Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? “Não”, dizes, “nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!”
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.
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Nuno Júdice – Fotografia
Naquilo a que o jornal chama um nu sulfuroso de
atget (1925) a mulher está de gatas em cima da cama,
e olha para trás, de esguelha, como se quisesse
mostrar-se ao fotógrafo, por um lado, e esconder-se
de nós, por outro. Mas quando a olhamos, adivinha-se
um sorriso que, não se sabe porquê, se esbate com
essa espécie de névoa com que o tempo envolve
as fotografias antigas, a sépia, em que não é
possível disfarçar a certeza que temos de que aquela
mulher, hoje, não passa de cinza nalgum canto
de cemitério de província. Porém, a sua nudez
desafia a morte; e quase que lhe podíamos pedir
que esqueça o fotógrafo, e regresse à realidade
onde ele a foi descobrir, para que a sua vida
retome o curso habitual, e não nos perturbe com
esse sentimento de que a vida é breve, e já foi.
Nuno Júdice – Réquiem por Muitos Maios
Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?
No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.
E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.
Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.
Nuno Júdice – Passado
Passou o vento, passou o dia,
passou a noite e a manhã,
passou o tempo, passou a gente,
passou cada hora de amanhã;
passou um canto esquecido
nos cantos de cada passo,
passou ao dizer que passo
sem se lembrar do compasso;
passou a vida como se nada
fosse,
só passou e foi-se embora,
passou à pressa, sem demora,
e passou tudo a quem ficou;
e se mais não passou
no fim de tudo ter passado,
foi porque algo se passou
no último passo que foi dado.