Juan Vicente Piqueras – Lázaro se recusa a ressuscitar

Um dia ouvi vozes que vinham de fora.
Finalmente!, vozes de fora, pensei – vozes de outros
que levam a luz dentro de si e a revelam,
que vem até mim do ar, e não de mim.

Vozes que ao se aproximarem, viraram sussurros.
Passos que pararam diante da minha porta.
Alguém disse: Aqui jaz, como se lesse.
Os demais ficaram em silêncio.
Uma voz me chamou: Lázaro, disse,
levanta-te e anda.
Eu a reconheci, mas fingi não ouvi-la.
Lembrei-me de Jonas. Fiquei em silêncio.
Pensei: Preferiria
não fazê-lo
, nunca sair daqui.

Conheço bem demais o mundo.
Lá fora, eu sei, espreita o mau amor,
seu mel amargo, seu engano, sua ameaça.

Levanta-te de ti. Sai de tua tumba.
Mas eu detestava os milagres.
E, além disso, tinha
demasiado apreço pela minha vida de morto.

Deixei passarem os anos. Agora espero
uma voz que me chame, que me diga
o que devo fazer, o que desejo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 14/07/2020

Lázaro se niega a resucitar

Un día oí unas voces que venían de afuera.
Por fin voces de afuera, pensé, voces de otros
que llevan la luz dentro y que la dicen,
que me llegan del aire y no de mí.

Voces que al acercarse eran susurros.
Pasos que se pararon delante de mi puerta.
Alguien dijo: Aquí yace, como si lo leyese.
Callaron los demás.
Una voz me llamó: Lázaro, dijo,
levántate y anda.
Yo la reconocí pero fingí no oírla.
Me acordé de Jonás. Me quedé quieto.
Pensé: preferiría
no hacerlo
, no salir nunca de aquí.

Conozco demasiado bien el mundo.
Allá afuera, lo sé, acecha el mal amor,
su amarga miel, su engaño, su amenaza.

Levántate de ti. Sal de tu tumba.
Pero yo detestaba los milagros.
Y además le tenía
demasiado cariño a mi vida de muerto.

Dejé pasar los años. Ahora espero
una voz que me llame, que me diga
lo que tengo que hacer, lo que deseo.

Juan Vicente Piqueras – Oração do incrédulo

O importante é rezar, não importa a quem,
que as perguntas sejam as orações
do pensamento, plantem sua semente
em nossa solidão, e que não exista paz
que, à força de insistir, seja capaz
de não existir, não tenha remédio
senão atender à voz de quem a chama.

Que deus não exista, acaso
é razão para nele não crer?

Deus é o nome da sede, a sina
e a querência desta solidão
em que ambos consistimos.

De ninguém falo com deus, de deus com ninguém.
Escrevo-o com cuidado e em minúscula.
Sou ateu e laico todos os dias.
Mas há noites amnióticas
em que minha alma reza de joelhos,
não importa a quem,
pergunta, espera, pede.

E minha alma ajoelhada é uma vela
à luz da qual, em cuja noite, escrevo.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 14/05/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Plegaria del descreído

Lo importante es rezar, no importa a quién,
que las preguntas sean las plegarias
del pensamiento, planten su semilla
en nuestra soledad, y no haya paz
que, a fuerza de insistir, sea capaz
de no existir, no tenga más remedio
que acudir a la voz de quien la llama.

Que dios no exista, ¿acaso
es razón para no creer en él?

Dios es el nombre de la sed, el sino
y la querencia de esta soledad
en que ambos consistimos.

De nadie hablo con dios, de dios con nadie.
Lo escribo con cuidado y con minúscula.
Yo soy ateo y laico cada día.
Pero hay noches amnióticas
en que mi alma reza de rodillas
no importa a quién,
pregunta, espera, pide.

Y mi alma arrodillada es una vela
a cuya luz, en cuya noche, escribo.

Juan Vicente Piqueras – Lençóis herdados

A ferida mais íntima é herdada.

O onde, o como, o quando,
a morte, o nascimento,
língua, família, deus, tempo, amor:
o decisivo do que nos acontece,
e quem somos,
não é algo desejado nem escolhido.

E passamos a vida, a despeito disso, ou por isso,
crendo que o desejo é nosso deus,
e não uma rosa rara que em nós cultiva
o acaso
que nos guia, nos cega e nos ignora.

