm das Herz; doch ältere Schrecken
stürzten in ihn bei dem berührenden Anstoß.
Ruf ihn… du rufst ihn nicht ganz aus dunkelem Umgang.
Freilich, er will, er entspringt; erleichtert gewöhnt er
sich in dein heimliches Herz und nimmt und beginnt sich.
Aber begann er sich je?
Mutter, du machtest ihn klein, du warsts, die ihn anfing;
dir war er neu, du beugtest über die neuen
Augen die freundliche Welt und wehrtest der fremden.
Wo, ach, hin sind die Jahre, da du ihm einfach
mit der schlanken Gestalt wallendes Chaos vertratst?
Vieles verbargst du ihm so; das nächtlich-verdächtige Zimmer
machtest du harmlos, aus deinem Herzen voll Zuflucht
mischtest du menschlichern Raum seinem Nacht-Raum hinzu.
Nicht in die Finsternis, nein, in dein näheres Dasein
hast du das Nachtlicht gestellt, und es schien wie aus Freundschaft.
Nirgends ein Knistern, das du nicht lächelnd erklärtest,
so als wüßtest du längst, wann sich die Diele benimmt…
Und er horchte und linderte sich. So vieles vermochte
zärtlich dein Aufstehn; hinter den Schrank trat
hoch im Mantel sein Schicksal, und in die Falten des Vorhangs
paßte, die leicht sich verschob, seine unruhige Zukunft.

Und er selbst, wie er lag, der Erleichterte, unter
schläfernden Lidern deiner leichten Gestaltung
Süße lösend in den gekosteten Vorschlaf –:
schien ein Gehüteter… Aber innen: wer wehrte,
hinderte innen in ihm die Fluten der Herkunft?
Ach, da war keine Vorsicht im Schlafenden; schlafend,
aber träumend, aber in Fiebern: wie er sich ein-ließ.
Er, der Neue, Scheuende, wie er verstrickt war,
mit des innern Geschehens weiterschlagenden Ranken
schon zu Mustern verschlungen, zu würgendem Wachstum, zu tierhaft
jagenden Formen. Wie er sich hingab –. Liebte.
Liebte sein Inneres, seines Inneren Wildnis,
diesen Urwald in ihm, auf dessen stummem Gestürztsein
lichtgrün sein Herz stand. Liebte. Verließ es, ging die
eigenen Wurzeln hinaus in gewaltigen Ursprung,
wo seine kleine Geburt schon überlebt war. Liebend
stieg er hinab in das ältere Blut, in die Schluchten,
wo das Furchtbare lag, noch satt von den Vätern. Und jedes
Schreckliche kannte ihn, blinzelte, war wie verständigt.
Ja, das Entsetzliche lächelte… Selten
hast du so zärtlich gelächelt, Mutter. Wie sollte
er es nicht lieben, da es ihm lächelte. Vor dir
hat ers geliebt, denn, da du ihn trugst schon,
war es im Wasser gelöst, das den Keimenden leicht macht.

Siehe, wir lieben nicht, wie die Blumen, aus einem
einzigen Jahr; uns steigt, wo wir lieben,
unvordenklicher Saft in die Arme. O Mädchen,
dies: daß wir liebten in uns, nicht Eines, ein Künftiges, sondern
das zahllos Brauende; nicht ein einzelnes Kind,
sondern die Väter, die wie Trümmer Gebirgs
uns im Grunde beruhn; sondern das trockene Flußbett
einstiger Mütter –; sondern die ganze
lautlose Landschaft unter dem wolkigen oder
reinen Verhängnis –: dies kam dir, Mädchen, zuvor.

Und du selber, was weißt du –, du locktest
Vorzeit empor in dem Liebenden. Welche Gefühle
wühlten herauf aus entwandelten Wesen. Welche
Frauen haßten dich da. Was für finstere Männer
regtest du auf im Geäder des Jünglings? Tote
Kinder wollten zu dir… O leise, leise,
tu ein liebes vor ihm, ein verläßliches Tagwerk, – führ ihn
nah an den Garten heran, gib ihm der Nächte
Übergewicht…
              Verhalt ihn…

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Segunda Elegia

Todo Anjo é terrível. No entanto, ai de mim, eu vos invoco,
pássaros quase mortais da alma, sabendo quem sois.
Tempos remotos de Tobias, em que o mais radiante dentre vós
aparecia no limiar da casa humilde, sem intimidar,
para a viagem levemente disfarçado (jovem que outro jovem,
curioso, contemplava). Adiantasse agora o Arcanjo,
ameaça de trás das estrelas, um passo apenas
para o nosso lado: no grande sobressalto
destruir-nos-ia o próprio coração. Quem sois?

