Joan Margarit – Último trem

Último trem
Crematório de Collserola

Se visses a chuva que enverniza
o verde escuro e espesso do jardim.
Teu vagão solitário está chegando
à sala espaçosa, sem adornos,
mobiliário, ou luminárias,
da Estación de Francia da morte.
Só se escuta o murmúrio do motor
que arrasta o peso
da infância e da juventude
– de teu anônimo tempo, já perdido,
que nunca mais será reclamado –,
rumo à fornalha e sua boca incandescente
refletida na vidraça molhada de chuva.
As lágrimas adornam esse lugar,
feio como um subúrbio, e, ainda assim,
recupero-te em um inverno longínquo,
numa manhã azul sob os plátanos:
imóvel, com as mãos atrás das costas,
observas a multidão entre os quiosques
como um sobrevivente que se esforça
para reconhecer, em seu redor,
os destroços do naufrágio.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 12/07/2020

Último tren
Crematorio de Collserola

Si tú vieras la lluvia que barniza
el verde oscuro y denso del jardín.
Tu vagón solitario está llegando
a la sala espaciosa, sin adornos,
ni mobiliario, ni ninguna lámpara
de la Estación de Francia de la muerte.
Sólo se oye el murmullo del motor
que va arrastrando el peso
de infancia y juventud
—de tu anónimo tiempo ya perdido
que no reclamará nunca más nadie—,
hacia el horno y su boca incandescente
que se refleja en el cristal de lluvia.
Las lágrimas adornan el lugar,
feo como un suburbio, y aún así,
te recupero en un lejano invierno,
una mañana azul bajo los plátanos:
inmóvil, con las manos a la espalda,
miras la multitud entre los quioscos
como un superviviente que se esfuerza
por identificar en torno suyo
los restos del naufragio.

Joan Margarit – A senha

Sozinho entre dois infernos
— o da liberdade e o da idade —,
já não consigo abrir nosso cofre.
A porta com seus dígitos giratórios
é a roleta na qual já não aposto.
Desde o primeiro suspiro conservei
a blindada clareza
daquela rosa.
Agora, nu em nosso quarto,
a janela aberta e a luz apagada,
ouço o rumor urbano da noite,
enquanto a leve brisa me acaricia.
Aquela garota e aquele garoto
permanecem tão perto, estão dentro de mim:
um cheiro familiar, uma canção,
podem fazê-los voltar, mas se tento lhes falar,
já desapareceram. Vivemos à mercê
do que ignorávamos sobre nós mesmos.
É como se, entre todos os direitos
que a vida pudesse ter,
houvesse um misterioso direito à ignorância.
O ninho metálico custodia nossos sonhos.
Estou chorando: a senha
era a data de tua morte.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 06/06/2020

La combinación

Sola entre dos infiernos
—el de la libertad y el de la edad—,
ya no puedo abrir nuestra caja fuerte.
La puerta con sus cifras giratorias
es la ruleta en la que ya no apuesto.
Desde el primer suspiro conservé,
la acorazada claridad
de aquella rosa.
Ahora, desnuda en nuestro dormitorio,
con la ventana abierta y la luz apagada,
oigo el rumor urbano de la noche
mientras la leve brisa me acaricia.
Aquella chica y aquel chico
permanecen muy cerca, están dentro de mí:
un olor familiar, una canción,
pueden hacer que vuelvan, pero si quiero hablarles
ya han desaparecido. Vivimos a merced
de lo que de nosotros ignorábamos
Es como si entre todos los derechos
que tuviese la vida,
hubiera un misterioso derecho a no saber.
El metálico nido custodia nuestros sueños.
Estoy llorando: la combinación
era la fecha de tu muerte.

Joan Margarit – No museu

Agacha-se junto ao menino e aponta para o quadro.
Com um gesto solene, comprime o punho
e tenta explicar a força que
acredita ver na pintura.
Esta velha obsessão de transmitir
aos pequenos nossos pobres recursos.
Atento, o menino observa com temor.
Talvez pressinta a solidão que se oculta
nos gestos, na retórica da arte.
Temos sempre a verdade diante de nós,
mas, assim como ao contemplar o céu,
não conseguimos ver mais do que a grafia
de um poema em um idioma estranho.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 08/03/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog


En el museo

Se agacha junto al niño y le señala el cuadro.
Con un grave ademán aprieta el puño
y trata de explicar aquella fuerza
que le parece ver en la pintura.
Esta vieja obsesión por transmitir
a los pequeños nuestras pobres armas.
Atento, el niño mira con temor.
Quizá intuye la soledad que ocultan
los gestos, la retórica del arte.
Siempre tenemos la verdad delante
pero, como al mirar el firmamento,
no podemos ver más que la grafía
de un poema en una lengua extraña.

