Galway Kinnell – Dia 26 de dezembro

Uma terça-feira, dia de Tiw*,
deus da guerra, desponta na escuridão.
O curto feriado em que conversamos perto do fogo,
flutuamos em raquetes de neves por entre os
antigos bordos autopodados,
visitamos, fomos visitados, demos
um pluviômetro, ganhamos meias vermelhas,
observamos os pintassilgos quase cobertos
de neve bicando pequenos fragmentos
de sementes de girassol que os chapins
seguram com suas garras em um galho
e despedaçam, espalhando detritos
como açougueiros desleixados, acabou.
Começa a vida irregular. Ligações telefônicas,
pesquisas no Google, cartas evasivas,
arranjos complicados, faxes,
dúvidas, conversações,
e-mails, beijos dados solenemente.

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: Tiw, também conhecido como Tyr, era o deus nórdico da guerra, da justiça e da ordem

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

.

The 26th of December

A Tuesday, day of Tiw,
god of war, dawns in darkness.
The short holiday day of talking by the fire,
floating on snowshoes among
ancient self-pollarded maples,
visiting, being visited, giving
a rain gauge, receiving red socks,
watching snow buntings nearly over
their heads in snow stab at spirtled bits
of sunflower seeds the chickadees
hold with their feet to a bough
and hack apart, scattering debris
like sloppy butchers, is over.
Irregular life begins. Telephone calls,
Google searches, evasive letters,
complicated arrangements, faxes,
second thoughts, consultations,
e-mails, solemnly given kisses.

Galway Kinnell – Shelley

Quando eu tinha vinte anos, o único espírito
verdadeiramente livre de quem tinha ouvido falar era Shelley1,
Shelley, que escreveu tratados defendendo
o ateísmo, o amor livre, a emancipação
feminina, a abolição da riqueza e das classes sociais,
e poemas sobre a felicidade do amor romântico,
Shelley, que, soube mais tarde, talvez
quase tarde demais, se casou novamente com Harriet,
então grávida de seu segundo filho,
e alguns meses depois fugiu com Mary,
já grávida dele, trazendo
consigo a meia-irmã de Mary, Claire,
que muito provavelmente também se tornou sua amante,

e neste malaise à trois2, que Shelley
imaginava ser “um paraíso de exilados”,
eles viveram, juntamente com o espectro ou Harriet,
que se suicidara no Serpentine3,
e Fanny, meia-irmã de Mary,
que também se matou, talvez por amor
não correspondido a Shelley, e com os espíritos
de crianças adoradas mas muitas vezes negligenciadas,
concebidas incidentalmente
na busca por Eros — Ianthe
e Charles, de Harriet, negadas a Shelley
e entregues a pais adotivos; Clara,
de Mary, falecida com um ano; seu Willmouse,
o favorito de Shelley, morto aos três; Elena,
o bebê em Nápoles, quase certamente de
Shelley, a quem ele “adotou”
e depois deixou para trás, morta com um ano e meio;
Allegra, filha de Claire com Byron,
a quem Byron enviou para o convento
em Bagnacavallo aos quatro anos, morta aos cinco —

e naqueles dias, antes que eu soubesse
de tudo isso, pensei que seguia Shelley,
que julgava estar perseguindo um radiante desejo.

Trad.: Nelson Santander

  1. Trata-se do poeta e escritor inglês do período Românico, Percy Bysshe Shelley (1792-1822). Ele é considerado um dos mais importantes poetas líricos da Inglaterra e é conhecido por sua escrita revolucionária e progressista, bem como por sua defesa da liberdade política, social e individual. São citadas no poema também: a) Harriet Westbrook (1795-1816), a primeira esposa de Shelley. Eles se casaram quando ele tinha 19 e ela 16 anos de idade, mas o casamento foi infeliz e marcado por problemas pessoais e polêmicas. Harriet se separou de Shelley e posteriormente se suicidou, aos 21 anos. Seu relacionamento com Shelley e sua morte trágica são frequentemente mencionados em estudos biográficos sobre o poeta; b) Mary Shelley (1797-1851), a escritora e editora inglesa, mais conhecida como a autora do livro “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno”. Ela se casou com Shelley em 1816, e com ele teve quatro filhos. O casamento foi controverso e passou por diversos obstáculos, incluindo a separação de Percy de sua primeira mulher, a morte de seus filhos e a oposição da família de Mary ao casamento. No entanto, o relacionamento deles também foi marcado por uma forte ligação intelectual e por sua participação na cena literária e política da época; c) Claire Clairmont (1798-1879) a irmã mais nova de Mary. Ela nasceu na Inglaterra e cresceu com sua irmã e seu meio-irmão, William Godwin, filho do pai de Mary. Acredita-se que ela tenha sido amante de Shelley. Juntos, eles viajaram pela Europa, tendo relações com diversas pessoas importantes, incluindo Lord Byron, com quem teve uma filha ilegítima, Allegra Byron.
  2. Em tradução livre, “mal-estar a três”. Optei por manter a expressão original para preservar o esperto efeito poético e de som derivado do jogo de palavras com a expressão mènage à trois (relacionamento ou sexo a três) que, no Brasil, geralmente também não costuma ser traduzida.
  3. O Serpentine é um lago artificial situado no Hyde Parki, em Londres, Inglaterra.

