Nelson Santander – Apresentando Linda Pastan

Em 30 de janeiro de 2023, falecia a poeta Linda Pastan, vencedora do Prêmio Dylan Thomas, entre outros, e ex-poeta laureada de Maryland (1991-1995). Ela tinha 90 anos e morreu devido a complicações após uma cirurgia para o tratamento de um câncer.

Autora de mais de 15 livros de poesia desde o início dos anos 70, Linda escrevia sobre temas aparentemente banais e comuns – família, maternidade, casa, natureza – além de de outros mais profundos, como perda, mortalidade, identidade e o impremeditado.

Sua poesia lírica é marcada por uma abordagem absolutamente original desses temas. Similar à poeta polonesa Wislawa Szymborska, os poemas de Pastan frequentemente revelam o extraordinário nos acontecimentos insuspeitos da vida cotidiana. Seu olhar aguçado se estende a tudo o que lhe desperta curiosidade – de um quadro ou uma escultura a um fato banal que, retrabalhado a partir de sua lente apurada, revela o que está por trás do óbvio, que quase todos parecem ignorar. Pastan explora a passagem do tempo e a inevitabilidade da perda, temas recorrentes em sua obra, sempre tratados com uma percepção única, onde o usual muitas vezes se mistura ao épico:

O último tio está partindo
em sua nau fúnebre (…)
após trancar
as portas atrás de si
para toda uma geração.

E veja: somos os mais velhos agora,
com nossos rotos retalhos
de história, solitários
na costa não mapeada
deste século novo e cru.

(“O último tio”)

O humor e a ironia também permeiam muitos de seus poemas, servindo como lentes que transformam experiências pessoais em universais. Tem método: ao criar um distanciamento sutil do eu lírico, ela permite que o leitor se reconheça nas nuances da vida, mesmo em temas mais sombrios.

Ao olhar judicioso que estende sobre os fatos da existência e as contradições humanas, Pastan acrescenta a madura ironia da observadora experimentada (e talvez por isso, descrente), mesclada com um humor admiravelmente inteligente. Como no poema Graça, por exemplo, em que ela parece se valer da velha máxima de que não existe ateu em avião caindo para alcançar o efeito cômico dos últimos versos, obtido a partir de um inusitado exercício de terceirização da fé pelo eu lírico:

Quando o jovem professor juntou
as mãos no jantar e falou com Deus
sobre a minha chegada em segurança
em meio à neve, agradecendo-Lhe também
pelo alimento que iríamos comer,
foi no tom de voz que eu costumo
usar para falar com meus amigos quando ligo
e sou atendida pela secretária eletrônica,
(…).
No dia seguinte, voando para casa
através de um céu tempestuoso
e assustador, eu soube
que invejava sua conexão com Deus
e desejei que suas preces
mantivessem meu avião no ar.

(“Graça”)

Os poemas de Pastan raramente resvalam para a melancolia. Seu tom é quase sempre menor, mas nunca desesperançoso. Mesmo quando um poema parece exalar uma certa angústia, ele nunca se coloca em um impasse, em um beco sem saída. Saídas há, é só prestar atenção ao que o mundo nos oferta:

Estou aprendendo a abandonar este mundo
antes que ele possa me abandonar.
(…)
Mas a manhã chega trazendo as pequenas
tréguas do café e o canto dos pássaros.
Uma árvore do lado de fora da janela,
que era apenas sombra momentos atrás
recolhe de volta seus galhos, ramo
por ramo frondoso.
E enquanto retomo meu corpo,
o sol pousa seu caloroso focinho em meu colo
como se quisesse se redimir.

(“Estou aprendendo a abandonar este mundo”)

Com sua lente singular, Pastan explora as complexidades da memória e da identidade, fazendo de sua poesia uma ode à beleza encontrada nas pequenas coisas da vida. Com uma sensibilidade aguçada, transforma momentos cotidianos em experiências poéticas intensas. Em seus versos, a morte é uma presença constante, mas é a vida, em toda sua fragilidade e beleza, que emerge vitoriosa:

Pode acontecer em um dia
de clima normal —
(…) Você pode estar alimentando o cachorro,
ou tomando uma xícara de chá,
e então: o telegrama;
ou o telefonema;
ou a dor aguda percorrendo
todo o comprimento do seu
braço esquerdo, ou do dele.
(…)
E enquanto você se deita na cama
como uma efígie de si mesmo,
é o ordinário
que vem salva-lo —
a xícara de chá de porcelana esperando
para ser lavada, o velhos cães
ganindo para sair.