Ninguém escolheu o mundo em que nasceu.
Nem sequer seu nome, sua memória.

O importante se impõe, não se escolhe.

E no entanto somos seres livres
para escolher entre dar e destruir
o que temos, deseja-lo, ama-lo
mais do que o que não há, lutar sem mundo,
aceitar o que ocorre e trabalhar
duro para que ocorra
o que de todo modo vai ocorrer.

Não há mais sabedoria ou remédio
que amar a vida mais que o seu sentido
e deixar-se levar pelas águas indomáveis
de estar aqui e, assim, com sede de partir,
de escolher o que há e, ai de nós,
ser quem somos, pródigos, saber
que não temos mais que o que damos.

Chamamos liberdade a esta tarefa
minuciosa e secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, estender, dobrar,
guardar no armário, entre folhas de marmelo,
lençóis herdados da avó
que por sua vez herdou da sua, um estranho enxoval
para essa solidão que me desposou.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 09/04/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Sábanas Heredadas

La más íntima herida es heredada.

El dónde, el cómo, el cuándo,
la muerte, el nacimiento,
lengua, familia, dios, época, amor:
lo decisivo de lo que nos pasa,
y los que somos,
no es algo deseado ni elegido.

Y pasamos la vida, sin embargo o por eso,
creyendo que el deseo es nuestro dios
y no una rosa rara que en nosotros cultiva
el azar
que nos guía, nos ciega y nos ignora.

Nadie ha elegido el mundo en que ha nacido.
Ni siquiera su nombre, su memoria.

Lo importante se impone, no se elige.

Y sin embargo somos seres libres
de escoger entre dar y destruir
lo que tenemos, desearlo, amarlo
más que a lo que no hay, luchar sin mundo,
aceptar lo que ocurre y trabajar
duro para que ocurra
lo que de todos modos va a ocurrir.

No hay más sabiduría ni remedio
que amar la vida más que su sentido
y dejarse llevar por las aguas salvajes
de estar aquí y así, con sed de irse,
de elegir lo que hay y, ay de nosotros,
ser quienes somos, pródigos, saber
que no tenemos más que lo que damos.

Llamamos libertad a esta tarea
minuciosa y secreta de bordar,
manchar, romper, lavar, tender, plegar,
guardar en el armario entre membrillos
sábanas heredadas de la abuela
que a su vez heredó de la suya, extraño ajuar
para esta soledad que me ha esposado.

Juan Vicente Piqueras – Visível e Invisível

(Para os amigos que ainda estão vivos,
          mas desapareceram, onde quer que estejam,
          com um abraço póstumo)

As pessoas tendem a desaparecer.

Um dia te fazem rir e no seguinte já não estão.

Um dia te ligavam todos os dias
para saber como estavas,
e agora já nem te lembras de suas vozes.

Um dia disseram sempre
e sempre acabou sendo nunca mais.

As pessoas se parecem com fantasmas.
Aparecem, seduzem, crês nelas,
dão medo, brilham e desaparecem.

Partem e, de repente, já não existem,
como se nunca tivessem existido.
Chegas a convencer-te de que as sonhou.

Eu sou uma delas.

Morrer, no nosso caso,
É uma redundância.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 24/03/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Visto y no visto

(A los amigos que siguen vivos
          pero han desaparecido, allá donde estén,
          con un abrazo póstumo.)

La gente tiende a desaparecer.

Un día te hacen reír y al siguiente no están.

Un día te llamaban cada día
para saber cómo estabas,
y ahora ya no puedes ni recordar sus voces.

Un día dijeron siempre
y siempre acabó siendo nunca más.

La gente se parece a los fantasmas.
Aparecen, seducen, crees en ellos,
dan miedo, brillan y desaparecen.

Se van y, de repente, ya no existen,
como si nunca hubieran existido.
Llegas a convencerte de que los has soñado.

Yo soy uno de ellos.

Morir, en nuestro caso,
es una redundancia.

