Paulo Henriques Britto – Heraclitus meets Pascal

Ninguém se molha duas vezes
na mesma tempestade. Mudam
você, a água, nem é o mesmo,
na sua mão, o guarda-chuva;

muda o motivo pelo qual
você houve por bem molhar-se,
oferecendo ao temporal
– por assim dizer – a outra face;

não muda, porém, a consciência
de que os sapatos encharcados
e a calça manchada de lama

terão talvez efeito idêntico
ao que teria ter ficado
em casa, quietinho, na cama.

Paulo Henriques Britto – Nenhum Mistério

I

Não chega a ser desespero,
mas não por haver esperança.
Falta a ênfase, o tempero,
o sal da intemperança,

sem o qual não é iguaria
à altura de grandes gestos.
É mais da categoria
das migalhas, dos restos.

Pois dessa matéria escassa
há que se tirar sustância.
(Até mesmo na desgraça
é pra poucos a abundância.)

II

Não há nenhum mistério nesta história
em que o culpado se anuncia
ainda na primeira hora,

e são tão copiosas as pistas
quanto inúteis, e o final
– que, é claro, já se sabia

desde o início – é banal,
melancólico, besta
e isento de moral.

Mesmo assim, esta
é a história lida
até por quem detesta

toda a inútil narrativa,
até por não haver alternativa.

III

Seria igual se fosse diferente,
seria – sendo outro – mais do mesmo.
Tome-se alguma alternativa, a esmo,
e a leva adiante: tente o que se tente,

acaba-se chegando sempre ao ponto
exato de onde se partiu (o nada).
E o mais é igual, qualquer que seja a estrada,
não por ser o planeta tão redondo,

e sim por ser estreito o repertório
de mundos disponíveis, porque a margem
é tão parca nas bordas do papel.

Assim, qualquer desvio aleatório
por fim se reduz a mera miragem,
um nada – nada novo – sob o céu.

IV

A posição de tudo ao seu redor
(a pele de uma bolha):
resultado final (desolador)
de mil acasos, mil escolhas,

todas suas. Aranha em sua teia,
olho de furacão
que tudo vê e de tudo se alheia:
só consciência e solidão.

V

É, sem tirar nem pôr, exatamente
como no pesadelo. É o lugar
onde se está agora. O presente.

Impossível fugir desta presença,
e impensável. Estar aqui é pensar,
e pensar é sempre ser o que pensa,

e o que pensa dispensa o sonho, certo
de que só o estar onde se está importa.
E no entanto este teto tão perto

da cabeça, este chão frio demais,
estas paredes pensas, esta porta
que fecha como quem não se abre mais –

como não reconhecer isso, ao vê-lo?
É tudo tal como no pesadelo.

VI

Permanecer aqui,
apesar e além.
Estar, mesmo assim,
mesmo sem.

Efeito talvez
da inércia de ser:
mesmo não querendo,
não poder.

Ou então um símile
cru e exato:
como comer após cuspir
no prato.

VII

Chega um momento em que as mãos
já não querem cumprir ordens.
Não pegam mais, não apertam,
e sim mordem.

Os olhos se cansam da luz,
os pés desprezam os pisos,
a mente rejeita todo e
qualquer juízo.

E o rosto – este velho disfarce
velhaco, por trás do qual
não há outra coisa senão
uma máscara igual,

o rosto nem mesmo se esforça
pra parecer que não é outro.
(Já, já não será mais preciso
fingir-se de morto.)

VIII

Zelosamente se procura
o mal preciso tão sonhado
de que o remédio já encontrado
seria a cura.

Pois é mister que se aproveite
o que se tem, por mais daninho,
que da pedra que há no caminho
se extraia o leite.

Caso contrário, há que abrir mão
do pouco que ao menos parece
real e sólido,

o que seria catastrófico
(mas também seria uma espécie
de solução).

IX

Cada objeto está em seu lugar,
menos um.
Cada ser tem razão de ser ou estar,
menos um.
Todos têm uma causa e uma razão,
menos um.
Nenhum deles requer explicação,
menos um.
E saberão o quanto são pequenos?
(Mais é menos.)

