Meghan O’Rourke – Autorretrato equivocado como Demeter em Paris

1 se pode sentir falta de alguém quando este alguém está presente em sua vida.

A Ilha dos Mortos2 é de uma obscura claridade.

Henry Miller disse a Anaïs Nin que a única morte real é estar morto em vida.

Os ausentes só estarão ausentes quando forem esquecidos. 

Até lá, a ausência é uma mentira, um oximoro.

Portanto, não está totalmente claro o que significa ou em que consiste a ausência.

Às vezes, quero ser famosa novamente, mas então penso nos paparazzi.

Valorizo minha solidão. Mas temo estar morta em vida.

O esquecimento é uma espécie de benção: isso [         ].

Para evitar viver, preocupe-se com tudo o que esqueceu.

Depois, preocupe-se com tudo o que irá esquecer.

Já vivi o suficiente para querer fazer tudo de novo.

Quando sinto falta de minha filha, é como uma espécie de ideia. Então ela vem até mim inesperadamente:
           em seu casaco vermelho de veludo, cabelos desgrenhados,
           sorrindo para os gansos, comendo seus cadarços,
           apontando, chorando, Mais!

Quando vi o filme, no centro sombrio do inverno, pensei:

O filho não estava tentando dizer adeus ao pai moribundo. Ele estava tentando dizer para sempre.

Sozinha por tanto tempo, penso nas pessoas cujas histórias aprendo nos livros.

Frequentemente, penso na avó de uma das amantes de Picasso. Sua neta

não entendia por que ela ia com tanta frequência aos túmulos de seus filhos e marido.

Só espere, disse sua avó. Você verá.

Não, o que ela disse é que chega uma hora em que, passado o seu tempo,

você vive para coisas exteriores: o céu, um pedaço de grama, um cheiro.

Uma pintura, eu diria. Uma pintura em que as cores significam                         tudo.



Trad.: Nelson Santander 

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  1. Sobre este poema: “Como muitos poemas começam, ‘Demeter em Paris’ teve início enquanto eu evitava escrever outra coisa (nesse caso, era um ensaio sobre a ideia dos ’40’ para minha editora britânica). Algumas das linhas começaram como uma meditação sobre estar no meio da vida, mas então algo diferente tomou conta. Eu comecei a pensar em uma mãe arquetípica, que está no coração mítico de nossas estações, de nossas ideias sobre como o tempo passa, e que também passa muito tempo sozinha. O que essa solidão faz com seu senso de identidade? Eu queria que a víssemos como mais do que uma mãe, ou diferente de uma. E ultimamente tenho me interessado por poemas que refletem uma mente pensando e experimentando o mundo através da representação, como este faz.”– Meghan O’Rourke ↩︎
  2. “A Ilha dos Mortos” (em alemão, “Die Toteninsel”) refere-se a uma série de cinco pinturas simbólicas criadas pelo artista suíço Arnold Böcklin entre 1880 e 1886. As pinturas retratam uma ilha rochosa e sombria com ciprestes altos, cercada por águas escuras. Um barco transportando uma figura branca (possivelmente um corpo envolto em mortalha) e um remador se aproxima da ilha. A obra é conhecida por sua atmosfera misteriosa e melancólica, evocando temas de mortalidade, passagem e o desconhecido além-vida. Uma das telas é a imagem que ilustra o poema ↩︎

Mistaken Self-Portrait as Demeter in Paris

You can only miss someone when they are present to you.

The Isle of the Dead is both dark and light.

Henry Miller told Anaïs Nin that the only real death is being dead while alive.

The absent will only be absent when they are forgotten.

Until then, absence is a lie, an oxymoron.

Therefore it is entirely unclear what absence means, or consists of.

Sometimes I want to be famous once more, and then I think about the paparazzi.

I value my solitude. But I fear I am dead while alive.

Forgetting is a kind of blessing: It would [ ].

To avoid living, worry about all you’ve forgotten.

Then worry about what you will forget.

I have lived long enough to want to do it over.

When I miss my daughter, it’s as a kind of idea. Then she comes to me unexpectedly:
in her corduroy red parka, hair sticking out,
smiling at the geese, eating her shoelaces,
pointing, crying, More!

When I saw the movie, in the dark center of winter, I thought:

The son wasn’t trying to say goodbye to his dying father. He was trying to say forever.

Alone so much, I think about the people whose stories I learn in books.

Often I think of the grandmother of one of Picasso’s lovers. Her granddaughter

did not understand why she went so often to the graves of her children and husband.

Just wait, her grandmother said. You will see.

No, what she said is there comes a time when, past your moment,

you live for external things: the sky, a piece of grass, a smell.

A painting, I would say. A painting where the colors are everything.

Meghan O’Rourke – Autorretrato equivocado como mãe de uma filha não concebida

Você não quer viver?
Não posso dizer que não entendo —

Trazer algo ao mundo,
uma criatura que será regida pelo conflito entre sua “vontade”
e seus impulsos, circunstâncias, limitações…

Nós escolhemos muitas coisas, mas não podemos dizer que escolhemos existir.
Minha existência não é minha
como são minhas opiniões, minha calça crepe azul,
meu gosto por cerejas.

Minha existência pertence, de certo modo, a meus pais, e ao
universo — ou a Deus, se você acredita em deus.

Pertence à evolução,
à galáxia e ao espaço além,
aos buracos negros, às anãs vermelhas, ao
hidrogênio, oxigênio e carbono.