Joan Margarit – A aventura

Quando me ausento por um momento, ao finalizar
uma inspeção de obra em algum bairro estranho
e entro para tomar café em um pequeno bar
onde não me conhecem, penso que sou
alguém que parte para não mais voltar.
Quando me refugio no vazio
de um entreato e procuro a escada
que leva aos banheiros,
sinto que ali poderia começar minha ausência.
Instantes que são fendas para o frio.
Imagino as ruas que sempre nos aguardam
em futuros perdidos dentro de um só instante.
Ao redor está a eternidade:
atravessamo-la velozes
neste trem blindado que é o tempo.
A eternidade
se move tão devagar que a lua
na janela é a mesma da infância.
Não sei o que mais me surpreende nesta história,
se o quanto odeio o mundo cotidiano
ou quantos anos poderei
permanecer paralisado por uma covardia.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 04/02/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

La aventura

Cuando me ausento un rato, al acabarse
una visita de obra en algún barrio extraño
y entro a tomar café en un pequeño bar
donde no me conocen, pienso que soy
alguien que se está yendo para ya no volver.
Cuando me escapo en el vacío
de un entreacto y busco la escalera
que va hacia los lavabos,
siento que allí podría dar comienzo mi ausencia.
Instantes que son grietas hacia el frío.
Imagino las calles que siempre nos aguardan
en futuros perdidos dentro de un solo instante.
Alrededor está la eternidad:
la atravesamos raudos
en este tren blindado que es el tiempo.
La eternidad
se mueve tan despacio que la luna
del cristal es la misma de la infancia.
De esta historia no sé lo que más me sorprende,
si cómo se odia el mundo cotidiano
o cuántos años puedo
permanecer helado por una cobardía.

Joan Margarit – Água-forte

O granizo metralha as vidraças,
as rajadas arrasam as calçadas.
E tu e eu aqui, onde o mau tempo
resume os obstáculos que às vezes
nos levam à beira do abismo.
Olhos brilhantes de desacertos,
mãos queimadas por se salvarem agarradas
aos gelados corrimãos do inferno.
Que o acaso continue disparando
sem razão, como sempre, nas vidraças.
Além do amor – desse nosso amor –
nada faz sentido.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 12/11/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Aguafuerte

El granizo ametralla los cristales,
las ráfagas arrasan las aceras.
Tú y yo estamos aquí, donde el mal tiempo
resume los obstáculos que a veces
nos han llevado al borde del abismo.
Ojos brillantes de equivocaciones,
manos quemadas por salvarse asidas
a la helada baranda del infierno.
Que el azar continúe disparando
sin razón, como siempre, a los cristales.
Más allá del amor —de nuestro amor—
nada tiene sentido.

Joan Margarit – A perda a inocência

Não escrevas tuas memórias.
Elas lançarão a teus pés aquele que foste,
como um cadáver inimigo.
Quando o passado se torna mentira
pouco resta para levar contigo:
uma convicção inútil e indigna,
alguma equivocada crueldade. Quase nada
sobre o que tenhas que voltar a falar.
A alegria de um velho é o silêncio.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

La Pérdida de la Ignorancia

No escribas tus memorias.
Lanzarán a tus pies a aquel que fuiste,
como un cadáver enemigo.
Cuando el pasado empieza a ser mentira
queda muy poco ya para llevarse:
una inútil e indigna convicción,
alguna equivocada crueldad. Apenas algo
de lo que tengas que volver a hablar.
La alegría de un viejo es el silencio.

Joan Margarit – Inverno de 95

Esta carta a escrevo para alguém
que está em um barco pelo norte
de Tenerife, em cinquenta e sete.
Um rapaz que, da amurada,
mira o duro poente sobre o mar
e estuda arquitetura em Barcelona,
para onde retorna agora. Aviso-te
com um sinal de alerta: a alegria
que sentes ao deixar teu pai para trás
revela a solidão sob uma luz dourada.
Teu pai já te espera,
outra vez, no porto de chegada:
não te conhece e olha para nenhuma parte,
nada diz e tampouco te responde.
Lentamente, com o dorso da mão
roças-lhe a face enquanto lhe falas
como se tratasse de ti mesmo,
como se o amanhã fosse agora.
O ontem nos espera no amanhã,
vai sempre mais depressa que nós.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 29/10/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Invierno del 95

