Doris Lessing – Fábula

Quando olho para trás me parece recordar o canto,
embora sempre houvesse silêncio naquele largo e cálido salão.

Impenetráveis, essas paredes, acreditávamos,
escuras como escudos antigos. A luz
brilhava na cabeça ou nas pernas esparramadas
com indolência por uma menina. E as vozes baixas
subiam no silêncio a se perder como a água.

Assim, tudo era manso e morno como uma mão,
se algum de nós corresse as cortinas
uma chuva espiralada soprava lá fora com descuido.
Às vezes serpenteava um vento que fazia dançar as chamas
e um jogo de sombras deslizava pelas paredes,
ou uivava um lobo lá fora na noite vasta,
e ao sentir nossa carne gelada nos colávamos.

Mas a dança continuou por um tempo
— assim me parece agora:
formas lentas que se moviam com vagar através
de charcos de luz como uma rede dourada no chão.
Assim deve ter prosseguido para sempre como um sonho.

Mas entre um ano e o próximo – um vento novo soprou?
A chuva apodreceu as paredes finalmente?
Os focinhos dos lobos vieram empurrar os raios caídos?

Isso foi há muito tempo,
mas às vezes me lembro do salão cortinado
e ouço vozes jovens e distantes cantando.

Trad.: José Antônio Cavalcanti

Fable

When I look back I seem to remember singing.
Yet it was always silent in that long warm room.

Impenetrable, those walls, we thought,
Dark with ancient shields.The light
Shone on the head of a girl or young limbs
Spread carelessly. And the low voices
Rose in the silence and were lost as in water.

Yet, for all it was quiet and warm as a hand,
If one of us drew the curtains
A threaded rain blew carelessly outside.
Sometimes a wind crept, swaying the flames,
And set shadows crouching on the walls,
Or a wolf howled in the wide night outside,
And feeling our flesh chilled we drew together.

But for a while the dance went on –
That is how it seems to me now:
Slow forms moving calm through
Pools of light like gold net on the floor.
It might have gone on, dream-like, for ever.

But between one year and the next – a new wind blew ?
The rain rotted the walls at last ?
Wolves’ snouts came thrusting at the fallen beams ?

It is so long ago.
But sometimes I remember the curtained room
And hear the far-off youthful voices singing.

Cassiano Ricardo – A Cidade Confusa

I

A cidade chora
lágrimas elétricas
sobre o corpo anônimo
do eletrocutado.

As figuras tétricas
que residem, mudas,
na parede do templo,
me cercam, na rua.

Como se eu fosse, acaso,
o culpado de algum acontecimento
na noite confusa.

II

O deus unicórnio
que há no escudo do rei,
e que lhe defende
a coroa, me acusa.

Os anjos da guerra
têm rostos cubistas.
Monstros estão nascendo
como animais dourados.

O perfil das coisas
está, agora, sendo
substituído por outro,
doloroso e polêmico.

As ingênuas figuras
dos meus livros de infância
mudaram de rosto…
Como reconhecê-las?

III

Faço das palavras
meu reduto anti-aéreo.
Cada minuto é o fruto
de um difícil relógio.

Toda a fauna do escombro
no chão onde caiu
a estrela voadora
vem chorar no meu ombro.

O habitante da Terra
traz no rosto o estigma
de quem, como o infeliz rei,
decifrou o enigma.

Onde crime mais grave
que alterar-se a silhueta
de uma criatura, de uma
simples borboleta,

não por arte, magia,
ou graça de pintura,
mas por lesão dos seres,
em sua argila obscura.

Quando voltarão
os pombos ao navio?
As palavras ao léxico
hoje tão acerbo?

Deus não fez a linguagem
do homem à sua imagem?
Como no começo,
no fim não será o verbo?

IV

Uma Salomé alva
me traz, em sua salva,
a cabeça de João,
degolado às cinco horas.

Há, em cada sol falso,
uma aurora abolida…
A noite leva o sol,
fica o cadafalso.

Mas, de quem a culpa?
Não o sei; o que sei
é que não fui eu
quem matou os símbolos.

Franz Kafka – Pequena Fábula

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