X

Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas. Cortinas corridas.
Nos armários vazios, grandes chumaços

de algodão a preencher cada centímetro
cúbico de cada compartimento
e gaveta. Na parede, um termômetro
no qual ninguém dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar
de alguma coisa como um dia. Ou não.

Paulo Henriques Britto – Nenhuma Arte

Os deuses do acaso dão, a quem nada
lhes pediu, o que um dia levam embora;
e se não foi pedida a coisa dada
não cabe se queixar da perda agora.
Mas não ter tido nunca nada não
seria bem melhor — ou menos mau?
Mesmo sabendo que uma solidão
completa era o capítulo final,
a anestesia valeria o preço?
(Rememorar o que não foi não dá
em nada. É como enxergar um começo
no que não pode ser senão o fim.
Ontem foi ontem. Amanhã não há.
Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

II

Tempo agora perdido
(todo tempo se perde)
vivo só nos vestígios

que resistem por leves
(tudo que pesa afunda)
no mais raso da pele

onde o que foi desejo
(tudo que fica dói)
até hoje lateja.

III

Pois era assim: o dia era mais dia,
diáfano, diíssimo, e entre um
e outro dia o luxo de uma noite.
E isso era tudo. Havia isso. E mais

a promessa de que após esse dia
viria uma noite, e, depois, mais um,
primícia da iguaria de uma noite.
Isso era vida. Isso era até demais,

e isso nenhum de nós nunca entendia,
e era dia claro, e isso nenhum
de nós via, como se fosse noite.
E isso bastava. Não havia mais

que a sucessão que não cessava: dia
se abrindo em noite a desabrochar num
dia em que sempre eclodia uma noite.
Isso era sempre. E agora, nunca mais.

IV

Uma vida inteira passada
dentro dos confins de um corpo
junto ao qual vem atrelada
a consciência, peso morto
que acusa o golpe sofrido
e cochicha ao pé do ouvido
depois que o fato se deu:
nada que te pertence é teu.

Único antídoto do nada
entre as peçonhas da vida,
coisa por sorte encontrada
e por desgraça perdida,
amor lega, em sua ausência,
um lembrete à consciência
(se ela por acaso esqueceu):
nada que te pertence é teu.

Princípio? Tudo é contingente.
Fim? Toda luz termina em breu.
Sentido? Quem quiser que invente,
quem não quiser se contente
com este presente besta
que, quando acabou a festa,
a vida avara lhe deu:
nada que te pertence é teu.

V

Veja e toque, e se contente.
Nada mais lhe é permitido.
Pois tudo que você tem
só é seu no escasso sentido

em que é sua a sombra escassa
que esse seu corpo segrega,
que some assim que se apaga
a exata luz que ela nega.

VI

Aprender enfim
a cruel lição:
a que só se aprende
por subtração:

a que não saber
não é desvantagem
(pois nem sempre é ganho
uma aprendizagem

(o que vai de encontro
ao que muitos pensam)),
e sim uma sorte,
uma vera bênção:

a que não é arte
nem tampouco ciência:
pois não há teoria —
só práxis — da ausência.

(Mas dizer-lhe o nome
já é exorcizá-la:
quem a vivencia
cala.)

Aqui: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/14473.pdf

Paulo Henriques Britto – “Da metafísica”

Ser parte de alguém ou algo
tão grande que não se entenda:
toda crença, ao fim e ao cabo,
se resume a essa lenda –

o mais rematado dislate,
coisa jamais entendida,
que eleva ao sumo quilate
o caco mais reles de vida.

Paulo Henriques Britto – Entrevista

Ótima entrevista concedida por Paulo Henriques Britto (para mim, o melhor poeta brasileiro vivo) a Ramon Ramos, e publicada no Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco.

Paulo Henriques Britto (Rio de Janeiro, 1952), além de poeta, é contista, tradutor e professor da PUC-Rio. Sua obra poética, desde a estreia em Liturgia da matéria (1982), apresenta interesse pelas formas fixas, cujos limites instigam o autor também pelo desafio no instante da criação. Poeta que discute a contenção de versos e emoções, Paulo recebeu os prêmios Alphonsus de Guimaraens, por seu Trovar claro (1997), e Portugal Telecom (atual Oceanos) por Macau (2004).

