Esta é para meu pai cirurgião, finalmente,
a quem tenho profanado poema após poema
por me punir com silêncio, por se importar demais
com o grau exato de amor e respeito
que meu eu adolescente permitia gotejar até ele.
Que, em uma de suas muitas depressões, pintou
naturezas-mortas sem fim (nosso apartamento exalando
a pincéis, terebintina e vegetais podres),
pintando a si mesmo de volta à sanidade.
Meu pai sabia “Evangeline”1 de cor
e pontuava suas cartas para mim com trechos
de poesia, embora nunca notasse a minha.
Ele inventava histórias para dormir que sempre terminavam com
“e então houve uma grande explosão…” mas
não herdei seu dom para enredos. Seus pacientes
o chamavam de carismático (suas piadas de médico, os aviõezinhos
com abaixadores de língua que ele fazia para as crianças)
e meus amigos compareceram ao funeral dele, dizendo
que sempre quiseram ter um pai como o meu.
Quão bem ele escondeu a arqueologia da dor.
Sua extensa família havia desaparecido na Polônia,
embora ele nunca falasse dela, e ele nunca
deixou de sofrer pelo meu irmão natimorto. Ele queria
muito um filho, e eu era apenas uma menina.
Haverá algum lugar no pós-vida onde ele possa ler
o que escrevo sobre ele? Talvez ele reconhecesse enfim
o quanto éramos parecidos em guardar ressentimentos;
em amar e se importar demais; em, de alguma forma,
nos pintarmos, com pincel ou caneta,
de volta ao tipo de trégua frágil com que pudéssemos conviver.
Trad.: Nelson Santander
- Evangeline (Evangeline: a Tale of Acadie) é um poema épico escrito por Henry Wadsworth Longfellow, publicado pela primeira vez em 1847. A obra narra a história de uma jovem chamada Evangeline e sua busca por seu amado Gabriel, do qual foi separada durante a deportação dos acadianos do Canadá no século XVIII. É um dos trabalhos mais conhecidos de Longfellow e um importante exemplo da literatura americana do século XIX. ↩︎
Truce
This is for my surgeon father at last
whom I’ve desecrated in poem after poem
for punishing me with silence, for caring too much
about the exact degree of love and respect
my adolescent self let trickle down to him.
Who in one of his many depressions painted
still life after still life (our apartment rank
with brushes and turpentine and rotting vegetables)
painting himself back to sanity.
My father knew “Evangeline” by heart
and studded his letters to me with scraps
of poetry, though he never took note of mine.
He made up bedtime stories that always ended with
“and then there was an explosion…” but
I didn’t inherit his gift for plot. His patients
called him charismatic (his doctor jokes, the airplanes
he made out of tongue depressors for the children)
and my friends turned up at his funeral, saying
they’d always wanted a father like mine.
How well he hid the archeology of grief.
His extended family had disappeared in Poland,
though he never spoke of them, and he never
stopped grieving for my stillborn brother. He badly
wanted a son, and I was just a girl.
Is there somewhere in the afterlife where he can read
what I write about him? Maybe he’d acknowledge at last
how alike we were in holding grudges;
in loving and caring too much; in somehow
painting ourselves, with brush or pen,
back to the kind of fragile truce we could live with.