Timothy Liu – Melhor não deixar vestígios

Começo a compreender
por que hindus se reúnem nos ghats1

para incinerar seus mortos —

as águas sagradas do Ganges
levando as cinzas para longe.

Os agentes funerários erraram

com meu pai, minha madrasta chorando
pela forma da boca

dele — uma cavidade preenchida

com algodão, lábios esticados
demais, de lado a lado,

pintados, fazendo-o parecer

o Coringa. Pergunto-me quem
está deitado ali, exposto, e quais

papéis nos cabem interpretar hoje —

cidadãos de um reino
sem nome reunidos

para uma última despedida, minha madrasta

perguntando em mandarim: posso
tocá-lo?
Eu havia chegado

uma hora antes do que disseram,

uma hora antes do que disseram

que ele estaria pronto. Queria
um tempo sozinho, algum espaço

para sentir seja lá o que fosse

sentir, droga, se
ela não fosse me sabotar

uma última vez. Eu contava

os dias desde que meu pai deixou
seu corpo, me perguntando quanto tempo

o Bardo2 o manteria

antes de despachar nosso pequeno
general enfeitado com medalhas

de volta a outra forma — humana

ou não. Ela pousa a mão
sobre a dele no mesmo lugar

onde eu já tinha posto a minha antes

dela chegar — o orgulho fugaz
de ter chegado

primeiro, abrindo o zíper da capa

que guardava sua bíblia toda marcada
de vermelho, passagens várias

que eu nunca mais teria que ouvir

ele ler enquanto remexia
suas últimas coisas — um desenho

feito por uma neta, um cartão

assinado pelo próprio filho deles.
Uma hora antes, o agente funerário

brincou que ele também tivera

uma madrasta terrível que vendeu
o negócio da família para

uma corporação para lucrar

sem se importar com os quatro
enteados deixados para trás,

todos treinados na fina arte

de embalsamar o próprio pai.
Meu pai havia encolhido

três tamanhos de terno, nada

realmente servia, minha madrasta
reclamando sobre quanto

custaria um terno novo,

dinheiro que preferia gastar
consigo mesma, embora a ideia

parecesse boa no início,

quando o cadáver ainda estava quente.
O que restava

do cabelo grisalho do meu pai

tinha laquê, a pele
amarelada em seu crânio e rosto

surpreendentemente macia para

um nonagenário — ainda parecia
ele, se não o olhassem

muito de perto. Eu tinha sentimentos contraditórios

sobre todos aqueles produtos químicos
usados para conservá-lo,

mas fiquei aliviado por ele não cheirar mal

quando pressionei meus lábios contra
sua testa quando ninguém

estava olhando, até tirei

uma selfie que me fez
explodir em lágrimas —

última chance de foto, ensaiada

e não, peguei uma caneta
e rabisquei na bíblia do meu

pai, rasurando qualquer menção

ao meu homônimo Timothy —
“meu verdadeiro filho na fé!”

antes que minha madrasta chegasse,

os vestígios kármicos
de tudo que fiz

selados dentro de um caixão se fechando.

Trad.: Nelson Santander

  1. Os ghats são escadarias que descem até margens de rios, comumente encontradas na Índia. São frequentemente usados como espaços sagrados para cerimônias religiosas, como oferendas e cremações. Os ghats do rio Ganges, em particular, possuem um significado especial no hinduísmo, pois acredita-se que as cinzas dos mortos lançadas em suas águas sagradas promovem a purificação espiritual e a libertação do ciclo de renascimentos (moksha). ↩︎
  2. A referência ao “Bardo” vem do budismo tibetano, especificamente do conceito exposto no Bardo Thodol (Livro Tibetano dos Mortos). O “Bardo” seria um estado intermediário entre a morte e o renascimento, onde a alma, segundo essa tradição, enfrenta experiências que determinam sua próxima existência. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Best to Leave No Evidence Behind

I’m starting to understand
why Hindus gather on ghats

to set their corpses on fire—

sacred waters of the Ganges
washing away the ashes.

The morticians got my father

wrong, my stepmom sobbing
over the shape of my father’s

mouth—the cavity stuffed

with cotton, lips stretched
too wide from side to side

and painted, making him look

like the Joker. I wonder who
that is lying in state and what

roles we get to play today—

citizens of an unnamed
kingdom gathering around

for a last hurrah, my stepmom

asking in Mandarin: can I
touch him? I had gotten there

an hour before they said

an hour before they said

he’d be ready. I wanted
some time alone, some space

to feel whatever it was I was

going to feel, goddamn it if
she were going to cockblock me

one last time. I was counting

the days since my dad had left
his body, wondering how long

the Bardo would have him

before dispatching our little
general bedecked with medals

back into another form—human

or not. She puts her hand
on top of his in the same place

I had put mine own before

she came—the tiny pride
I took in having gotten there

first, unzipping the case

that held his Bible all marked
in red, sundry passages

I’d never have to hear him

read again as I snooped
around last things—a drawing

made by a granddaughter, a card

their own son had signed, made.
An hour before, the mortician

joked that he too had had

an awful stepmom who sold off
the family business to

a corporation so she could

cash in with no regard
for her four leftover stepsons

all trained in the fine art

of embalming their own father.
My own dad having shrunk

three suit sizes, nothing

really fit, my stepmom
bitching about how much

a brand-new suit would cost

that she’d just as soon spend
on herself though at first

it sounded like a good idea

when his corpse was still warm
to the touch. What was left

of my father’s gray hair

had hairspray on it, the yellowed
skin on his skull and face

remarkably supple for

a nonagenerian—still looked
like my dad if one refused

to look head on. I felt mixed

about all those chemicals
they used to pickle him

but was glad he didn’t stink

when I pressed my lips against
his forehead when no one

was looking, even snapped

a selfie which actually
made me burst out crying—

final photo op both staged

and not, I grabbed a pen
and scribbled in my daddy’s

Bible, crossed out any mention

of my namesake Timothy—
“my true son in the faith!”

before my stepmom arrived

on the scene, the karmic
traces of everything I’d done

sealed inside a casket closing.