Precoces perfeições, vós, privilegiados,
perfil dos altos cumes, cimos alvorecentes
de toda criação – pólen da divindade em flor,
articulações de luz, corredores, escadas, tronos,
recintos da essência, escudos de alegria, tumultos
de êxtases tempestuosos, e, subitamente
solitários, espelhos cuja beleza reflui
restituída à face que se contempla.
O sentir em nós, ai, é o dissipar-se –
exalamos nosso ser; e de uma a outra ardência
nos desvanecemos. Alguma vez nos dizem:
“circulas no meu sangue, este quarto, a primavera,
estão cheios de ti”. Inutilmente procuram nos reter.
Evolamos. E aqueles que são belos, oh, quem os
deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto
e se dissipa. Tal o orvalho da manhã
e o calor do alimento, o que é nosso
flutua e desaparece. Ó sorrisos, para onde?
E tu, olhar erguido, fugitiva onda ardente e nova
do coração? Ai de nós, assim somos.
Estará o mundo impregnado de nós, pois que
nele nos perdemos? E os Anjos,
retomarão apenas o que deles emanou?
Talvez um pouco de humano se encontre às vezes
em seus traços, como o vago no rosto das mulheres
grávidas? Eles porém nada percebem,
no turbilhão da volta a si mesmos. (Como o saberiam?)

Se o soubessem, os Amantes diriam
estranhas coisas no ar noturno. No entanto, parece
que tudo nos oculta. Olhai, as árvores são; as casas
que habitamos, resistem. Somente nós passamos,
permuta aérea, em face de tudo. E tudo conspira
para que silenciemos: o pudor, ou
quem sabe que indizível esperança.

Amantes, que vos bastais, qual nosso segredo?
Há contato entre vós. Teríeis provas?
Às vezes minhas mãos se reconhecem ou
meu rosto gasto nelas tenta se abrigar.
Isto me dá uma certa consciência de mim mesmo.
Quem, no entanto, por tão pouco ousaria ser?
Mas vós, acrescidos no êxtase um do outro
– até que exausto, um suplique: basta! –, vós,
cujas mãos descobrem a riqueza dos anos de vinho
e que vos dissolveis para que o outro domine,
pergunto-vos: qual nosso segredo? Eu sei,
bem-aventurado é vosso contato, pois
as carícias sutilmente protegem, retêm
a duração pura; e o amplexo, não vos promete quase
a eternidade? Quando resistis ao sobressalto
dos primeiros olhares, à ansiosa espera
à janela, ou quando ultrapassais
o primeiro passeio, juntos,
num jardim: amantes, sois vós ainda?
Quando um no outro pousais os vossos
lábios, como taças, oh, como se evade
então, estranhamente, o embriagado.

Admirastes nas estelas gregas a prudência
do gesto humano? O amor e o adeus sobre as espáduas
pousavam de leve, como se de outra matéria fossem
feitos, que nós desconhecemos. Lembrai-vos das mãos que,
sem peso, se apoiavam, apesar dos corpos vigorosos. Senhores
de si mesmos, eles sabiam: aqui estamos,
em nosso palpável domínio; mais poderosamente
os deuses podem nos premir. Isso é assunto dos deuses.

Ah, encontrássemos também nós
uma estreita faixa de terra fértil, puramente
humana, entre a torrente e a rocha!
Pois nosso coração nos ultrapassa ainda como outrora
e é impossível saciá-lo em figuras apaziguantes,
ou em corpos divinos que, imensos, o moderam.

Trad.: Dora Ferreira da Silva

Die zweite Elegie

Jeder Engel ist schrecklich. Und dennoch, weh mir,
ansing ich euch, fast tödliche Vögel der Seele,
wissend um euch. Wohin sind die Tage Tobiae,
da der Strahlendsten einer stand an der einfachen Haustür,
zur Reise ein wenig verkleidet und schon nicht mehr furchtbar;
(Jüngling dem Jüngling, wie er neugierig hinaussah).
Träte der Erzengel jetzt, der gefährliche, hinter den Sternen
eines Schrittes nur nieder und herwärts: hochauf-
schlagend erschlüg uns das eigene Herz. Wer seid ihr?

Frühe Geglückte, ihr Verwöhnten der Schöpfung,
Höhenzüge, morgenrötliche Grate
aller Erschaffung, – Pollen der blühenden Gottheit,
Gelenke des Lichtes, Gänge, Treppen, Throne,
Räume aus Wesen, Schilde aus Wonne, Tumulte
stürmisch entzückten Gefühls und plötzlich, einzeln,
Spiegel: die die entströmte eigene Schönheit
wiederschöpfen zurück in das eigene Antlitz.