(“O ordinário”)

Biografia

Linda Pastan, nascida Linda B Olenik em 27 de maio de 1932, no Bronx, Nova York, era filha de Jack e Bess Schwartz Olenick, ele cirurgião, ela, dona de casa. Com uma infância isolada devido à ocupação dos pais e à distância da escola, Pastan passou a ler constantemente e a escrever livros, histórias e poemas desde cedo. Aos 12 anos, começou a enviar trabalhos para a revista The New Yorker.

Seu pai desejava que ela fosse médica, o que a repugnava. No fim, não sem um tanto de rusgas e conflitos, ele acabou aceitando sua carreira literária. “Essa é a verdadeira ironia — o que me salvou foi ser uma menina. Ele finalmente disse: ‘Ah, bem, ela é apenas uma menina’. Se eu fosse um menino, seria médico. Não teria conseguido sair disso de jeito nenhum.”, afirmou Linda em uma entrevista. Pastan estudou no Radcliffe College e se formou em 1954, mas escreveu pouco durante a faculdade. “Harvard não dava ênfase ao trabalho dos alunos”, disse ela.

Nos anos 1950, sob pressão social para ser esposa e mãe perfeita, Pastan interrompeu sua escrita. “É difícil imaginar, se você não fazia parte daquela geração, a expectativa de que uma mulher se casasse imediatamente. Eu estava na faculdade, escrevendo uma tese, mas tinha de ir ao marketing, lavar a roupa e preparar o jantar. Meu marido estava na faculdade de medicina – ele não tinha um segundo para ajudar. Alguma coisa tinha de ser feita e a poesia foi sacrificada – eu simplesmente não tinha tempo.”

Em um dado momento, todavia, ela sentiu a necessidade de voltar a escrever. “Eu sabia que ser esposa e mãe não era o suficiente”, disse Pastan. “Acho que eu estava apenas entediada sem um desafio intelectual real. Bebês certamente eram gratificantes, mas não dessa forma”. Aos 32 anos, retomou a poesia e não parou mais.

Com um mestrado pela Brandeis University em 1957, Pastan lecionou na Bread Loaf Writers’ Conference por 20 anos, mas evitou empregos regulares de ensino para preservar sua energia criativa. Ela foi poeta laureada de Maryland de 1991 a 1995.

Pastan e a Crítica

Desde seu primeiro trabalho, A Perfect Circle of Sun, Linda Pastan se consolidou como uma voz marcante na poesia contemporânea. Sua escrita, marcada por uma elegância discreta e uma profunda sensibilidade, influenciou gerações de poetas, que encontraram em seus versos um convite à reflexão sobre a condição humana.

Quando do lançamento do primeiro livro, Thomas Lask, no The New York Times, observou: “Os poemas individuais em A Perfect Circle of Sun se encaixam tão bem no trabalho total e se complementam com tanto sucesso que é fácil acreditar que Linda Pastan concebeu um livro em vez de poemas individuais. Seus versos são curtos, claros e bem cortados no final. Não há fios soltos e a marcenaria não é visível”.

Quase 20 anos depois, ao resenhar outra obra de Pastan – The Imperfect Paradise – para o The New York Times, Bruce Bennett escreveu: “O domínio infalível de Pastan sobre seu ofício mantém a escuridão firmemente sob controle”. Os elogios continuaram duas décadas depois, quando o Christian Science Monitor elogiou Traveling Light: “Ela mostra que a poesia pode ser significativa, satisfatória, adorável – e deixar as pessoas se sentindo completas”.

Não obstante as resenhas positivas, Pastan costumava reclamar que os críticos muitas vezes não conseguiam captar a profundidade de seus temas. Termos como “cotidiano”, “doméstico” e “simplicidade” frequentemente aparecem nas resenhas, sugerindo uma superficialidade que ela contestava: “Realmente sinto que os críticos me acusam de escrever apenas sobre coisas bonitas e domésticas – e isso me deixa louca.” (…) “Quando os homens escrevem sobre coisas domésticas, são elogiados aos quatro ventos – vejam que pessoa humana e maravilhosa. Mas quando as mulheres o fazem, elas são realmente rebaixadas. Meus poemas podem ter superfícies domésticas, mas não é disso que se trata, e realmente me chateia sentir que não sou levada tão a sério como seria se fosse um homem”.