A epígrafe de Emily Dickinson, que abre seu mais novo livro Nenhum mistério, em tradução do próprio autor diz: Não tivesse eu visto o Sol/ Sofrível a sombra seria/ Mas a Luz fez de meu Deserto/ Terra ainda mais baldia. Tais versos sugerem a discussão sobre a iluminação interior, mas também sobre a luminosidade do processo criativo do poeta — temas que percorrem o livro. Outro tema importante, a perda, aparece já nas primeiras páginas — propondo diálogo com Elizabeth Bishop — e se mantém como questão norteadora atravessando a obra como um todo.

A escrita como tentativa de domar o caos é um dos pontos que vemos nesta entrevista para o Pernambuco, na qual Paulo também fala sobre os procedimentos de elaboração de Nenhum mistério, sobre sua poética e sobre poesia em geral.

Como você vê Nenhum mistério em relação à sua obra? Há continuidade do projeto de Formas do nada que, por sua vez, valoriza o vazio, o menor (como anteriormente sugerido em Mínima lírica)?

Creio que sim. A valorização do menor, do mínimo, é, para um poeta do nosso tempo, uma simples constatação do óbvio. Sim, a minha produção dos últimos 10 anos, ou mais, parece ter uma temática em comum. E, como é inevitável, a temática de quem se aproxima da barreira dos 60 anos e depois a ultrapassa, é cada vez mais a perda. Assim como, no início da trajetória, os temas mais comuns são as descobertas do amor, da maturidade, do potencial da palavra.

A vida na sua literatura não se romantiza, tampouco se mitifica. Ao contrário, por vezes passa a sensação de resignação com o que nos é dado neste mundo. Na sua poesia, como diria Drummond, a vida é uma ordem?

A meu ver, o acaso é o grande motor da realidade. A vida, como parte da realidade, é essencialmente caótica, sempre regida pela entropia. Nós, seres humanos, é que ficamos o tempo todo tentando impor ordem, conectar eventos através de nexos causais. Essas tentativas só podem obter êxito em caráter parcial e provisório, necessariamente, porque elas atuam no sentido contrário à própria natureza do real. A poesia é, entre outras coisas, uma tentativa de ordenar o caos das sensações e dos sentimentos, de criar uma ordem que possa ser utilizada pela própria pessoa que escreve, e também — espera-se — pelas que vierem a ler. Essas tentativas dão prazer, ou ao menos atuam no sentido de reduzir o pavor causado pela constatação de que tudo tende à desorganização, à morte. Mas é claro que, para a grande maioria da humanidade, a poesia, a arte em geral, é desnecessária. Para essas pessoas, existe um texto sagrado já pronto, o qual prova que, na verdade, a realidade é perfeitamente organizada e caminha para um final feliz; todas as evidências em sentido contrário são tachadas de ilusões. Como, na verdade, esse texto sagrado não prova nada, é uma ficção como outra qualquer, passa-se a criminalizar aquele que não acredita nele — o castigo é a perdição eterna, e em tempos passados no Ocidente podia ser a fogueira, como aliás ainda é em alguns países do Oriente Médio — e a condenar a inteligência e a vontade de saber. Não é à toa que o pecado de Adão e Eva foi comer o fruto do conhecimento. Não é à toa que os líderes religiosos e políticos, de modo geral e com raras exceções, odeiam a inteligência e o conhecimento,
e desprezam a arte.

O novo livro se inicia com a palavra nenhum e termina com nada. São quase 110 ocorrências do vocábulo não ao longo dos poemas — além de tantos outros do campo semântico das negativas. O que tanto precisa ser negado, Paulo?

As crenças irreais a que nos apegamos. A tentação de tomar uma ficção como realidade última é muito forte: afinal, ela promete o fim de todos os temores. As religiões, os sistemas ideológicos que explicam tudo, são formas de lobotomia voluntária. A negação é uma afirmação da natureza dura desse real, que se tenta disfarçar com ficções edulcoradas.

