Paulo Henriques Britto – Mosaico

Os dias a amontoar-se
como se rumo a um sentido,
algo que se assemelhasse
a uma meta, ou um destino,  

mas formando (sem sabê-lo,
claro — o que sabem os dias?)
uma estrutura em relevo,
espécie de marchetaria,  

com padrão indecifrável
(por não seguir um projeto),
mas assim mesmo um resguardo,
um remédio contra o medo  

de nada haver — nem padrão,
nem projeto, nem destino
no mundo, nada senão
o amontoar-se dos dias

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 04/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Biographia Literária”

V

Céu azul. Cores vivas. Você rindo
de alguma coisa ou alguém que está à esquerda
do fotógrafo. É talvez domingo.
É claro que essa sensação de perda

não está na foto, não – não está na imagem
extremamente, absurdamente nítida.
E se fosse menor a claridade,
ou se estivesse sem foco, ou tremida,

ou se fosse em sépia, ou preto e branco,
talvez a foto não doesse tanto?
Você, às gargalhadas. O motivo

você não lembra. A foto é muito boa.
Naquele tempo você ria à toa,
você lembra. Você ainda era vivo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 03/01/2017

Paulo Henriques Britto – De “Seis Sonetos Soturnos”

I

A qualquer hora, o que se chama vida
pode mudar da água pro vinho. Ou vice-
-versa. Cada palavra proferida —
uma sentença grave, uma tolice —
pode retornar feito um bumerangue
capaz de destruir o que encontrar.
E nada que se funde em carne e sangue
escapa dessas bólides de ar:
o amor e demais estados de graça,
reputações, ações, fazendas, gado,
longos corredores, salas de espera —
tudo à mercê do que afinal não passa
de ar comprimido, aos poucos exalado,
que logo se dissipa na atmosfera.

………………

V

As coisas sempre podem piorar.
Não há limite para o abismo estreito
que se abre justamente no lugar
onde a relação entre causa e efeito
parece indicar que a crosta é mais dura
e é mais remoto o risco da ruptura.

E no entanto, aberta a fenda, uma vez
desmascarada a aparência enganosa
de integridade e estrita solidez,
a mente busca uma saída honrosa
e com algo assim por fim se contenta:
Agora sei onde a corda arrebenta.

Refeita, pois, do golpe, e sem temer mais nada,
expõe um novo flanco à próxima porrada.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 02/01/2017

Paulo Henriques Britto – Madrigal

Desista: não vai dar certo.
O mundo é o mesmo de sempre,
desejo é uma coisa cega.
Desista, enquanto é tempo.

As mãos não sabem o que pegam,
os pés vão aonde não sabem.
As cartas estão marcadas:
vai dar desgraça na certa.

O mundo é sempre a esmo,
desejo é uma porta aberta.
Desista, que a vida é incerta.
Ou insista. Dá no mesmo.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 31/12/2016

Paulo Henriques Britto – Cuidado Poeta…

Cuidado, poeta: o tempo engorda a alma.
Depois de um certo número de páginas
anjos não pousam mais nas entrelinhas.
E até a lucidez, essa moderna,
também se gasta, como qualquer moeda.

O ter o que dizer é jogo arriscado,
não se resolve com um só lance de dados.
Não basta a precisão do gesto apenas.
O gesto mais felino é quase nada
sem o lastro da existência, essa cansada,

com sua textura por demais espessa
pra traspassar a tímida peneira
da pálida poesia, essa antiga.
O tempo é escasso. O dicionário é gordo.
Cuidado: Todo silêncio é pouco.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 30/12/2016

Paulo Henriques Britto – Soneto Inglês

A surpresa do amor — quando já não se
espera do mundo nada em especial,
e a evidência de que os anos vão se
acumulando sem nenhum sinal
de sentido já não dói nem comove —
quando em matéria de felicidade
não se deseja mais que uns nove
metros quadrados de privacidade
para abrigar os prazeres amenos
do sexo fácil e da literatura
difícil — eis que então, sem mais nem menos,
como quem não quer nada, surge a cura —
definitiva, radical, imensa —
do que nem parecia mais doença.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 29/12/2016

Paulo Henriques Britto – Crepuscular

1.
Chegamos tarde. (Era sempre maio,
sempre madrugada. Tudo era turvo.
Éramos em bando. Por medo. Ou tédio.

Havia um lobo à solta na cidade
aberta, e uma loucura provisória
era a nossa premissa, nossa promessa.