Em uma entrevista dada ao The PBS NewsHour após ganhar o Prêmio Ruth Lilly, Pastan explicou: “Sempre escrevi sobre o que está ao meu redor, como o ambiente aqui na floresta, mas sempre há algo mudando. Quando meus filhos eram pequenos, havia muitas crianças pequenas correndo pelos poemas. Quando os amigos e a família começaram a envelhecer e morrer, há muito mais escuridão e morte neles. Mas acho que sempre me interessei pelos perigos que estão sob a superfície, mas que parecem ser da vida doméstica simples e comuns. Pode parecer uma superfície lisa, mas há tensões e perigos bem embaixo, e é isso que estou tentando entender”.

Em seus poemas, personagens inspirados em sua própria experiência, como pais, filhos e marido, são frequentes. Personagens arquetípicos também aparecem repetidamente, como Penélope (a paciente esposa de Odisseu), e Eva, inspirada pelos jardins ao redor da casa de Pastan em Potomac, Maryland. Outrossim, sua poesia frequentemente explora, como visto, as nuances e o significado da vida doméstica ao recontar suas transações diárias como mãe, esposa, filha e poeta à luz de histórias e mitos mais antigos (especialmente bíblicos e clássicos). Sua ironia característica emerge da contraposição entre a banalidade do cotidiano familiar e as grandes narrativas que dominam a cultura, revelando uma crítica sutil às expectativas e aos valores sociais.

Conclusão

A poesia de Linda Pastan é um convite à reflexão sobre a complexidade da experiência humana. Com uma maestria singular, a poeta entrelaça o cotidiano e o transcendental, revelando a beleza que se esconde nas sombras da experiência humana. Seus versos, marcados por uma profunda sensibilidade e uma visão singular do mundo, oferecem ao leitor uma experiência estética única e enriquecedora.

A coletânea

Depois de traduzir vários dos poemas de Pastan para o blog ao longo dos anos, reconhecendo sua beleza e excelência, senti a necessidade de me aprofundar em sua obra. Pra isso, realizei um tour por todas as suas coletâneas – fixando-me especialmente nos poemas selecionados de PM/AM: New and Selected Poems. New York: Norton, 1982, e Carnival Evening: New and Selected Poems 1968–1998. New York: Norton, 1998, sem descuidar dos poemas mais recentes, publicados em The Last Uncle: Poems. New York: Norton, 2002, Queen of a Rainy Country: Poems. New York: Norton, 2006, Traveling Light. New York: Norton, 2011, Insomnia. New York: Norton, 2015 e A Dog Runs Through It. New York: Norton, 2018, seu último trabalho publicado. Ao longo dessa jornada, dediquei especial atenção aos poemas selecionados para esta coletânea, que considero representativos da sua poética madura e profunda.

Coletânea elaborada ao sabor das leituras, sem me preocupar muito com a ordem cronológica e dada a falta de tempo para pesquisar mais detidamente a cronologia das publicações, os poemas seguirão publicados no blog nessa (des)ordem. É certo, todavia, que os últimos a serem publicados se referem aos trabalhos mais recentes da poeta (de 2015 para cá). Serão 60 poemas, incluindo todos já publicados aqui no passado – a maioria em novas traduções.

Sobre a tradução, a suposta simplicidade formal dos poemas da autora, que em regra dispensam rimas, métricas e formas fixas, poderia sugerir que vertê-los para outra língua seria uma tarefa simples. Nada mais enganoso. Pastan não costuma encher seu trabalho com uma gramática rebuscada ou pseudointelectual; seus versos são ordinariamente curtos e seus poemas também. Porém, as palavras e expressões que usa em cada verso são precisamente aquelas que deveriam ser usadas. Uma vírgula a mais, seria muito. Um fonema a menos, insuficiente. As palavras, em toda sua riqueza de sons e significantes, são exatamente aquelas que devem estar ali, naquele exato ponto do texto poético. A tradução deve, o mais possível, observar essa característica (presente na poesia de todo grande poeta), e buscar, também em nossa língua, o vocábulo, a sintaxe, a lírica que melhor reflitam o sentido e o som do texto original. Espero que minha tradução tenha conseguido.