Minha existência pertence ao ferro.

Entendo, de certa forma, a relutância
do meu corpo
em impor existência a outro —

e ainda assim eu — eu quase sinto que você é real

e a conheço, virando a concha da praia em minhas mãos,
lembrando da camisa de barco vermelho que você usou por todo o verão,

com um botão para o sol amarelo —



Com meu celular sempre junto a mim

sob o vasto céu lavanda, partirei
em peregrinação

para a ponte daquele jeito aceitar

a nobre verdade

que é ser absorvida
na enormidade disso sem falhar

mesmo que o precipício
continue deixando mensagens de voz —



Talvez você não venha
porque é mais doloroso
para mim ter você
do que não tê-la?

: a pessoa que primeiro colocou um barco
em uma garrafa
e depois se perguntou
por que teve o impulso
de conter —



Antes de ter visão,
as cores oscilam sob seus olhos
como algas.

É falso falar assim, mas
não é falso falar de você —

toda a linguagem que tenho para você
é ornamental —
mas o sol não é um ornamento

saia e veja-o
fique sob ele, avançando,
deixe o corpo ir sem fronteiras e esgotado

uma tela

para a luz atravessar.

Trad.: Nelson Santander

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Mistaken Self-Portrait as Mother of an Unmade Daughter

Do you not want to be alive?
I can’t say I don’t understand—

To bring something into the world,
a creature that will be ruled by the conflict between its “will”
and its impulses, surroundings, limitations. . . .

We choose many things, but we can’t say we choose existence.
My existence is not mine
the way my opinions are, my blue crepe pants,
my taste for cherries.

My existence belongs in some sense to my parents, and to
the universe—or God, if you believe in god.

It belongs to evolution,
the galaxy and the space beyond,
to black holes, to red dwarfs, to
hydrogen and oxygen and carbon.

My existence belongs to iron.

I understand, in a way, my body’s
reluctance
to impose existence on another—

and yet I— I almost feel you are real

and I know you, turning over the beach shell in my hands,
remembering the red sailboat shirt you wore all this summer,

with a button for the yellow sun—



With my small phone always tucked about my person

under the great lavender sky I’ll set forth
on a pilgrimage

to the bridge that way accept

the noble truth

which is to be absorbed
in the enormity of it without fail

even if the precipice
keeps leaving you voicemails—



Perhaps you don’t come
because it’s more painful
to me to have you
than not to?

: the person who first put a boat
in a bottle
and later wondered
why she’d had the impulse
to contain—



Before you have sight
the colors sway underneath your eyes
like kelp.

It is false to speak like this, but
false not to speak of you—

all the language I have for you
is ornamental—
but the sun is no ornament

go out and see it
stand under it rushing onward
let the body go borderless and drained

a scrim

for the light to come through.

Meghan O’Rourke – Erro não forçado

Outrora: aqueles longos e úmidos verões em Vermont.
Sem dinheiro e nada para fazer além de ler, nadar
no rio com homens de shorts jeans,
e depois jogar bingo fora da igreja, comemorando quando ganhávamos.
Nada parecia real para mim e tudo aquilo era muito vivo e real.
Levei muito tempo para aprender o quanto eu estava errada —
além da linha do horizonte o sol arde.
Heidegger: “Todo homem nasce como muitos homens,
e morre como um só”.
Os ossos em nós ainda cheios de tutano.
A lua lá em cima, também, um ártico lamento.
Lamento, outro uísque? Nozes?
Eu costumava achar que seguir em frente era o propósito da vida,
sempre em frente, a neve caindo, caindo espalhafatosamente.
Cometi um erro. Agora eu tenho uma testamento. Ele diz: quando eu morrer,
deixe-me continuar a viver. Uma camisa branca, pernas nuas, ossos por baixo.
Números em um quadro-negro. Uma vida pode significar uma maré de sorte,
uma fase ruim, ou um acaso.
Framboesas amarelas ao sol de julho, ameixas amargas, cortinas ao vento.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: o título do poema – “Unforced error” – é uma expressão do tênis que se refere a um erro cometido sem pressão do adversário, literalmente um erro não forçado. No poema – uma reflexão sobre a importância de aceitar a ambiguidade da vida e aprender a conviver com ela -, o eu lírico parece refletir sobre seus erros, insinuando que, de certa forma, eles não foram “forçados”, mas sim resultado de uma escolha pessoal – não obstante reconheça que nem tudo na vida pode ser controlável e que algumas coisas simplesmente acontecem por acaso ou por sorte.

Unforced Error

Once: those long wet Vermont summers.
No money, nothing to do but read books, swim
in the river with men in their jean shorts,
then play bingo outside the church, celebrating when we won.
Nothing seemed real to me and it was all very alive.
It took that long to learn how wrong I was—
over the rim of the horizon the sun burns.
Heidegger: “Every man is born as many men
and dies as a single one.”
The bones in us still marrowful.
The moon up there, too, an arctic sorrow.
I’m sorry, another Scotch? Some nuts?
I used to think pressing forward was the point of life,
endlessly forward, the snow falling, gaudily falling.
I made a mistake. Now I have a will. It says when I die
let me live. A white shirt, bare legs, bones beneath.
Numbers on a board. A life can be a lucky streak,
or a dry spell, or a happenstance.
Yellow raspberries in July sun, bitter plums, curtains in wind.