Joan Margarit – El Primer Frío

Acompanhei-te até o museu, no parque,
em uma manhã de inverno. Detivemo-nos
diante daquela escultura: El primer frío.1
Era de mármore cinzento: um velho, nu,
olha ao longe, entre as folhas mortas
que o vento carrega.
A arte não é diferente da vida,
lembro que disseste. Mas eu
via apenas um mármore frio,
um tanto retórico, e pensava em garotas.
Entre aquele dia e hoje, como um mar,
minha vida se expandiu.
E se aproximam, singrando este mar cinzento,
cascos negros de embarcações, minhas recordações.
Retorno ao museu nesta manhã de inverno
e estou pensando em ti ao cruzar o parque:
olho ao longe, entre as folhas mortas
que o vento carrega.

Trad.: Nelson Santander

  1. Escultura em mármore branco de Miguel Blay i Fábregas (1892) (vide a foto que ilustra o poema), representando um homem idoso nu com uma jovem menina, interpretada como alegoria da passagem do tempo e da fragilidade da vida. Obra-prima da escultura catalã, exposta no Museu Nacional d’Art de Catalunya (Barcelona) e no Museu Nacional de Belas Artes (Buenos Aires). ↩︎

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 30/07/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – El Primer Frío

Te acompañé al museo, en el parque,
una invernal mañana. Nos paramos
ante aquella escultura: El primer frío.
Era de mármol gris: un viejo que, desnudo,
mira a lo lejos entre la hojarasca
que va arrastrando el viento.
El arte no es distinto de la vida,
recuerdo que dijiste. Pero yo
veía solamente un mármol frío,
más bien retórico, y pensaba en chicas.
Entre aquel día y hoy, igual que un mar,
se ha extendido mi vida.
Y se acercan, surcando este mar gris,
cascos negros de buques, mis recuerdos.
Vuelvo al museo esta invernal mañana
y voy pensando en ti al cruzar el parque:
miro a lo lejos entre la hojarasca
que va arrastrando el viento.

Joan Margarit – Astapovo

De madrugada, quando só se ouvem
relógios no escuro,
eu o imagino, com seus oitenta anos,
fugindo em um trem russo que ia ao sul
de lugar nenhum, para onde os velhos sonham ir.
Tolstói temia aquele inverno
que o acompanhou durante a velhice
até o leito de morte ferroviário,
na noite em que o telégrafo
transmitiu a mais breve e cruel
de todas as suas mensagens.
Quis correr mais rápido que o frio,
mas seu trem foi coberto para sempre
pelos flocos de neve que caíam
na gare de Astapovo.
Iniciei minha fuga muito antes,
pois aprendi com Tolstói
que é preciso entrar na última estação
em alta velocidade. Assim a morte,
sem tempo para nos avisar com sinais,
agitando uma lanterna nos linhas,
com um golpe certeiro,
muda a direção dos trilhos.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 19/07/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Astápovo

De madrugada, cuando sólo se oyen
relojes en lo oscuro,
me lo imagino, a sus ochenta años,
huyendo en un tren ruso que iba al sur
de ningún sitio, adonde los viejos quieren ir.
Tolstoi temía aquel invierno
que le siguió durante su vejez
hasta el lecho de muerte ferroviario,
la noche en que el teclado del telégrafo
transmitió el más breve y cruel
de todos sus relatos.
Quiso correr más rápido que el frío,
pero su tren quedó cubierto para siempre
por los copos de nieve que caían
en la estación de Astápovo.
Yo he empezado la fuga mucho antes,
porque aprendí de Tolstoi
que hay que entrar en la última estación
a gran velocidad. Así la muerte,
sin tiempo de avisarnos con señales
agitando un farol desde las vías,
de un golpe seco, cambia las agujas.

Joan Margarit – Banheiro

Cuido para que não caias ao banhar-te,
e ao secar-te as costas sigo suavemente
a grande cicatriz da espinha.
O futuro está sempre na janela.
Tua vida é este pequeno espaço
de tua cama e tua música, este céu
de umas poucas pessoas e uma casa.
E pela primeira vez
não estarei mais contigo.
Não virei mesmo que me chames.
Ficarei te olhando
nas fotografias dos álbuns
que folheias amiúde. Teu herói
ainda não aprendeu a lidar com a morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/06/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Cuarto de Baño

Cuido que no te caigas al ducharte,
y al secarte la espalda sigo con suavidad
la larga cicatriz del espinazo.
El futuro está siempre en la ventana.
Tu vida es este pequeño espacio
de tu cama y tu música, este cielo
de unas pocas personas y una casa.
Y por primera vez
ya no estaré contigo.
No vendré aunque me llames.
Me quedaré mirándote
en las fotografía de los álbumes
que hojeas a menudo.
Tu héroe no ha aprendido aún a morir.