Juan Vicente Piqueras – Ristorante dal 1882–

Ristorante dal 1882–
leio no cardápio e me ponho a pensar
que numa noite, há mais de um século,
numa noite igual a esta,
houve um grupo de amigos que aqui jantou,
como nós fazemos agora,
e riram, conversaram, passaram o sal,
mais ou menos felizes, fugazes, encantados
de estarem juntos rindo
como nós fazemos agora,
e que nenhum deles vive mais
e agora somos nós,
os que reservamos esta grande mesa
neste restaurante
que tanto apreciamos por ser antigo,
o ar fantasma do garçom,
e o cozinheiro que nunca vimos
e que tanto admiramos
por seu saber nos fazer esquecer
com sabores sagrados, requintados,
que esta poderia ser perfeitamente
nossa última ceia.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 16/02/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Ristorante dal 1882-

Ristorante dal 1882-
leo en la carta y me da por pensar
que en una noche de hace más de un siglo,
en una noche que era igual a ésta,
hubo un grupo de amigos que cenaron aquí,
como ahora nosotros,
y rieron, charlaron, se pasaron la sal,
más o menos felices, fugaces, encantados
de estar juntos riendo
como ahora nosotros,
y que ninguno de ellos vive ya
y ahora son nosotros,
los que hemos reservado esta gran mesa
en esto restaurante
del que tanto nos gusta que sea antiguo,
el aire fantasma del camarero,
y el cocinero que nunca hemos visto
y al que admiramos tanto
por su saber hacernos olvidar
con sabores piadosos, exquisitos,
que ésta podría ser perfectamente
nuestra última cena.

Juan Vicente Piqueras – História universal

Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo
se perde extravasa arde sorri.

Um homem sozinho no meio da noite
assobia para domar as bestas que o habitam.

Abraça empurra mata beija morre
se cansa de si mesmo se apaixona
se entrega à vida sabe que se finda
que o que é escoa por entre os dedos.

Um homem olha o céu as nuvens e se diz
em silêncio o quão breve
bela e fugidia foi a vida.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/02/2020

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Historia universal

Un hombre nace llora crece ríe
sufre y hace sufrir camina canta
tiene sed hambre frío miedo
se pierde se desborda arde sonríe.

Un hombre solo en medio de la noche
silba para amansar las bestias que lo habitan.

Abraza empuja mata besa muere
se cansa de sí mismo se enamora
se da a la vida sabe que se acaba
que se cae lo que es de entre sus dedos.

Un hombre mira el cielo las nubes y se dice
en silencio lo breve
lo hermosa y fugitiva que es fue la vida.

Juan Vicente Piqueras – Os Deuses Internos

Os deuses sabem mais e melhor do que nós
do que precisamos. Pedimos-lhes um filho,
e nos enviam um lobo, e não os compreendemos.

A vida diariamente os esquece.
A morte à noite os inventa.

E as doenças, como diz o sábio,
são deuses que agonizam dentro de nosso corpo,
seu último templo em ruínas,
seu refúgio sem fé. Imploram compaixão.

Os deuses não compreendem a estranha insensatez
com que decidimos acabar conosco
acabando com eles, o orgulho
com que os desprezamos.

Os deuses pedem pouco: que não os esqueçamos.

Mas é pedir demais a uma espécie escrava
que fez do esquecimento sua missão e sua vida
e sua razão de ser.
Os deuses se calam,
resignados, e morrem em silêncio
dentro de cada um de seus antigos súditos.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 23/01/2019

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Los Dioses Dentro

Los dioses saben más y mejor que nosotros
lo que nos hace falta. Les pedimos un hijo
y nos mandan un lobo, y no los comprendemos.

La vida cada día los olvida.
La muerte por la noche los inventa.

Y las enfermedades, como bien dijo el sabio,
son dioses que agonizan dentro de nuestro cuerpo,
su último templo en ruinas,
su refugio sin fe. Piden piedad.

Los dioses no comprenden la extraña insensatez
con que hemos decidido acabar con nosotros
acabando con ellos, el orgullo
con que los despreciamos.

Los dioses piden poco: que no los olvidemos.

Pero es mucho pedirle a una raza de esclavos
que han hecho del olvido su misión y su vida
y su razón de ser.
Los dioses callan,
resignados, y mueren en silencio
dentro de cada uno de sus antiguos súbditos.

Juan Vicente Piqueras – O pouco que sei

Sei que o penar não vale a pena.

Sei que a felicidade é indizível.

Sei que o amor, essa missão selvagem,
delicada, impossível, é a única forma
de estar neste mundo sem errar.

Sei que a morte resolve tudo.
Sei que a morte, não, quero dizer, a vida
é um pintassilgo em uma árvore seca
ou em uma amendoeira em flor,
cantando para a luz,
dando graças aos céus por tudo
sem o saber.