Shelley

When I was twenty the one true
free spirit I had heard of was Shelley,
Shelley, who wrote tracts advocating
atheism, free love, the emancipation
of women, the abolition of wealth and class,
and poems on the bliss of romantic love,
Shelley, who, I learned later, perhaps
almost too late, remarried Harriet,
then pregnant with their second child,
and a few months later ran off with Mary,
already pregnant herself, bringing
with them Mary’s stepsister Claire,
who very likely also became his lover,

and in this malaise á trois, which Shelley
had imagined would be “a paradise of exiles,”
they lived, along with the spectre or Harriet,
who drowned herself in the Serpentine,
and of Mary’s half sister Fanny,
who killed herself, maybe for unrequited
love of Shelley, and with the spirits
of adored but often neglected
children conceived incidentally
in the pursuit of Eros—Harriet’s
Ianthe and Charles, denied to Shelley
and consigned to foster parents; Mary’s
Clara, dead at one; her Willmouse,
Shelley’s favorite, dead at three; Elena,
the baby in Naples, almost surely
Shelley’s own, whom he “adopted”
and then left behind, dead at one and a half;
Allegra, Claire’s daughter by Byron,
whom Byron sent off to the convent
at Bagnacavallo at four, dead at five—

and in those days, before I knew
any of this, I thought I followed Shelley,
who thought he was following radiant desire.

Galway Kinnell – Aquela noite silenciosa

Eu voltarei àquela noite silenciosa
em que nos deitamos juntos e conversamos em vozes baixas, silenciosas,
enquanto do lado de fora caíam lentos fragmentos de neve
suave, silenciando ao se aproximar do solo,
com um incêndio no quarto, onde séculos
de árvores evolaram-se em contínuas almas-ausentando-se,
sem um estalido, até a luz da manhã.
Só dormimos quando o que se apressava mais lento se tornou.
Quando chegamos em casa, nos viramos e olhamos para trás,
para nossos entrelaçados rastros fora da floresta,
onde os ramos em que roçamos deixavam cair
porções de neve cintilante, rapidamente, em silêncio,
como beijos roubados, e onde o tuim tuim tuim
entre as árvores, que é o som que morre
no interior das fagulhas da cunha quando a marreta
atinge-a fora do centro dizendo que tudo dentro
dela é lume, pulou para um galho escuro, orgulhoso
mas sem braços e, por isso, para os nossos olhos solitários,
e ainda assim – como poderíamos sabe-lo? – feliz!
na forma de um chapim. Deitados ainda na neve,
nenhuma vontade férrea, como trilhos de ferrovia dispostos
a não se encontrar até o céu, mas aqui e ali
fazendo paradas para molhados beijos no campo,
nossas rastros agitam na neve seu longo rabisco.
Tudo o que aqui acontece é realmente pouco mais,
se assim for, do que um rabisco, igualmente. As palavras, em nossas bocas,
estão quase prontas, já, para envolver aquele
a quem os tuim tuim tuim, que significam se como quando
podemos perder um ao outro, riscam riscam riscam
de um momento para o outro. Então eu voltarei
àquela noite silenciosa, em que o passado simplesmente logrou
sobrepor-se ao futuro, ainda que apenas por um triz,
e em que a luz redobra e reluz
na escuridão a cintilação que elevou aos céus a terra.

Trad.: Nelson Santander

That Silent Evening

I will go back to that silent evening
when we lay together and talked in low, silent voices,
while outside slow lumps of soft snow
fell, hushing as they got near the ground,
with a fire in the room, in which centuries
of tree went up in continuous ghost-giving-up,
without a crackle, into morning light.
Not until what hastens went slower did we sleep.
When we got home we turned and looked back
at our tracks twining out of the woods,
where the branches we brushed against let fall
puffs of sparkling snow, quickly, in silence,
like stolen kisses, and where the scritch scritch scritch
among the trees, which is the sound that dies
inside the sparks from the wedge when the sledge
hits it off center telling everything inside
it is fire, jumped to a black branch, puffed up
but without arms and so to our eyes lonesome,
and yet also – how could we know this? – happy!
in shape of chickadee. Lying still in snow,
not iron-willed, like railroad tracks, willing
not to meet until heaven, but here and there
making slubby kissing stops in the field,
our tracks wobble across the snow their long scratch.
Everything that happens here is really little more,
if even that, than a scratch, too. Words, in our mouths,
are almost ready, already, to bandage the one
whom the scritch scritch scritch, meaning if how when
we might lose each other, scratches scratches scratches
from this moment to that. Then I will go back
to that silent evening, when the past just managed
to overlap the future, if only by a trace,
and the light doubles and shines
through the dark the sparkling that heavens the earth.