Denn wir, wo wir fühlen, verflüchtigen; ach wir
atmen uns aus und dahin; von Holzglut zu Holzglut
geben wir schwächern Geruch. Da sagt uns wohl einer:
ja, du gehst mir ins Blut, dieses Zimmer, der Frühling
füllt sich mit dir… Was hilfts, er kann uns nicht halten,
wir schwinden in ihm und um ihn. Und jene, die schön sind,
o wer hält sie zurück? Unaufhörlich steht Anschein
auf in ihrem Gesicht und geht fort. Wie Tau von dem Frühgras
hebt sich das Unsre von uns, wie die Hitze von einem
heißen Gericht. O Lächeln, wohin? O Aufschaun:
neue, warme, entgehende Welle des Herzens –;
weh mir: wir sinds doch. Schmeckt denn der Weltraum,
in den wir uns lösen, nach uns? Fangen die Engel
wirklich nur Ihriges auf, ihnen Entströmtes,
oder ist manchmal, wie aus Versehen, ein wenig
unseres Wesens dabei? Sind wir in ihre
Züge soviel nur gemischt wie das Vage in die Gesichter
schwangerer Frauen? Sie merken es nicht in dem Wirbel
ihrer Rückkehr zu sich. (Wie sollten sie’s merken.)

Liebende könnten, verstünden sie’s, in der Nachtluft
wunderlich reden. Denn es scheint, daß uns alles
verheimlicht. Siehe, die Bäume sind; die Häuser,
die wir bewohnen, bestehn noch. Wir nur
ziehen allem vorbei wie ein luftiger Austausch.
Und alles ist einig, uns zu verschweigen, halb als
Schande vielleicht und halb als unsägliche Hoffnung.

Liebende, euch, ihr in einander Genügten,
frag ich nach uns. Ihr greift euch. Habt ihr Beweise?
Seht, mir geschiehts, daß meine Hände einander
inne werden oder daß mein gebrauchtes
Gesicht in ihnen sich schont. Das gibt mir ein wenig
Empfindung. Doch wer wagte darum schon zu sein?
Ihr aber, die ihr im Entzücken des anderen
zunehmt, bis er euch überwältigt
anfleht: nicht mehr –; die ihr unter den Händen
euch reichlicher werdet wie Traubenjahre;
die ihr manchmal vergeht, nur weil der andre
ganz überhandnimmt: euch frag ich nach uns. Ich weiß,
ihr berührt euch so selig, weil die Liebkosung verhält,
weil die Stelle nicht schwindet, die ihr, Zärtliche,
zudeckt; weil ihr darunter das reine
Dauern verspürt. So versprecht ihr euch Ewigkeit fast
von der Umarmung. Und doch, wenn ihr der ersten
Blicke Schrecken besteht und die Sehnsucht am Fenster,
und den ersten gemeinsamen Gang, ein Mal durch den Garten:
Liebende, seid ihrs dann noch? Wenn ihr einer dem andern
euch an den Mund hebt und ansetzt –: Getränk an Getränk:
o wie entgeht dann der Trinkende seltsam der Handlung.

Erstaunte euch nicht auf attischen Stelen die Vorsicht
menschlicher Geste? war nicht Liebe und Abschied
so leicht auf die Schultern gelegt, als wär es aus anderm
Stoffe gemacht als bei uns? Gedenkt euch der Hände,
wie sie drucklos beruhen, obwohl in den Torsen die Kraft steht.
Diese Beherrschten wußten damit: so weit sind wirs,
dieses ist unser, uns so zu berühren; stärker
stemmen die Götter uns an. Doch dies ist Sache der Götter.

Fänden auch wir ein reines, verhaltenes, schmales
Menschliches, einen unseren Streifen Fruchtlands
zwischen Strom und Gestein. Denn das eigene Herz übersteigt uns
noch immer wie jene. Und wir können ihm nicht mehr
nachschaun in Bilder, die es besänftigen, noch in
göttliche Körper, in denen es größer sich mäßigt

Rainer Maria Rilke – Elegias de Duíno – Primeira Elegia

Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgasta-nos a face – a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que se amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos – talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num voo mais comovido.

Sim, as primaveras precisavam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janela aberta,
um violino d’amore se abandonava. Tudo isto era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, à espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imortal sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas – essas abandonadas
que te pareceram tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser – nascimento supremo.

Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objeto amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no voo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.

Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que o silêncio prodiga.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoles, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa…
O que pede essa voz? A ansiada libertação
da aparência de injustiça que às vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.

É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas singularmente promissoras
não atribuir mais o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais o ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.

Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentar Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que ele abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações – que hoje nos trazem êxtase, consolo e a

Trad.: Dora Ferreira da Silva

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Die erste Elegie

Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel
Ordnungen? und gesetzt selbst, es nähme
einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein. Denn das Schöne ist nichts
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen,
und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht,
uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich.
Und so verhalt ich mich denn und verschlucke den Lockruf
dunkelen Schluchzens. Ach, wen vermögen
wir denn zu brauchen? Engel nicht, Menschen nicht,
und die findigen Tiere merken es schon,
daß wir nicht sehr verläßlich zu Haus sind
in der gedeuteten Welt. Es bleibt uns vielleicht
irgendein Baum an dem Abhang, daß wir ihn täglich
wiedersähen; es bleibt uns die Straße von gestern
und das verzogene Treusein einer Gewohnheit,
der es bei uns gefiel, und so blieb sie und ging nicht.
O und die Nacht, die Nacht, wenn der Wind voller Weltraum
uns am Angesicht zehrt –, wem bliebe sie nicht, die ersehnte, sanft enttäuschende, welche dem einzelnen Herzen
mühsam bevorsteht. Ist sie den Liebenden leichter?
Ach, sie verdecken sich nur miteinander ihr Los.
Weißt du’s noch nicht? Wirf aus den Armen die Leere
zu den Räumen hinzu, die wir atmen; vielleicht daß die Vögel
die erweiterte Luft fühlen mit innigerm Flug.

Ja, die Frühlinge brauchten dich wohl. Es muteten manche
Sterne dir zu, daß du sie spürtest. Es hob
sich eine Woge heran im Vergangenen, oder
da du vorüberkamst am geöffneten Fenster,
gab eine Geige sich hin. Das alles war Auftrag.
Aber bewältigtest du’s? Warst du nicht immer
noch von Erwartung zerstreut, als kündigte alles
eine Geliebte dir an? (Wo willst du sie bergen,
da doch die großen fremden Gedanken bei dir
aus und ein gehn und öfters bleiben bei Nacht.)
Sehnt es dich aber, so singe die Liebenden; lange
noch nicht unsterblich genug ist ihr berühmtes Gefühl.
Jene, du neidest sie fast, Verlassenen, die du
so viel liebender fandst als die Gestillten. Beginn
immer von neuem die nie zu erreichende Preisung;
denk: es erhält sich der Held, selbst der Untergang war ihm
nur ein Vorwand, zu sein: seine letzte Geburt.

Aber die Liebenden nimmt die erschöpfte Natur
in sich zurück, als wären nicht zweimal die Kräfte,
dieses zu leisten. Hast du der Gaspara Stampa
denn genügend gedacht, daß irgend ein Mädchen,
dem der Geliebte entging, am gesteigerten Beispiel
dieser Liebenden fühlt: daß ich würde wie sie?
Sollen nicht endlich uns diese ältesten Schmerzen
fruchtbarer werden? Ist es nicht Zeit, daß wir liebend
uns vom Geliebten befrein und es bebend bestehn:
wie der Pfeil die Sehne besteht, um gesammelt im Absprung
mehr zu sein als er selbst. Denn Bleiben ist nirgends.

Stimmen, Stimmen. Höre, mein Herz, wie sonst nur
Heilige hörten: daß sie der riesige Ruf
aufhob vom Boden; sie aber knieten,
Unmögliche, weiter und achtetens nicht:
So waren sie hörend. Nicht, daß du Gottes ertrügest
die Stimme, bei weitem. Aber das Wehende höre,
die ununterbrochene Nachricht, die aus Stille sich bildet.
Es rauscht jetzt von jenen jungen Toten zu dir.
Wo immer du eintratst, redete nicht in Kirchen
zu Rom und Neapel ruhig ihr Schicksal dich an?
Oder es trug eine Inschrift sich erhaben dir auf,
wie neulich die Tafel in Santa Maria Formosa.
Was sie mir wollen? leise soll ich des Unrechts
Anschein abtun, der ihrer Geister
reine Bewegung manchmal ein wenig behindert.

