Fernando Pinto do Amaral – Por causa de uma ave

        para a minha mãe

Cada vez gosto menos de saborear
o travo tão pastoso da morte, o murmúrio
secreto dos seus olhos invisíveis
dentro de mim. Porém, há pouco tempo,
num fim de tarde deste fim de julho,
passou-me um episódio que rompeu
de repente na alma todas as comportas
que fingem proteger os ópios tranquilos
a que chamamos vida. Aconteceu
depois de ter chegado a esta casa
perdida numa encosta de província
e onde venho só de longe em longe:
foi durante a limpeza da sala maior
que, afastando um armário, descobri
entre pequenas teias, quase envolto
num sudário de pó, ali esquecido,
na treva e no silêncio dos meses de inverno,
o esqueleto de um pássaro. Entrara
pela chaminé de pedra e escorregara
até cair junto à lareira. Hoje
imagino o pavor do seu voo suicida
pousando às cegas de móvel em móvel,
dias e dias pelo escuro deserto
da sala fria, à toa, procurando
escapar ao seu naufrágio, encontrar
uma réstia de céu, até que, já sem forças,
se deixou deslizar para trás desse armário
onde morreu de sede e fome e solidão
enquanto mal batia as asas
em arremedos de frustradas fugas.

Ao ter na mão aquele resto de corpo
os “pedacinhos de ossos”, toda a quilha
do peito sustentando o arco das costelas,
as minúsculas patas quase intactas,
lembrei-me, num relance de terror,
de outros ossos maiores, os do meu pai,
a não muitas centenas de metros daqui,
num absurdo cubículo de pedra
sobre o qual está gravado um nome de família.
Apodrecem há mais de quinze anos
em sombras que serão iguais a nós
– passageiros ingênuos e translúcidos
de corpos consumidos no seu próprio lume.
Ao sentir entre os dedos o que foram asas,
vi nos últimos gestos dessa ave,
chocando com as paredes, sem saída,
o mesmo desespero esbracejante
de uma noturna cama de hospital
onde houve um homem que lutou às cegas
no seu estertor febril e consciente,
junto à fronteira íntima, abissal,
que nem a voz transpõe. Nenhum dos gritos
pode ecoar nos meus, aqui, agora,
nesta dádiva exangue e sem destinatário,
porque toda a poesia se resume
a um calafrio embalsamado em letras,
palavras destinadas a morrer
no momento em que as páginas de um livro,
como as asas de um pássaro, os braços de um homem,
se fecham num sono a que ninguém responde.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 21/03/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Jorge Luis Borges – As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 30/04/2018

Jorge Luis Borges – Las Causas

Los ponientes y las generaciones.
Los días y ninguno fue el primero.
La frescura del agua en la garganta
de Adán. El ordenado Paraíso.
El ojo descifrando la tiniebla.
El amor de los lobos en el alba.
La palabra. El hexámetro. El espejo.
La Torre de Babel y la soberbia.
La luna que miraban los caldeos.
Las arenas innúmeras del Ganges.
Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña.
Las manzanas de oro de las islas.
Los pasos del errante laberinto.
El infinito lienzo de Penélope.
El tiempo circular de los estoicos.
La moneda en la boca del que ha muerto.
El peso de la espada en la balanza.
Cada gota de agua en la clepsidra.
Las águilas, los fastos, las legiones.
César en la mañana de Farsalia.
La sombra de las cruces en la tierra.
El ajedrez y el álgebra del persa.
Los rastros de las largas migraciones.
La conquista de reinos por la espada.
La brújula incesante. El mar abierto.
El eco del reloj en la memoria.
El rey ajusticiado por el hacha.
El polvo incalculable que fue ejércitos.
La voz del ruiseñor en Dinamarca.
La escrupulosa línea del calígrafo.
El rostro del suicida en el espejo.
El naipe del tahúr. El oro ávido.
Las formas de la nube en el desierto.
Cada arabesco del calidoscopio.
Cada remordimiento y cada lágrima.
Se precisaron todas esas cosas
para que nuestras manos se encontraran.

Fernando Pinto do Amaral – Por causa de uma ave

        para a minha mãe

Cada vez gosto menos de saborear
o travo tão pastoso da morte, o murmúrio
secreto dos seus olhos invisíveis
dentro de mim. Porém, há pouco tempo,
num fim de tarde deste fim de julho,
passou-me um episódio que rompeu
de repente na alma todas as comportas
que fingem proteger os ópios tranquilos
a que chamamos vida. Aconteceu
depois de ter chegado a esta casa
perdida numa encosta de província
e onde venho só de longe em longe:
foi durante a limpeza da sala maior
que, afastando um armário, descobri
entre pequenas teias, quase envolto
num sudário de pó, ali esquecido,
na treva e no silêncio dos meses de inverno,
o esqueleto de um pássaro. Entrara
pela chaminé de pedra e escorregara
até cair junto à lareira. Hoje
imagino o pavor do seu voo suicida
pousando às cegas de móvel em móvel,
dias e dias pelo escuro deserto
da sala fria, à toa, procurando
escapar ao seu naufrágio, encontrar
uma réstia de céu, até que, já sem forças,
se deixou deslizar para trás desse armário
onde morreu de sede e fome e solidão
enquanto mal batia as asas
em arremedos de frustradas fugas.

