Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.
Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?
Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo…
Arquivos da categoria:Nuno Júdice
Nuno Júdice – Epidemia
Passa de um para o outro através do olhar, de uma palavra,
de um toque de mãos; por vezes, basta um leve suspiro
para adivinhar a febre, e atrás dele descobre-se que
não é preciso cura nem tratamento. Instala-se na cabeça,
no corpo, na boca, nos dedos, sem dor nem cansaço,
apenas aquela ânsia a que se dá o nome de desejo e,
para que abrande, o remédio é ver quem se ama, ouvir
a voz que alivia a solidão, saber onde está, o que faz,
o que veste. E a doença está nos que a evitam, nos
que a não conhecem por ignorância ou por medo,
nos que nunca ousaram e, um dia, rejeitaram o que
se lhes oferecia. Assim, dizem os especialistas,
não evitem o olhar que vos procura, não esqueçam
a palavra que vos chega, tão inesperada; e recebam
sem receio essa mão que tereis sonhado e vos
procura, fazendo com que entreis, para sempre,
no campo dos atingidos pelo mais doce dos contágios.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 06/05/2020
Nuno Júdice – Nostalgia de setembro
Quando vinham as nuvens de setembro, já
os pássaros tinham emigrado para além dos mares,
o campo ficava em longos silêncios
que só a passagem dos rebanhos, a caminho
do matadouro, cortava num tropel que ecoava
ainda, depois da paisagem, com os gritos
do pastor e o ladrar dos cães. Eu gostava dessas nuvens
quando começavam as primeiras chuvas, e podia
ouvir o bater dos pingos na janela, empurrados
pelo vento, e o ruído da água a correr nas goteiras,
e a inundar as valetas, arrastando o lixo
e as memórias do verão. Porém, ainda te vejo,
com o vestido encharcado e os cabelos a escorrerem
água para os ombros, como se não te importasses
com a chuva. Nunca soube quem eras, nem
porque passeavas no campo como se estivesse
um dia de sol. Talvez fosses uma sobrevivente do
verão; e ainda hoje me arrependo de não te
ter seguido, para lá da curva do caminho em que
te perdi de vista, para que esse verão continuasse
comigo, para sempre, através da tua imagem.
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 18/06/2019
Nuno Júdice – Como Aves, Cuja Passagem
Como sombras passaram entre nós,
como sombras. Uma vez perante alguns amigos
e desconhecidos, afirmei conhecê-los e citei
os seus nomes. Mas o que não correspondia
a um acto heroico, nada significava
hoje, mesmo entre amigos e desconhecidos.
Só se eu próprio
me tornar uma sombra, e também eu passar
a uma outra vida. Durante algum tempo
alguém falará de mim dizendo “conheci-o”,
ou “há tanto tempo falei com ele”. Mas
em breve outros se tornarão sombras,
e depois outros, até que o meu gesto
se confunda com esses, e todos por fim
se dissipem na obscuridade do tempo
passado.
Nuno Júdice (1949 — 2024)
Nuno Júdice – Outra Imagem
Conheço o mundo dos mortos. É frio, com terra
Por cima, restos de tábuas, ossos desfeitos pelos invernos.
Os mortos vêem-nos; de onde eles estão, eles chamam pelos nomes
Familiares, num murmúrio, e o vento dispensa-lhes os sopros
– música de ciprestes. Por isso há quem ande entre as campas
ao fim da tarde, com os ouvidos tapados; quem reze,
entre lábios, datas estéreis como as antigas pedras;
quem persiga a própria sombra, temendo que ela desapareça
sob a erva fresca. Memórias vagas e finais, atormentando-me
num secreto espelho – no canto de mim, absorto
e pálido, quem me diz o nome em silêncio, sem olhos,
sem lábios, sem os cabelos que outrora toquei?
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 15/10/2018
Nuno Júdice – Carpe Diem
Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? “Não”, dizes, “nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!”
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/08/2018
Nuno Júdice – Fotografia
Naquilo a que o jornal chama um nu sulfuroso de
atget (1925) a mulher está de gatas em cima da cama,
e olha para trás, de esguelha, como se quisesse
mostrar-se ao fotógrafo, por um lado, e esconder-se
de nós, por outro. Mas quando a olhamos, adivinha-se
um sorriso que, não se sabe porquê, se esbate com
essa espécie de névoa com que o tempo envolve
as fotografias antigas, a sépia, em que não é
possível disfarçar a certeza que temos de que aquela
mulher, hoje, não passa de cinza nalgum canto
de cemitério de província. Porém, a sua nudez
desafia a morte; e quase que lhe podíamos pedir
que esqueça o fotógrafo, e regresse à realidade
onde ele a foi descobrir, para que a sua vida
retome o curso habitual, e não nos perturbe com
esse sentimento de que a vida é breve, e já foi.
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/07/2023
Nuno Júdice – Réquiem por Muitos Maios
Conheci tipos que viveram muito. Estão
mortos, quase todos: de suicídio, de cansaço.
de álcool, da obrigação de viver
que os consumia. Que ficou das suas vidas? Que
mulheres os lembram com a nostalgia
de um abraço? Que amigos falam ainda, por vezes,
para o lado, como se eles estivessem à sua
beira?
No entanto, invejo-os. Acompanhei-os
em noites de bares e insónia até ao fundo
da madrugada; despejei o fundo dos seus copos,
onde só os restos de vinho manchavam
o vidro; respirei o fumo dessas salas onde as suas
vozes se amontoavam como cadeiras num fim
de festa. Vi-os partir, um a um, na secura
das despedidas.
E ouvi os queixumes dessas a quem
roubaram a vida. Recolhi as suas palavras em versos
feitos de lágrimas e silêncios. Encostei-me
à palidez dos seus rostos, perguntando por eles – os
amantes luminosos da noite. O sol limpava-lhes
as olheiras; uma saudade marítima caía-lhes
dos ombros nus. Amei-as sem nada lhes dizer – nem do amor,
nem do destino desses que elas amaram.
Conheci tipos que viveram muito – os
que nunca souberam nada da própria vida.
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/06/2018
Nuno Júdice – Passado
Passou o vento, passou o dia,
passou a noite e a manhã,
passou o tempo, passou a gente,
passou cada hora de amanhã;
passou um canto esquecido
nos cantos de cada passo,
passou ao dizer que passo
sem se lembrar do compasso;
passou a vida como se nada fosse,
só passou e foi-se embora,
passou à pressa, sem demora,
e passou tudo a quem ficou;
e se mais não passou
no fim de tudo ter passado,
foi porque algo se passou
no último passo que foi dado.
REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 25/05/2018
Nuno Júdice – Jogo
Eu, sabendo que te amo,
e como as coisas do amor são difíceis,
preparo em silêncio a mesa
do jogo, estendo as peças
sobre o tabuleiro, disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez, uma hipótese
de entendimento. É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.