Quando eu tinha vinte anos, o único espírito
verdadeiramente livre de quem tinha ouvido falar era Shelley1,
Shelley, que escreveu tratados defendendo
o ateísmo, o amor livre, a emancipação
feminina, a abolição da riqueza e das classes sociais,
e poemas sobre a felicidade do amor romântico,
Shelley, que, soube mais tarde, talvez
quase tarde demais, se casou novamente com Harriet,
então grávida de seu segundo filho,
e alguns meses depois fugiu com Mary,
já grávida dele, trazendo
consigo a meia-irmã de Mary, Claire,
que muito provavelmente também se tornou sua amante,
e neste malaise à trois2, que Shelley
imaginava ser “um paraíso de exilados”,
eles viveram, juntamente com o espectro ou Harriet,
que se suicidara no Serpentine3,
e Fanny, meia-irmã de Mary,
que também se matou, talvez por amor
não correspondido a Shelley, e com os espíritos
de crianças adoradas mas muitas vezes negligenciadas,
concebidas incidentalmente
na busca por Eros — Ianthe
e Charles, de Harriet, negadas a Shelley
e entregues a pais adotivos; Clara,
de Mary, falecida com um ano; seu Willmouse,
o favorito de Shelley, morto aos três; Elena,
o bebê em Nápoles, quase certamente de
Shelley, a quem ele “adotou”
e depois deixou para trás, morta com um ano e meio;
Allegra, filha de Claire com Byron,
a quem Byron enviou para o convento
em Bagnacavallo aos quatro anos, morta aos cinco —
e naqueles dias, antes que eu soubesse
de tudo isso, pensei que seguia Shelley,
que julgava estar perseguindo um radiante desejo.
Trad.: Nelson Santander
- Trata-se do poeta e escritor inglês do período Românico, Percy Bysshe Shelley (1792-1822). Ele é considerado um dos mais importantes poetas líricos da Inglaterra e é conhecido por sua escrita revolucionária e progressista, bem como por sua defesa da liberdade política, social e individual. São citadas no poema também: a) Harriet Westbrook (1795-1816), a primeira esposa de Shelley. Eles se casaram quando ele tinha 19 e ela 16 anos de idade, mas o casamento foi infeliz e marcado por problemas pessoais e polêmicas. Harriet se separou de Shelley e posteriormente se suicidou, aos 21 anos. Seu relacionamento com Shelley e sua morte trágica são frequentemente mencionados em estudos biográficos sobre o poeta; b) Mary Shelley (1797-1851), a escritora e editora inglesa, mais conhecida como a autora do livro “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno”. Ela se casou com Shelley em 1816, e com ele teve quatro filhos. O casamento foi controverso e passou por diversos obstáculos, incluindo a separação de Percy de sua primeira mulher, a morte de seus filhos e a oposição da família de Mary ao casamento. No entanto, o relacionamento deles também foi marcado por uma forte ligação intelectual e por sua participação na cena literária e política da época; c) Claire Clairmont (1798-1879) a irmã mais nova de Mary. Ela nasceu na Inglaterra e cresceu com sua irmã e seu meio-irmão, William Godwin, filho do pai de Mary. Acredita-se que ela tenha sido amante de Shelley. Juntos, eles viajaram pela Europa, tendo relações com diversas pessoas importantes, incluindo Lord Byron, com quem teve uma filha ilegítima, Allegra Byron.
- Em tradução livre, “mal-estar a três”. Optei por manter a expressão original para preservar o esperto efeito poético e de som derivado do jogo de palavras com a expressão mènage à trois (relacionamento ou sexo a três) que, no Brasil, geralmente também não costuma ser traduzida.
- O Serpentine é um lago artificial situado no Hyde Parki, em Londres, Inglaterra.

Shelley
When I was twenty the one true
free spirit I had heard of was Shelley,
Shelley, who wrote tracts advocating
atheism, free love, the emancipation
of women, the abolition of wealth and class,
and poems on the bliss of romantic love,
Shelley, who, I learned later, perhaps
almost too late, remarried Harriet,
then pregnant with their second child,
and a few months later ran off with Mary,
already pregnant herself, bringing
with them Mary’s stepsister Claire,
who very likely also became his lover,
and in this malaise á trois, which Shelley
had imagined would be “a paradise of exiles,”
they lived, along with the spectre or Harriet,
who drowned herself in the Serpentine,
and of Mary’s half sister Fanny,
who killed herself, maybe for unrequited
love of Shelley, and with the spirits
of adored but often neglected
children conceived incidentally
in the pursuit of Eros—Harriet’s
Ianthe and Charles, denied to Shelley
and consigned to foster parents; Mary’s
Clara, dead at one; her Willmouse,
Shelley’s favorite, dead at three; Elena,
the baby in Naples, almost surely
Shelley’s own, whom he “adopted”
and then left behind, dead at one and a half;
Allegra, Claire’s daughter by Byron,
whom Byron sent off to the convent
at Bagnacavallo at four, dead at five—
and in those days, before I knew
any of this, I thought I followed Shelley,
who thought he was following radiant desire.