Freilich ist es seltsam, die Erde nicht mehr zu bewohnen,
kaum erlernte Gebräuche nicht mehr zu üben,
Rosen, und andern eigens versprechenden Dingen
nicht die Bedeutung menschlicher Zukunft zu geben;
das, was man war in unendlich ängstlichen Händen,
nicht mehr zu sein, und selbst den eigenen Namen
wegzulassen wie ein zerbrochenes Spielzeug.
Seltsam, die Wünsche nicht weiterzuwünschen. Seltsam,
alles, was sich bezog, so lose im Raume
flattern zu sehen. Und das Totsein ist mühsam
und voller Nachholn, daß man allmählich ein wenig
Ewigkeit spürt. – Aber Lebendige machen
alle den Fehler, daß sie zu stark unterscheiden.
Engel (sagt man) wüßten oft nicht, ob sie unter
Lebenden gehn oder Toten. Die ewige Strömung
reißt durch beide Bereiche alle Alter
immer mit sich und übertönt sie in beiden.

Schließlich brauchen sie uns nicht mehr, die Früheentrückten,
man entwöhnt sich des Irdischen sanft, wie man den Brüsten
milde der Mutter entwächst. Aber wir, die so große
Geheimnisse brauchen, denen aus Trauer so oft
seliger Fortschritt entspringt –: könnten wir sein ohne sie?
Ist die Sage umsonst, daß einst in der Klage um Linos
wagende erste Musik dürre Erstarrung durchdrang;
daß erst im erschrockenen Raum, dem ein beinah göttlicher Jüngling
plötzlich für immer enttrat, die Leere in jene
Schwingung geriet, die uns jetzt hinreißt und tröstet und hilft.

Rainer Maria Rilke – Torso arcaico de Apolo

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: Precisas mudar de vida.

Trad.: Mário Faustino

Archaïscher Torso Apollos

Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,

sich hilt and glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, and im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.

Sonst stünde dieser Stein entstellt and kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
and flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;

und bräche nicht aus alien seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du musst dein Leben ändern.

Rainer Maria Rilker – A Morte da Amada

Da morte ele sabia quase nada:
que nos toma e nos cala de repente.
Como a amada não fora arrebatada,
antes se desprendera docemente
do seu olhar para a morada escura,
e como percebeu que à outra vida
como uma lua plena a formosura
da visitante fora concedida,
dos mortos se tornou tão familiar
que os viu como parentes através dela;
deixou os outros a falar,
sem neles crer; chamou esse lugar
bem-vindo, sempre doce, e pelos pés
da amada o começou a palmilhar.

Trad.: Augusto de Campos

Der Tod der Geliebten

Er wußte nur vom Tod was alle wissen:
daß er uns nimmt und in das Stumme stößt.
Als aber sie, nicht von ihm fortgerissen,
nein, leis aus seinen Augen ausgelöst,

hinüberglitt zu unbekannten Schatten,
und als er fühlte, daß sie drüben nun
wie einen Mond ihr Mädchenlächeln hatten
und ihre Weise wohlzutun:

da wurden ihm die Toten so bekannt,
als wäre er durch sie mit einem jeden
ganz nah verwandt; er ließ die andern reden

und glaubte nicht und nannte jenes Land
das gutgelegene, das immersüße—
Und tastete es ab für ihre Füße.

Rainer Maria Rilke – Tira-me a luz dos olhos

Tira-me a luz dos olhos; continuarei a ver-te.
Tapa-me os ouvidos; continuarei a ouvir-te.
E, mesmo sem pés, posso caminhar para ti.
E, mesmo sem boca, posso chamar por ti.
Arranca-me os braços e tocar-te-ei
Com o meu coração como com uma mão…
Despedaça-me o coração; e o meu cérebro baterá
E, mesmo que faças do meu cérebro uma fogueira
Continuarei a trazer-te no meu sangue

Trad.: Maria Teresa Dias Furtado

Put out my eyes

Put out my eyes, and I can see you still,
Slam my ears to, and I can hear you yet;
And without any feet can go to you;
And tongueless, I can conjure you at will.
Break off my arms, I shall take hold of you
And grasp you with my heart as with a hand;
Arrest my heart, my brain will beat as true;
And if you set this brain of mine afire,
Then on my blood-stream I yet will carry you

Rainer Maria Rilke – O Poeta

Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.

Trad.: Augusto de Campos

Der Dichter

Du entfernst dich von mir, du Stunde,
Wunden schlägt mir dein Flügelschlag.
Allein: was soll ich mit meinem Munde?
mit meiner Nacht? mit meinem Tag?

Ich habe keine Geliebte, kein Haus,
keine Stelle, auf der ich lebe,
Alle Dinge, an die ich mich gebe,
werden reich und geben mich aus.

Rainer Maria Rilke – Para recitar antes de adormecer

Eu queria cantar para dentro de alguém,
sentar-me junto de alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo o tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.