Joan Margarit – Monumentos

O vazio que sentes, cada vez com mais força,
é o dos traidores.
Também os monumentos, por dentro, são vazios,
com as entranhas cheias de ferrugem e de morte:
escuros e corroídos pela história,
é tão sinistro seu interior
como arrogante o gesto que no ar
desenha a personagem.
À medida que os amigos nos traem
– e a morte é também uma traição –
nos vamos convertendo em monumentos.
Por fora, ainda resta um resquício de eloquência,
sobretudo ao falar com alguém jovem,
mas a voz ressoa no vazio,
perdida entre os vergalhões de uma oculta estrutura
que se desgasta em finas camadas de ferrugem.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/05/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Monumentos

El vacío que sientes cada vez con más fuerza
es el de los traidores.
También los monumentos, por dentro, están vacíos,
con las entrañas llenas de óxido y de muerte:
oscuros y podridos por la historia,
es tan siniestro su interior
como arrogante el gesto que en el aire
dibuja el personaje.
Según van traicionando los amigos
—y la muerte es también una traición—
nos vamos convirtiendo en monumentos.
Por fuera queda un resto de elocuencia,
sobre todo al hablar con alguien joven,
pero la voz resuena en el vacío,
perdida entre los hierros de un oculto entramado
que se deshoja en leves capas de óxido.

Joan Margarit – O ano em que ela morreu

Na fotografia em sépia
és jovem e sorri. Faz-me lembrar
as mulheres dos filmes de guerra
da minha infância:
barcos na neblina, trens noturnos
e grandes cidades sob o alarme aéreo.
Na lápide está escrito que ela se foi
no inverno de 44,
aos vinte anos, quando me apaixonava
pela sufocante escuridão
cruzada por um raio de luz, a heroína
dos sonhos de amor de minha meninice.
A dura pedra
tem uma cavidade com água de chuva
onde os pássaros vão beber quando,
de casaco e cabelos grisalhos
desgrenhados pelo vento,
o narrador se afasta.
Tem o mesmo sonho nos olhos, em uma cidade,
em um cinema onde agora está só.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 09/04/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

El año em que murió

En la fotografía color sepia
es joven y sonríe. Me recuerda
a las muchachas de las películas de guerra
de mi infancia:
barcos entre la niebla, trenes nocturnos
y grandes ciudades bajo la alarma aérea.
En la losa está escrito que murió
en el invierno del cuarenta y cuatro,
a los veinte años, cuando me enamoraba
desde la bochornosa oscuridad
cruzada por un foco, la heroína
de los sueños de amor de mi niñez.
La dura piedra
tiene un hueco con agua de lluvia
donde beberán los pájaros cuando,
abrigo largo y pelo gris
desordenado por el viento,
se aleje el narrador.
Tiene el mismo sueño en los ojos, en una ciudad,
en un cine donde ahora está solo.

Joan Margarit – Helena

O ontem é teu inferno. É cada instante
em que, sem sabê-lo, te perdeste
e também cada instante em que foste salvo.
Quando o jovem que foste está muito distante,
o amor é vingança do passado.
Vens de uma guerra em que foste vencido,
de armas e acampamentos abandonados
na Troia que levas dentro de ti.
Buscar-te-ão de noite os aqueos
e estreitarão o cerco. Voltarás,
por uma mulher, a perder a cidade.
Helena são todos os sonhos de que a vida
foi-se apropriando. Defende-a bravamente
pela última vez, desarmado.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 23/03/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Helena

El ayer es tu infierno. Es cada instante
en el que, sin saberlo, te has perdido
y también cada instante en el que te has salvado.
Cuando el joven que fuiste está muy lejos,
el amor es venganza del pasado.
Viene de una guerra donde fuiste vencido,
de armas y campamentos abandonados
en la Troya que llevas en ti mismo.
Te buscarán de noche los aqueos
y estrecharán el cerco. Volverás,
por una mujer, a perder la ciudad.
Helena es todos los sueños que la vida
se ha ido apropiando. Defiéndela con valor
por última vez, desarmado.