Esta carta la escribo para alguien
que va en un barco por el norte
de Tenerife, en el cincuenta y siete.
Un muchacho que, desde la baranda,
mira el férreo poniente sobre el mar
y estudia arquitectura en Barcelona,
adonde vuelve ahora. Te aviso
con un gesto de alarma: la alegría
que sientes al dejar tu padre atrás
muestra la soledad bajo una luz dorada.
Tu padre ya te espera,
otra vez, en el puerto de llegada:
no te conoce y mira hacia ninguna parte,
nada dice y tampoco te contesta.
Despacio, con el dorso de la mano
le rozas la mejilla mientras le hablas
como si se tratase de ti mismo,
igual que si el mañana fuese ahora.
El ayer nos espera en el mañana,
va siempre más deprisa que nosotros.

Joan Margarit – Piscina

Não temia a água, mas a ti,
era teu medo o que eu temia,
e o lugar mais profundo,
em que não se veem os azulejos do fundo.
Arrastaste-me até lá, lembro ainda
a força de teus braços obrigando-me,
enquanto tentava abraçar-me a ti.
Não aprendi a nadar até muito tempo depois,
e esqueci tuas tentativas de ensinar-me.
Agora que já nunca voltarás a nadar
vejo, aos meus pés, a água azul, imóvel.
Compreendo que eras tu quem se abraçava
a mim para atravessar aqueles dias.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/10/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Piscina

No le temía al agua, sino a ti,
era tu miedo lo que yo temía,
y el lugar más profundo,
en el que no se ven las baldosas del fondo.
Me arrastraste hacia allí, recuerdo aún
la fuerza de tus brazos obligándome,
mientras trataba de abrazarme a ti.
No aprendí a nadar hasta mucho después,
y olvidé tus intentos de enseñarme.
Ahora que ya nunca volverás a nadar
veo, a mis pies, el agua azul, inmóvil.
Comprendo que eras tú quien se abrazaba
a mí para cruzar aquellos días.

Joan Margarit – No álbum

És tu antes de partir,
quando ainda vivias em casa.
O olhar brilhante que nos recompensava.
Teu nome foi ficando para trás,
na foto de onde ainda nos sorris
como se tudo fosse para sempre
e nada tivesse acontecido em outro lugar,
nem no sorriso que hoje desconhecemos,
longe do que teu rosto exibe neste álbum.
Este sorriso, agora, é só para nós:
convive com cartas, bonecas e desenhos,
suvenires que desvelam a manhã
que entra pela tua varanda. Às vezes pronunciamos
teu nome de um jeito mais jovial, como antes.
Talvez assim continues aqui
e teu nome preserve as memórias mais fiéis
para seguir contigo ao nosso lado.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 02/09/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

En El Álbum

Eres tú antes de irte,
cuando vivías todavía en casa.
La mirada brillante que nos recompensó.
Tu nombre se nos fue quedando atrás,
en la fotografía donde aún nos sonríes
como si todo fuese para siempre
y nada sucediera en otro sitio,
ni en la sonrisa que hoy desconocemos,
lejos de la que tiene tu cara en este álbum.
Esta sonrisa, ahora, sólo es para nosotros:
convive con las cartas, muñecas y dibujos,
recuerdos que desvela la mañana
que entra por tu balcón. A veces pronunciamos
tu nombre de una forma más joven, como antes.
Quizá de esta manera continúas aquí
y tu nombre protege los recuerdos más fieles
para vivir contigo a nuestro lado.

Joan Margarit – Vida Social

Idealizavas esta solidão
para ouvir música ou ler,
e caminhar no inverno junto ao mar.
Mas a solidão é uma chuva
que suja as janelas deste trem dos anos.
A solidão é a palavra cruel
do acre ressentimento familiar.
É a lei do acaso, um labirinto injusto.
É não ter dinheiro, é ter medo.
É o sexo, uma estranha pista falsa
que conduz ao mais cruel dos espelhos.
É não ter desculpas pelo que não viveste.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/08/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Joan Margarit – Vida Social

Idealizabas esta soledad
de escuchar música o leer,
de vagar en invierno junto al mar.
Pero la soledad es una lluvia
que ensucia los cristales de este tren de los años.
La soledad es la palabra cruel
del agrio malhumor de la familia.
Es la ley del azar, un laberinto injusto.
Es no tener dinero, es tener miedo.
Es el sexo, una extraña pista falsa
que conduce al más cruel de los espejos.
Es no tener excusa por lo que no has vivido.