Ao ter na mão aquele resto de corpo
os “pedacinhos de ossos”, toda a quilha
do peito sustentando o arco das costelas,
as minúsculas patas quase intactas,
lembrei-me, num relance de terror,
de outros ossos maiores, os do meu pai,
a não muitas centenas de metros daqui,
num absurdo cubículo de pedra
sobre o qual está gravado um nome de família.
Apodrecem há mais de quinze anos
em sombras que serão iguais a nós
– passageiros ingênuos e translúcidos
de corpos consumidos no seu próprio lume.
Ao sentir entre os dedos o que foram asas,
vi nos últimos gestos dessa ave,
chocando com as paredes, sem saída,
o mesmo desespero esbracejante
de uma noturna cama de hospital
onde houve um homem que lutou às cegas
no seu estertor febril e consciente,
junto à fronteira íntima, abissal,
que nem a voz transpõe. Nenhum dos gritos
pode ecoar nos meus, aqui, agora,
nesta dádiva exangue e sem destinatário,
porque toda a poesia se resume
a um calafrio embalsamado em letras,
palavras destinadas a morrer
no momento em que as páginas de um livro,
como as asas de um pássaro, os braços de um homem,
se fecham num sono a que ninguém responde.

Jorge Luis Borges – As Causas

Todas as gerações e os poentes.
Os dias e nenhum foi o primeiro.
A frescura da água na garganta
De Adão. O ordenado Paraíso.
O olho decifrando a maior treva.
O amor dos lobos ao raiar da alba.
A palavra. O hexâmetro. Os espelhos.
A Torre de Babel e a soberba.
A lua que os Caldeus observaram.
As areias inúmeras do Ganges.
Chuang Tzu e a borboleta que o sonhou.
As maçãs feitas de ouro que há nas ilhas.
Os passos do errante labirinto.
O infinito linho de Penélope.
O tempo circular, o dos estóicos.
A moeda na boca de quem morre.
O peso de uma espada na balança.
Cada vã gota de água na clepsidra.
As águias e os fastos, as legiões.
Na manhã de Farsália Júlio César.
A penumbra das cruzes sobre a terra.
O xadrez e a álgebra dos Persas.
Os vestígios das longas migrações.
A conquista de reinos pela espada.
A bússola incessante. O mar aberto.
O eco do relógio na memória.
O rei que pelo gume é justiçado.
O incalculável pó que foi exércitos.
A voz do rouxinol da Dinamarca.
A escrupulosa linha do calígrafo.
O rosto do suicida visto ao espelho.
O ás do batoteiro. O ávido ouro.
As formas de uma nuvem no deserto.
Cada arabesco do caleidoscópio.
Cada remorso e também cada lágrima.
Foram precisas todas essas coisas
Para que um dia as nossas mãos se unissem.

Trad.: Fernando Pinto do Amaral

 

Jorge Luis Borges – Las Causas

Los ponientes y las generaciones.
Los días y ninguno fue el primero.
La frescura del agua en la garganta
de Adán. El ordenado Paraíso.
El ojo descifrando la tiniebla.
El amor de los lobos en el alba.
La palabra. El hexámetro. El espejo.
La Torre de Babel y la soberbia.
La luna que miraban los caldeos.
Las arenas innúmeras del Ganges.
Chuang-Tzu y la mariposa que lo sueña.
Las manzanas de oro de las islas.
Los pasos del errante laberinto.
El infinito lienzo de Penélope.
El tiempo circular de los estoicos.
La moneda en la boca del que ha muerto.
El peso de la espada en la balanza.
Cada gota de agua en la clepsidra.
Las águilas, los fastos, las legiones.
César en la mañana de Farsalia.
La sombra de las cruces en la tierra.
El ajedrez y el álgebra del persa.
Los rastros de las largas migraciones.
La conquista de reinos por la espada.
La brújula incesante. El mar abierto.
El eco del reloj en la memoria.
El rey ajusticiado por el hacha.
El polvo incalculable que fue ejércitos.
La voz del ruiseñor en Dinamarca.
La escrupulosa línea del calígrafo.
El rostro del suicida en el espejo.
El naipe del tahúr. El oro ávido.
Las formas de la nube en el desierto.
Cada arabesco del calidoscopio.
Cada remordimiento y cada lágrima.
Se precisaron todas esas cosas
para que nuestras manos se encontraran.