Era preciso estar o tempo todo
atento, em transe, em trânsito, no assédio
a um ou outro flanco do lobo,

fugindo de junho, perseguindo o agora,
correndo o risco de ser só um rascunho.
Éramos em branco. Por um triz. Por ora.)

2.
Chegamos tarde, é claro. Como todos.
Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,
o tempo exato de dizer: é tarde.

Todas as sílabas imagináveis
soaram. Nada ficou por cantar,
nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,

o não-poder-cantar, já tão cantado
que se estiolou no infinito banal
de espelhos frente a frente a refletir-se,

restando da palavra só o resumo
da pálida intenção, indisfarçada,
de não dizer, dizendo, coisa alguma.

3.
E assim, os delicados desesperam
do imperativo de concatenar
nomes e coisas, como se o perigo

vivesse num vestígio do sentido,
na derradeira pedra sobre pedra
de um prédio alvo de atentados tantos,

e negam mesmo a possibilidade
de não negar tudo — sem se dar conta
de que, se fosse à vera a negação

e nela houvesse fundo e coerência,
não haveria língua em que a expressar
que não a algaravia do silêncio.

4.
Dúvida, porém, não há: língua é língua,
e clavicórdio, clavicórdio é.
Assim como a canção do clavicórdio

não é a mesma música do vento,
e o vento não é pássaro ou cigarra
que canta, sem que o saiba, o verão,

palavra é mais que o babujar do vento,
que o monocórdio de cigarra ou pássaro,
mais mesmo que o mais sábio clavicórdio.

Mais mágica que música, afinal,
a inflacionar o mundo de fantasmas.
Desses fantasmas se faz o real.

5.
Toda palavra já foi dita. Isso é
sabido. E há que ser dita outra vez.
E outra. E cada vez é outra. E a mesma.

Nenhum de nós vai reinventar a roda.
E no entanto cada um a re-
inventa, para si. E roda. E canta.

Chegamos muito tarde, e não provamos
o doce absinto e ópio dos começos.
E no entanto, chegada a nossa vez,

recomeçamos. Palavras tardias,
mas com vertiginosa lucidez —
o ácido saber de nossos dias.

6.
No fim de tudo, restam as palavras.
Na solidão do corpo, no saber-se
apenas pasto para o esquecimento,

há sempre a semente de alguma ilíada
mínima, promessa de permanência
no mármore etéreo de uma sílaba,

mesmo sendo mero sopro, captado
na frágil arquitetura do papel,
alvenaria de ar. Restará

a palavra que deixarmos no fim da
nossa história. Que a julguem os outros,
que chegarão depois. Mais tarde ainda.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 28/12/2016

Paulo Henriques Britto – Memento Mori II

Luz frágil que brota no breu
e num rápido relance dá forma
e cor e corpo às coisas todas,

luz que se apega o pouco que pode
às aparências, acredita piamente
no sonho de substância que secretam,

luta com todas as parcas forças
contra o conforto de apagar-se enfim
por trás de duas implacáveis pálpebras.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 27/12/2016

Paulo Henriques Britto – Memento Mori I

Nenhum sinal da solidão se vê
lá onde o amor corrói a carne a fundo.
Dentro da pele, no entanto, você
é só você contra o mundo.

Esta felicidade que abastece
seu organismo, feito um combustível,
é volátil. Tudo que sobe desce.
Tudo que dói é possível.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 26/12/2022

Paulo Henriques Britto – Acalanto

Noite após noite, exaustos, lado a lado,
digerindo o dia, além das palavras
e aquém do sono, nos simplificamos,

despidos de projetos e passados,
fartos de voz e verticalidade,
contentes de ser só corpos na cama;

e o mais das vezes, antes do mergulho
na morte corriqueira e provisória
de uma dormida, nos satisfazemos

em constatar, com uma ponta de orgulho,
a cotidiana e mínima vitória:
mais uma noite a dois, e um dia a menos.

E cada mundo apaga seus contornos
no aconchego de um outro corpo morno.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 26/12/2016