Pense em quantos anos foram necessários para chegarmos a este ano
quantas cidades para chegarmos a esta cidade
e quantas mães, todas mortas, até tua mãe
quantas línguas até que a língua fosse esta
e quantos verões até precisamente este verão
este em que nos encontramos neste sítio
exato
à beira de um mar rigorosamente igual
a única coisa que não muda porque muda sempre
quantas tardes e praias vazias foram necessárias para chegarmos ao vazio
desta praia nesta tarde
quantas palavras até esta palavra, esta
Arquivos da tag: Ana Martins Marques
Ana Martins Marques – Caçada
Ana Martins Marques – de “Três Postais”
São Paulo
Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno
Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo
Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão postal
Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim
Ana Martins Marques – História
Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem um história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 40 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras
de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo
uma imagem
que viveu
alguns segundos.
Ana Martins Marques – a parte que me cabe
a parte do teu corpo
que procura pelo sol
como os gatos pela casa
a parte que permanece imóvel
quando cantas, aquela que se move
quando estás parado
a parte que apenas a mim
e de relance, por descuido
revelaste
a parte onde guardas as memórias
de infância, a parte que ainda anseia
pelo futuro
a parte que demora
a acordar
depois que acordaste
a parte que discorda
ainda de mim
quando já cedeste
aquela que adere
mais fortemente
ao teu nome
a parte que guarda
silêncio enquanto
falas
a parte que
quando estás cansado
ainda não se cansou
a parte ainda noturna
quando é dia, diurna
quando é noite
a parte que
tem parte
com o mar
Ana Martins Marques – Religião
‘If I were called in
to construct a religion
I should make use of water’
– Philip Larkin
Inaugurar uma religião:
adorar os pontos em que se formam
as estações do ano
os gestos de desnudar-se
o dia depois da chuva
a distância: entre uma árvore e outra árvore,
entre cidades com o mesmo nome
em diferentes continentes.
Criar relíquias:
os táxis ao entardecer, as colheres
brilhando ao sol
esboços de mãos e pés
de pintores antigos
as presas ensanguentadas
que nos trazem os gatos.
E ainda outras, íntimas, insensatas
a luz nos seus cabelos
as fotografias de parentes
que não sabemos quem são.
Adotar novas bíblias:
longos romances inacabados
palavras lidas sobre os ombros
de alguém no metrô
poemas clássicos traduzidos
por tradutores automáticos.
Reconhecer enfim o divórcio
como um sacramento.
Na liturgia
tocar como partituras
os mapas das cidades.
E no Natal
só celebrar o que nasce
do sexo
para morrer
de fato.
Ana Martins Marques – Sem Título
Porque sua camiseta secou ao sol ela tem a cor do sol
porque seus cabelos secaram ao vento seus pensamentos têm
a velocidade do vento
porque você disse “noite” sua boca
terá o gosto do mar noturno
porque você não conheceu meu avô você me amará menos
porque não te conheci quando criança eu te amarei mais
porque você conheceu os meus livros antes de me conhecer
você nunca vai me conhecer
Ana Martins Marques – Penélope (I)
O que o dia tece,
a noite esquece.
O que o dia traça,
a noite esgarça.
De dia, tramas,
de noite, traças.
De dia, sedas,
de noite, perdas.
De dia, malhas,
de noite, falhas.
Ana Martins Marques – Batata Quente
Ana Martins Marques – Interiores
AÇUCAREIRO
De amargo
basta
o amor
Agridoce,
ela disse
Mas a mim
pareceu
amargo
CADEIRA
I
Repetes
diariamente
os gestos
do primeiro homem
que se sentou
numa tarde quente
olhando as savanas
II
Pouso
de gigantescos pássaros
cansados
FRUTEIRA
Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?
CRISTALEIRA
Guarda
e revela
a nudez
branca
da louça
o incêndio
despareado
dos cristais
TALHERES
Colher
Se o sol nela
batesse
em cheio
por exemplo
numa mesa posta
no jardim
imediatamente se formaria
um pequeno lago
de luz
Garfo
Em três ramos
floresce
o metal
Faca
Sua fria elegância
não escamoteia
o fato:
é ela que melhor se presta
ao assassinato
CÔMODA
E dela
o que restou
senão
sobre a cômoda
um par de brincos
que talvez não sejam dela?
ESTANTE
Dentro da garrafa
o navio
acaba de partir
CORTINA
Entre o fora e o dentro
lês
o vento