No livro, Nenhuma arte é o nome da série de- poemas iniciais, que promovem diálogo com Elizabeth Bishop. A perda, que não está nos títulos, claramente é o tema central. Como você pensa o uso do perder para a elaboração desses poemas?

É o tema que se impõe, como já comentei, a uma altura da vida em que o que mais acontece com a gente é sofrer perdas. E todo escritor — talvez principalmente o poeta lírico — trabalha basicamente com a sua vivência do momento em que escreve, além do repertório da memória. Bishop foi uma poeta que descobri relativamente tarde, quando eu já havia mais ou menos decidido o quê e como eu queria escrever, e que mesmo assim teve um certo impacto sobre a minha escrita, creio eu. Eu diria que a poesia dela reforçou uma tendência que já existia no meu trabalho, e me apresentou algumas sugestões novas.

Certa vez, em entrevista, você disse que “quando se pega uma forma, você nunca compra o pacote completo”. A sua poesia faz uso de formas presas (que poderia sugerir uma ideia de ordem) com uma linguagem próxima do coloquial. Quais desafios você se impõe na hora de escrever?

A forma fixa, para mim, é uma espécie de disciplina, sem dúvida, mas é também, e principalmente, uma fonte de “inspiração”. Alguns dos meus poemas partem de ideias abstratas, mas são uma minoria; no mais de vezes o ponto de partida é uma palavra, ou um sintagma, ou simplesmente um padrão formal, um esquema métrico ou estrófico. Há no meu livro novo um poema que partiu de uma rima, uma rima que me pareceu interessante, entre duas palavras que eu nunca havia percebido que rimavam entre si. Esse é o ponto de partida. O desafio é chegar ao fim, em primeiro lugar, conseguir chegar àquele ponto em que, como disse Cabral, faz clique; mas é também chegar ao fim, a algum tipo de fim, e constatar que o poema não é inteiramente redundante, não funciona de modo muito semelhante a outro ou outros que já li, ou mesmo que já escrevi.

Enquanto leitor e professor da poesia que é feita hoje no Brasil, como você vê a opção majoritária pelo verso livre também aliada à coloquialidade?

O verso livre é uma forma traiçoeira. Na verdade, não é uma forma, e, sim, uma pluralidade imensa de formas, que abre um leque infinito de possibilidades. Por isso mesmo, como costumo dizer, usar verso livre é a maneira mais fácil de escrever poesia ruim, e a mais difícil, ou uma das mais difíceis, de escrever poesia boa. Boa parte do verso livre publicado nos últimos cento e poucos anos só é poesia porque é dividida em versos; no mais, não há nenhum trabalho de linguagem que seja remotamente poético. Mas nas mãos de um grande mestre — e, no nosso idioma, os maiores mestres do verso livre são, a meu ver, Pessoa e Bandeira — o verso livre rende resultados que não seriam possíveis em nenhuma forma tradicional. Quanto à coloquialidade, eu diria que é a única conquista do Modernismo em relação à qual me parece impossível voltar atrás. É perfeitamente possível escrever hoje em dia poemas bons e relevantes usando o decassílabo, o soneto, a sextina, o diabo — mas não consigo imaginar um poema escrito hoje em dia, utilizando o vocabulário precioso, a dicção nobre e a sintaxe arrevesada dos parnasianos, que possa me interessar. Essas coisas, tal como a epopeia, a máquina de escrever e o bonde puxado por burro, pertencem a um passado que não volta mais.

Em determinado poema, está dito que, se não é sempre possível amar a vida, temos sempre o direito de editá-la. Escrever é se editar?

Sem dúvida. A escrita em geral, e a poesia em particular, é mais uma oportunidade de se impor, ou tentar impor, uma ordem causal ao caos aleatório da realidade. Editar a vida é tentar ver uma lógica nela, construir cadeias de causalidade, elaborar explicações para as coisas que aconteceram, justificativas para as decisões que foram tomadas (muitas vezes por motivos inteiramente aleatórios).

O que tem no Paulo-vivo que se perde (ou se ganha) no Paulo-livro?