A partir de amanhã, e pelos próximas semanas, convido o leitor a se aventurar no mundo poético intimista e na lírica profunda e avassaladora de Linda Pastan. Estou certo de que essa jornada revelará a riqueza e a complexidade de sua poesia, deixando uma impressão duradoura em todos que se dispuserem a acompanhá-la. Não, você não vai se arrepender.

Linda Pastan – O momento

O que posso dizer neste momento
antes de você partir —
o verão desbotado
de seus tons pastéis suaves,
a luz do sol intensa em sua pele
ainda quente em minha boca,
embora desvanecendo?

O outono, este traidor,
espera à beira
da floresta com as primeiras
folhas escurecendo.
E sinto o mundo se mover
sob nossos pés caminhantes,
de solstício a solstício.

Um envolvimento com a luz
pressupõe familiaridade
com a sombra, Rothko disse.
Ele não estava falando de nós?
Ele não estava falando sobre a forma
como esperamos por este momento
por todo o verão?

Trad.: Nelson Santander

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The Moment

What can I say in this moment
before you leave—
summer is leached
of its clear pastels,
the fueled sunlight on your skin
still warm to my mouth,
though fading?

Autumn, that turncoat,
waits at the edge
of the woods with the first
darkening leaves.
And I feel the world move
under our feet on its way
from solstice to solstice.

An involvement in light
presupposes an acquaintance
with shadow, Rothko said.
Didn’t he mean us?
Didn’t he mean the way
we’ve waited for this moment
all summer long?

Linda Pastan – Poema de Amor

Quero escrever para ti
um poema de amor tão impetuoso
quanto o nosso riacho
após o degelo
quando ficamos
em suas perigosas
margens e o vemos arrastar
consigo cada galho
cada folha seca e cada ramo
em seu caminho
cada escrúpulo
quando o vemos
tão inchado
pelo deflúvio
que mesmo enquanto observamos
precisamos nos agarrar
um ao outro
e recuar
precisamos nos agarrar um
ao outro ou
encharcar nossos
sapatos precisamos nos
agarrar um ao outro

Trad.: Nelson Santander

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Love Poem

I want to write you
a love poem as headlong
as our creek
after thaw
when we stand
on its dangerous
banks and watch it carry
with it every twig
every dry leaf and branch
in its path
every scruple
when we see it
so swollen
with runoff
that even as we watch
we must grab
each other
and step back
we must grab each
other or
get our shoes
soaked we must
grab each other

Linda Pastan – O dia mais feliz

O dia mais feliz

Era início de maio, eu acho,
um momento de lilás ou corniso
quando tantas promessas são feitas
e pouco importa se algumas forem quebradas.
Meus pais ainda pairavam
no cenário, eram parte da paisagem
como as casas em que cresci,
e se seriam demolidas mais tarde
isso era algo que eu sabia
mas não acreditava. Nossos filhos dormiam
ou brincavam, o mais jovem tão novo
quanto o novo aroma dos lilases,
e como eu poderia imaginar que
suas raízes eram rasas
e poderiam ser facilmente transplantadas?
Eu sequer imaginava que estava feliz.
As pequenas irritações que me incomodavam
eram como o sal em um melão,
embora, na verdade, elas simplesmente
tornassem o sabor da fruta mais doce.
Então nos sentamos na varanda
naquela fresca manhã, tomando
café quente. Por trás das notícias do dia —
greves e pequenas guerras, um incêndio em algum lugar —
eu podia ver o topo de sua cabeça escura
e não pensava em conflagrações abertas
mas em como ela se sentiria repousando em meu ombro nu.
Se alguém pudesse parar a câmera então…
se alguém pudesse apenas deter a câmera
e me perguntar: você está feliz?
Talvez eu tivesse notado
como a manhã brilhava na cor
refletida do lilás. Sim, eu poderia ter dito
e oferecido uma xícara de café fumegante.