Joan Margarit – Esboço para um Epílogo

Diante de ti sentes um rumor de passos
que vem do futuro, essa torre
demolida antes de ser construída.
Só existe a dúvida moral: ama,
não penses na camada de pó
a que tanto aludes, ostensivamente,
quando dizes: “minha vida”.
E, do prestígio das negações,
desconfia: a vida representa
não só a vitória dos anos
sobre nós. Também nos ensina
quão gloriosa foi
nossa vitória inicial sobre o tempo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Esbozo para un epílogo

Ante ti sientes un rumor de pasos
que viene del futuro, esa torre
derribada antes de que la construyeran.
Sólo existe la duda moral: ama,
no pienses en la lámina de polvo
que tanto nombras, ostentosamente,
cuando dices: “mi vida”.
Y, del prestigio de las negaciones,
desconfía: la vida representa
no sólo la victoria de los años
sobre nosotros. También nos enseña
lo gloriosa que fue
nuestra inicial victoria sobre el tiempo.

Joan Margarit – Amor e tempo

Lembras quando ainda desconhecias
que a vida não teria piedade de ti?
Amor e tempo: o tempo nos habita
como a areia do rio que, lentamente,
vai moldando a forma da margem.
O amor, que refletiu em teu olhar
o esplendor da ilha do tesouro.
Sensual, solitária, cercada
pela sonora senectude do mar
e os gritos militares das gaivotas.
O sonho clandestino dos cinquenta anos.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog.

Amor y tiempo

Recuerda cuando aún desconocías
que la vida no tendría piedad contigo.
Amor y tiempo: el tiempo nos habita
como arena del río que, despacio,
va cambiando la forma de la costa.
El amor, que ha copiado en tu mirada
la claridad de la isla del tesoro.
Sensual, solitaria, rodeada
por la sonora senectud del mar
y gritos militares de gaviotas.
El sueño clandestino de los cincuenta años.

Joan Margarit – Cemitério de Montjuïc

Algo resta das almas,
como a brisa que surge
depois de alguém passar,
e que faz estremecer
uma fina cortina na janela.
Pela trilha de pedras ásperas que não esquecem
mas calam, severas, o que sabem,
o vento deixa um silêncio de lágrimas
por vidas como a nossa, perdidas.
“Jazigo perpétuo”, a terra
sempre dura, fileiras de ciprestes:
provinciano teatro da morte.
Nosso amor é como o que eles perderam.
Já é noite. Olha, do topo
da colina dos mortos, sob o céu negro,
as luzes da cidade:
um navio ancorado no firmamento
que nos espera para zarpar.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/12/2018

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Cementerio de Montjuïc

Algo queda de las ánimas,
como la brisa que surge
después de que alguien ha pasado,
y que hace estremecer
una leve cortina en la ventana.
Por la senda de piedras ásperas que no olvidan
pero callan, severas, lo que saben,
el viento deja un silencio de lágrimas
por vidas como la nuestra, perdidas.
«Concesión perpetua», la tierra
siempre dura, hileras de cipreses:
provinciano teatro de la muerte.
Nuestro amor es como el que ellos perdieron.
Ya es de noche. Mira, desde la cumbre
de la colina de los muertos, bajo el cielo negro,
las luces de la ciudad:
un navío anclado en el firmamento
que está esperándonos para zarpar.

Joan Margarit – Aventura Doméstica

Sozinho em casa, vasculhando os armários.
Encontro um antigo mapa rodoviário,
contratos vencidos, canetas-tinteiro
que já não escreverão mais cartas,
calculadoras com pilhas descarregadas
e relógios que o tempo derrotou.
Nas profundezas das gavetas, como um rato triste,
aninha-se o passado. Vazios, os vestidos
pendem como velhos personagens
que nos interpretaram.
De repente, encontro também tua lingerie,
cor de areia, da noite, com pequenos bordados.
Calcinhas, sutiãs, meias que desdobro
e que me fazem voltar à brilhante
– e ao mesmo tempo misteriosa –
essência do amor e do sexo:
o que verdadeiramente dá vida às casas,
assim como se lhe dá aos portos distantes
a luz de seus cafés e de seus barcos

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO, com alterações na tradução: poema publicado na página originalmente em 17/11/2018

Joan Margarit – Aventura Doméstica

Solo en casa y mirando en los armarios.
Encuentro algún antiguo mapa de carreteras,
contratos que han vencido, estilográficas
que ya no escribirán ninguna carta,
calculadoras con las pilas secas
y relojes que el tiempo ha derrotado.
En los cajones suele, como una rata triste,
anidar el pasado. Vacíos, los vestidos
cuelgan igual que viejos personajes
que nos interpretaron.
Pero encuentro también tu lencería,
color arena, o noche, con pequños bordados.
Bragas, sostenes, medias que despliego
y que me hacen volver hasta el brillante
– y a la vez misterioso – fondo de amor y sexo:
lo que da, de verdad, vida a las casas,
igual que se la da a los puertos lejanos
la luz de sus cafés y de sus barcos.