Você está me pedindo para comparar a realidade vivida com a escrita? Bom, não dá para comparar. A experiência viva é a base de tudo, e o que ela tem de mais maravilhoso é também o que ela tem de mais terrível — o fato de ser regida pelo acaso, de frustrar toda e qualquer tentativa de controle, de imposição de uma ordem. E é esta a grande vantagem da criação artística: ela pode ser, em boa parte (ainda que não de todo), controlada, construída de modo calculado e racional, com princípio, meio e fim. As pessoas que têm fé identificam uma coisa com a outra, o vivido com o lido (ou ouvido, ou decorado), acreditam na ficção que elas criam (ou compram pronta), a qual sempre prova por a mais b que tudo que aconteceu tinha que acontecer. Creio que foi David Hume que disse que todas as superstições se resumem à crença na causalidade. Ele tem razão, mas além de causalidade há também a crença na teleologia — ficções como destino e providência divina.

Da série Caderno lemos: o fracasso se tornou/ a própria textura da vida (…) Assistir à própria queda/ agora é todo o espetáculo. Seus eus-líricos encarnam esse movimento de “menos-valia” ou da própria sensação de fracasso em relação à escrita ou à vida. Esse é um procedimento irônico diante da sua grandeza de poeta reverenciado e premiado?

Não vejo ironia nenhuma nessa afirmação. A experiência vivida é sempre um fracasso, na medida em que inevitavelmente se constitui em um acúmulo de perdas, culminando na morte.

Que luz é essa que, ao nos perpassar, amplifica a sensação de perda e abandono?

A lucidez?

E o mundo vale a nossa lucidez?

Boa pergunta.

* Ramon Ramos é mestre em Literatura (PUC-Rio) e autor de A vulnerabilidade como procedimento

http://www.suplementopernambuco.com.br/entrevistas/2146-entrevista-paulo-henriques-britto.html

Paulo Henriques Britto – Queima de Arquivo

Houve um tempo em que eu amava
em cada corpo o reflexo
do que eu queria ter sido.
No fundo do sexo eu buscava
o meu desejo perdido.

Acabei achando o outro
que em mim mesmo destruí.
Foi fácil reconhecê-lo:
de tudo que vi em seu rosto
somente o ódio era belo.

Esse morto adolescente
implacável e virginal
não me perdoa a desfeita.
Não faz mal. Eu sigo em frente.
Nem tudo que fui se aproveita.

De “Álbum”

Frank O’Hara – Autobiographia Literaria

Quando era menino eu
brincava sozinho num
canto do pátio da escola
sem ninguém.

Odiava bonecas e
odiava jogos, os bichos eram
hostis e os pássaros
fugiam.

Se alguém me procurava
eu me escondia atrás de uma
árvore e gritava “Sou
um órfão.”

E olha eu aqui, o
centro de toda beleza!
escrevendo estes versos!
Imagina!

Trad.: Paulo Henriques Britto

 

Autobiographia literaria

When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.

I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.

If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out “I am
an orphan.”

And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!

Elizabeth Bishop – A Arte de Perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Trad.: Paulo Henriques Britto

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Paulo Henriques Britto – de “Dez Sonetoides Mancos”

VI

Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.
Sentidos, sentimentos e outros moluscos

não passam pela finíssima peneira
do funcional. E o sofrimento, ai,
esse nefando pinguim de louça

sobre o que deveria ser, na quiti-
nete do eu, uma austera geladeira…

Que ninguém nos ouça: guarda esse escafandro, meu
filho. Só o raso é cool. A dor é kitsch.

Paulo Henriques Britto – Envoi

O tempo, que a tudo distorce,
às vezes alisa, conserta,
e a golpes cegos acerta:

em seu tosco código Morse
de instantes sem rumo e roteiro
então dá forma a algo de inteiro.

Não um verso, que em folha esquiva
a gente retoca e remenda
até ser coisa que se entenda,

mas algo que na carne viva
se esboça, se traça, se inscreve
bem mais a fundo, ainda que breve —

pois todo poema é murmúrio
frente ao amor e sua fúria.