Trad.: Nelson Santander

Lo poco que sé

Sé que la pena no vale la pena.

Sé que la dicha no puede ser dicha.

Sé que el amor, esa misión salvaje,
delicada, imposible, es la única forma
de estar en este mundo sin errar.

Sé que la muerte lo resuelve todo.
Sé que la muerte, no, quiero decir la vida
es un jilguero en un árbol desnudo
o en un almendro en flor,
cantándole a la luz,
dando gracias al cielo por todo
sin saberlo.

Juan Vicente Piqueras – Véspera de Permanecer

Tudo está pronto: a mala,
as camisas, os mapas, as vãs esperanças.

Estou removendo o pó das minhas pálpebras.
Já pus na lapela
a rosa dos ventos.

Tudo está em ordem: o mar, o ar, o atlas.

Só me falta o quando,
o onde, um diário de bordo,
cartas de navegação, ventos propícios,
coragem e alguém que saiba
me amar como nem eu mesmo sei.

O navio inexistente, o olhar,
os perigos, as mãos do espanto,
o fio umbilical do horizonte
que sublinha esses versos suspensivos…

tudo está preparado: a sério, em vão.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO (com alterações na tradução): poema publicado no blog originalmente em 28/04/2018

Juan Vicente Piqueras – Víspera de Quedarse

Todo está preparado: la maleta,
las camisas, los mapas, la fatua esperanza.

Me estoy quitando el polvo de los párpados.
Me he puesto en la solapa
la rosa de los vientos.

Todo está a punto: el mar, el aire, el atlas.

Sólo me falta el cuándo,
el adónde, un cuaderno de bitácora,
cartas de marear, vientos propicios,
valor y alguien que sepa
quererme como no me quiero yo.

El barco que no existe, la mirada,
los peligros, las manos del asombro,
el hilo umbilical del horizonte
que subraya estos versos suspensivos…

Todo está preparado: en serio, en vano.

Juan Vicente Piqueras – Nomes Apagados

A mente não é um lápis para tomar notas,
É uma borracha.

Marko Vesovič

Meu pai foi pouco a pouco esquecendo a linguagem.
E começou pelos nomes. O que
seu cérebro primeiro esqueceu não foram os advérbios
e pronomes, nem os adjetivos,
como seria plausível acreditar,
nem os resíduos das preposições,
mas os substantivos.

A maçã deixou de ser uma maçã,
o copo passou a ser isso,
e aqueles que se aproximavam deixaram de ter nomes.

A morte começou seu trabalho minucioso
roubando-lhe os nomes,
apagando-os, colocando
em seu lugar um isto ou um aquilo,
um me dá, um balbucio, um aceno de mão.

O que se perde por último são os verbos,
os verbos que se movem como peixes
no sangue até que o mundo se acabe,
até que o corpo já não possa com sua alma.

Os adjetivos são afetuosos,
vestem de amor aquilo que avistam
e por isso sobrevivem.

Mas os nomes se esfumam.
E a substância dos substantivos
É nonada, névoa, colunas de fumaça.

A maçã deixa de ser maçã.
Eu deixo de ter um nome.
A palavra dor não significa nada.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 23/02/2018

Nombres Borrados

La mente no es un lápiz para tomar apuntes,
es una goma de borrar.

Marko Vesovič

Mi padre fue perdiendo poco a poco el lenguaje.
Y empezó por los nombres. Lo primero
que olvidó su cerebro no fueron los adverbios
ni los pronombres no los adjetivos,
como uno estaría tentado de creer,
ni las motas de polvo de las preposiciones,
sino los sustantivos.

La manzana dejó de ser manzana,
el vaso pasó a ser eso,
y quienes se acercaban dejaban de llamarse.

La muerte comenzó su labor minuciosa
robándole los nombres,
borrándolos, poniendo
en su lugar un esto o unaquello,
un dame, un balbuceo, un gesto de la mano.

Lo último que se pierde son los verbos,
los verbos que se mueven en la sangre
como peces hasta que acaba el mundo,
hasta que ya no puede el cuerpo con su alma.

Los adjetivos son afectuosos,
visten de amor lo que miran
y por eso perviven.

Pero los nombres se esfuman.
Y la sustancia de los sustantivos
es agua de borrajas, niebla, torres de humo.

La manzana deja de ser manzana.
Yo dejo de llamarme.
La palabra dolor no significa nada.