Trad.: Nelson Santander

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The Happiest Day

It was early May, I think
a moment of lilac or dogwood
when so many promises are made
it hardly matters if a few are broken.
My mother and father still hovered
in the background, part of the scenery
like the houses I had grown up in,
and if they would be torn down later
that was something I knew
but didn’t believe. Our children were asleep
or playing, the youngest as new
as the new smell of the lilacs,
and how could I have guessed
their roots were shallow
and would be easily transplanted.
I didn’t even guess that I was happy.
The small irritations that are like salt
on melon were what I dwelt on,
though in truth they simply
made the fruit taste sweeter.
So we sat on the porch
in the cool morning, sipping
hot coffee. Behind the news of the day—
strikes and small wars, a fire somewhere—
I could see the top of your dark head
and thought not of public conflagrations
but of how it would feel on my bare shoulder.
If someone could stop the camera then…
if someone could only stop the camera
and ask me: are you happy?
Perhaps I would have noticed
how the morning shone in the reflected
color of lilac. Yes, I might have said
and offered a steaming cup of coffee.

Linda Pastan – Funeral Outonal

Funeral Outonal
                                      Para Ag

O mundo está se despindo
de suas mil peles.
A cobra fica nua,
e as agulhas do pinheiro caem
como dentes de um pente partido.
Os fantasmas das folhas mortas
não assombram ninguém. Impossível
entregá-lo ao tempo,
deixá-lo aprisionado em uma árvore morta.
Nenhuma metafísica nos preparou
para o simples ato de nos virarmos
e partirmos.

Trad.: Nelson Santander

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October Funeral
For Ag

The world is shedding
its thousand skins.
The snake goes naked,
and the needles of the pine fall out
like the teeth of a comb I broke
The ghosts of dead leaves
haunt no one. Impossible
to give you to the weather,
to leave you locked in a killed tree.
No metaphysic has prepared us
for the simple act of turning
and walking away.

Linda Pastan – Flores Silvestres

Você me deu dentes-de-leão.
Eles tomaram nosso jardim
por direito de ocupação —
sóis redondos surgindo
em abril, delicadas luas
retirando-se em junho.
Você me deu sapatinhos-de-dama,
sanguinárias, serralhas,
trillium cujo número secreto
as crianças que você me deu
contam. Na hierarquia
das flores, as silvestres
se erguem em seus caules
para serem nomeadas.
Chame-as de ervas daninhas.
Eu as colho como
colhi você,
por sua alegria feroz
e indisciplinada.

Trad.: Nelson Santander

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Wildflowers

You gave me dandelions.
They took our lawn
by squatters’ rights—
round suns rising
in April, soft moons
blowing away in June.
You gave me lady slippers,
bloodroot, milkweed,
trillium whose secret number
the children you gave me
tell. In the hierarchy
of flowers, the wild
rise on their stems
for naming.
Call them weeds.
I pick them as I
picked you,
for their fierce,
unruly joy.

Linda Pastan – Instruções

Você deve embalar sua dor em seus braços
até que ela adormeça, e depois deixá-la

em um quarto escuro
e sair na ponta dos pés.

Por um momento, você sentirá
o vazio da paz.

Mas no quarto ao lado
sua dor já está se agitando.

Em breve, estará
chamando seu nome.

Trad.: Nelson Santander

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Instruction

You must rock your pain in your arms
until it’s asleep, then leave it

in a darkened room
and tiptoe out.

For a moment you will feel
the emptiness of peace.

But in the next room
your pain is already stirring.

Soon it will be
calling your name.

Linda Pastan – Os meses

Janeiro

Retorcidas pelo vento,
meras estruturas para gelo ou neve,
as árvores decidem
resistir por enquanto,

elas brotarão em abril.
E eu devo ser paciente
como as árvores —
uma resolução de inverno

que quebro novamente,
enquanto o frio pressiona
sua lâmina afiada
contra minha garganta.

Fevereiro

Após uma interminável
hibernação
no peitoril da janela,
a orquídea floresce —

pontos púrpuras bordados,
acima e abaixo,
numa fina haste.
Lá fora, a neve

derrete no ar e se transforma
em chuva.
Mês abreviado.
Todo tipo de clima.