Timothy Liu – Thoreau

Meu pai e eu não temos para onde ir.
Sua esposa não nos deixa entrar em casa —
medo de contrair AIDS. Ela acredita que
dormir com homens é pior do que um pecado,
meu pai diz, enquanto nos sentamos no meio-fio
em frente à casa dos vizinhos.
Sessenta e quatro anos tornaram meu pai
impotente. Raízes grisalhas e tinta preta
desbotada manchando seus cabelos o fazem parecer
quase cômico, como se sua humilhação
fosse minha também. Ontem à noite lemos
Thoreau em um restaurante ali perto
e choramos: Se um homem não consegue acompanhar o passo
de seus companheiros, deixe-o viajar
ao compasso da canção que ele ouve, por mais
lenta ou longínqua que esta pareça. Os pomares
se foram, sua aldeia perto de Xangai
foi bombardeada pelos japoneses, os arvoredos
que conheci em Almaden — damascos,
nozes, pêssegos e ameixas — foram derrubados.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Thoreau

My father and I have no place to go.
His wife will not let us in the house—
afraid of catching AIDS. She thinks
sleeping with men is more than a sin,
my father says, as we sit on the curb
in front of someone else’s house.
Sixty-four years have made my father
impotent. Silver roots, faded black
dye mottling his hair make him look
almost comical, as if his shame
belonged to me. Last night we read
Thoreau in a steak house down the road
and wept: If a man does not keep pace
with his companions, let him travel
to the music that he hears, however
measured or far away.
 The orchards
are gone, his village near Shanghai
bombed by the Japanese, the groves
I have known in Almaden—apricot,
walnut, peach and plum—hacked down.

Timothy Liu – Os restos

Os restos

                                                  —Wuxi, China

Saindo do novo cemitério, meu pai
pegou a minha mão, tendo acabado de reenterrar os restos
mortais de seu próprio pai e suas duas esposas —
sua mãe morrera de tuberculose quando ele tinha dez anos.

Ele pegou a minha mão e disse: Agora posso morrer em paz
mesmo que não tenhamos os ossos verdadeiros
. Os bandidos da aldeia
contratados pelo meu tio se certificaram de que os túmulos
atrás da casa em que meu pai crescera não sentiriam

uma única lâmina de pá entrar enquanto eles estivessem ali
de sentinela com os braços cruzados. A esposa do meu tio
teve um sonho em que de uma fenda aberta da sepultura
demônios saíam apressados — fantasmas ancestrais que não queriam ser

perturbados. Em menos de uma década, tratores virão
botar abaixo a aldeia dos Liu. 
As cinzas da minha
avó, os ossos do meu avô, meu próprio pai
se afastando com dois punhados de terra e dizendo:

Isso terá que servir. Tantos outros morreram
sem ter deixado nada para trás. Eu nunca mais voltarei
a este lugar. 
Meu pai beijou a minha mão,
eu que atravessei doze fusos horários para estar aqui

ao seu lado em uma van emprestada, eu olhando pela
janela para um campo uma vez invadido por
soldados japoneses marchando para o oeste ao longo dos trilhos,
meu pai e seus irmãos escondidos em um depósito,

um cavalo morto encontrado no pátio da escola logo após
a partida dos soldados. Suas mãos são tão macias!, eu digo
ao meu pai. As suas também, ele responde. Lembra-se de
quando foi a última vez em que nos demos as mãos? 
Eu devia ser

uma criança, eu respondo, talvez com oito, ou dez? Você tinha seis
anos, meu pai diz. E ainda sou seu filho, eu digo,
apoiando-me no ombro dele, nossas mãos do mesmo tamanho.
E eu serei sempre seu pai, meu pai responde

antes que eu tenha a oportunidade de dizer outra palavra,
meu pai de oitenta anos já caindo no sono.

Trad.: Nelson Santander

The Remains

                                                  —Wuxi, China

Walking out of the new cemetery, my father
takes my hand, having just re-interred the remains
of his own father and his father’s two wives—
his mother dead from T.B. by the time he was ten.

He takes my hand and says, Now I can die in peace
even if we didn’t get the actual bones. Village thugs
hired by my uncle made sure the burial mounds
behind the house my father grew up in would not feel

a single shovel blade go in as they stood there
sentinel with arms crossed. My uncle’s wife
had a dream that out of the grave’s opened gash
demons rushed—ancestral ghosts not wanting to be

disturbed. In less than a decade, bulldozers will come
to take the Liu village down. My grandfather’s
ashes, my grandmother’s bones, my own father
walking away with two fistfuls of dirt and saying,

This will have to do. So many others have died
who’ve left nothing behind. I’ll never come back
to this place again. My father kisses my hand,
I who’ve flown across twelve time zones to be here

at his side in a borrowed van, me looking out
the window at a countryside once overrun
with Japs marching West along the railroad tracks,
my father and his siblings hiding in an outhouse,

a dead horse found in the schoolyard soon after
the soldiers had gone. Your hands are so soft! I say
to my father. So are yours, he says. Remember
when it was we last held hands? I must have been

a kid, I say, maybe eight, or ten? You were six,
my father says. And I’m still your son, I say,
leaning into his shoulder, our hands the same size.
And I’ll always be your father, my father says

before I have the chance to say another word,
my eighty-year-old father nodding off into sleep.