Março

Quando o Rei dos Elfos veio
levar a criança
no poema de Goethe, o pai disse:
não tenha medo,

é apenas o vento…
Como se não fosse o vento
que leva embora os fragmentos
delicados deste mundo —

folhas remanescentes nos cantos
do jardim, uma rosa quaresmal
que pensou estar segura
ao florescer tão cedo.

Abril

No borrão em tons pastéis
do jardim,
a cereja
e a Cercis1

sacodem a chuva
de seus delicados
ombros, enquanto pétalas
da dogwood

rosa
descem pelas valetas
como oníricos
rios de cores.

Maio

Maçã-de-maio, narciso,
jacinto, lírio,
e junto aos degraus
da varanda da frente

todos os tons
ondulantes de lilás
e lavanda roxa,
a flor favorita de minha mãe,

doce respiração flutuando pelas
janelas abertas:
perfume da memória — condutora
da primavera.

Junho

O besouro de junho
na porta telada
zune como uma máquina
pequena e feia,

e um coro de sapos
e grilos zumbindo como Musak2
em todas as janelas.
O que não vemos claramente

nos conforta.
Cintilação de relâmpago, rosnado
de trovão — apenas o calor
limpando a garganta.

Julho

Nesta noite, os vagalumes
acendem suas breves
velas
em todas as árvores

de verão —
cor de flocos de lua,
cor de renda
fluorescente

onde o oceano arrasta
sua bainha rasgada
sobre a areia
escura.

Agosto

Descalça
e atordoada pelo sol,
mordo esse pêssego maduro
de um mês,

reunindo crianças
em meus braços
em toda sua glória
areenta,

enchendo
minha mesa todas as noites
com nada além
de milho e tomates.

Setembro

Seu romance de verão
acabou, mas os amantes
ainda se agarram
um ao outro

assim como as
folhas verdes se agarram
às árvores
no calor estranho

de setembro, como se
desta vez
não houvesse
outono.

Outubro

Quão repentinamente
a floresta
se transformou
novamente. Sinto-me

como Daphne3, parada
com os braços
estendidos em direção
à estação,

envolvida
pelas cores, coroada
com o dourado martelado
das folhas.

Novembro

Essas folhas
anônimas, seus corpos
molhados pressionados
contra a janela

ou caindo —
eu as conto
enquanto durmo,
absolvendo a gravidade,

absolvendo até mesmo a morte
que conhece como eu
os imperativos
da estação.

Dezembro

A pomba branca do inverno
perde suas primeiras
preciosas penas;
elas derretem

ao tocar
o chão quente
como notas
de uma música que já foi

familiar; a terra
estremece e
e se volta para
o solstício.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.:

  1. Cercis é o nome científico do gênero de árvores que inclui a Redbud, mencionada no original do poema. Optei por usar o termo Cercis em vez de manter “redbud” para aproveitar a meia-rima com a palavra “jardim” e criar a aliteração formada pelas palavras “cereja”, “Cercis” e “sacodem”, evocando o som da chuva sobre as plantas do jardim.
  2. Música ambiente
  3. Daphne, na mitologia grega, era uma ninfa da natureza, conhecida por sua beleza e conexão com o mundo natural. Segundo a lenda, ela foi transformada em uma árvore de loureiro para escapar do deus Apolo, que estava obcecado por ela. Essa história simboliza a profunda ligação entre Daphne e a natureza, mostrando sua identificação com o ambiente natural e sua escolha de se tornar parte dele.

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The Months

January

Contorted by wind,
mere armatures for ice or snow,
the trees resolve
to endure for now,

they will leaf out in April.
And I must be as patient
as the trees—
a winter resolution

I break all over again,
as the cold presses
its sharp blade
against my throat.

February

After endless
hibernation
on the windowsill,
the orchid blooms—

embroidered purple stitches
up and down
a slender stem.
Outside, snow

melts midair
to rain.
Abbreviated month.
Every kind of weather.

March

When the Earl King came
to steal away the child
in Goethe’s poem, the father said
don’t be afraid,

it’s just the wind. . .
As if it weren’t the wind
that blows away the tender
fragments of this world—

leftover leaves in the corners
of the garden, a Lenten Rose
that thought it safe
to bloom so early.

April

In the pastel blur
of the garden,
the cherry
and redbud

shake rain
from their delicate
shoulders, as petals
of pink

dogwood
wash down the ditches
in dreamlike
rivers of color.

May

May apple, daffodil,
hyacinth, lily,
and by the front
porch steps

every billowing
shade of purple
and lavender lilac,
my mother’s favorite flower,

sweet breath drifting through
the open windows:
perfume of memory—conduit
of spring.

June

The June bug
on the screen door
whirs like a small,
ugly machine,

and a chorus of frogs
and crickets drones like Musak
at all the windows.
What we don’t quite see

comforts us.
Blink of lightning, grumble
of thunder—just the heat
clearing its throat.

July

Tonight the fireflies
light their brief
candles
in all the trees

of summer—
color of moonflakes,
color of fluorescent
lace

where the ocean drags
its torn hem
over the dark
sand.

August

Barefoot
and sun-dazed,
I bite into this ripe peach
of a month,

gathering children
into my arms
in all their sandy
glory,

heaping
my table each night
with nothing
but corn and tomatoes.

September

Their summer romance
over, the lovers
still cling
to each other

the way the green
leaves cling
to their trees
in the strange heat

of September, as if
this time
there will be
no autumn.

October

How suddenly
the woods
have turned
again. I feel

like Daphne, standing
with my arms
outstretched
to the season,

overtaken
by color, crowned
with the hammered gold
of leaves.

November

These anonymous
leaves, their wet
bodies pressed
against the window

or falling past—
I count them
in my sleep,
absolving gravity,

absolving even death
who knows as I do
the imperatives
of the season.

December

The white dove of winter
sheds its first
fine feathers;
they melt

as they touch
the warm ground
like notes
of a once familiar

music; the earth
shivers and
turns towards
the solstice.

Linda Pastan – Graça

Quando o jovem professor juntou
as mãos no jantar e falou com Deus
sobre a minha chegada em segurança
em meio à neve, agradecendo-Lhe também
pelo alimento que iríamos comer,
foi no tom de voz que eu costumo
usar para falar com meus amigos quando ligo
e sou atendida pela secretária eletrônica,
com a qual converso sobre isso e aquilo
usando um tom casual,
imaginando que eles estejam ouvindo
mas ocupados demais para atender o telefone,
ou cuidando de negócios
importantes em outro lugar.
No dia seguinte, voando para casa
através de um céu tempestuoso
e assustador, eu soube
que invejava sua conexão com Deus
e desejei que suas preces
mantivessem meu avião no ar.

Trad.: Nelson Santander

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Grace

When the young professor folded
his hands at dinner and spoke to God
about my safe arrival
through the snow, thanking Him also
for the food we were about to eat,
it was in the tone of voice I use
to speak to friends when I call
and get their answering machines,
chatting about this and that
in a casual voice,
picturing them listening
but too busy to pick up the phone,
or out taking care of important
business somewhere else.
The next day, flying home
through a windy
and overwhelming sky, I knew
I envied his rapport with God
and hoped his prayers
would keep my plane aloft.

Linda Pastan – O almanaque das coisas derradeiras

Do almanaque das coisas derradeiras
eu escolho o lírio-da-aranha-vermelha
pela graça de sua efêmera
floração, embora eu mesma
tema a brevidade,

mas escolho O Cântico dos Cânticos
por ter a polpa
daquelas romãs
sobrevivido a
toda geada do dogma.

Escolho janeiro, com suas frias
lições de paciência e desespero – e
agosto, muito ensolarado para lições.
Escolho um gole de vinho tinto
para fazer meu coração disparar,

depois outro para me ajudar
a dormir. Do almanaque
das coisas derradeiras eu escolho você,
como já fiz antes.
E escolho a noite

porque a luz que se agarra
à janela
é muito mais reflexiva
quando está pronta
para sair.

Trad.: Nelson Santander

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The Almanac of Last Things

From the almanac of last things
I choose the spider lily
for the grace of its brief
blossom, though I myself
fear brevity,

but I choose The Song of Songs
because the flesh
of those pomegranates
has survived
all the frost of dogma.

I choose January with its chill
lessons of patience and despair–and
August, too sun-struck for lessons.
I choose a thimbleful of red wine
to make my heart race,

then another to help me
sleep. From the almanac
of last things I choose you,
as I have done before.
And I choose evening

because the light clinging
to the window
is at its most reflective
just as it is ready
to go out.