A vida é puro ruído entre dois silêncios abismais. Silêncio antes de nascer, silêncio após a morte.
Nelson Santander
Com os anos a morte vai-se tornando familiar. Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela. As pessoas de quem gostamos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro. Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita-se. A amplitude do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado. Se abrirmos a porta da rua o que se encontra é um muro. No nosso sangue existem mais ausências do que glóbulos.
Tento recordar-me: a casa dos meus avós, a Praia das Maçãs, episódios antigos, as horas gordas do relógio de parede ecoando na sala.
Deve ser tudo normal, certamente é tudo normal e não entendo. Venderam a quinta, o mundo encheu-se de pessoa. Fomos tão poucos, dantes!
Escondia-me num canteiro a fumar, as nuvens passavam sobre as copas. As flores nasciam, perfeitas, dos dedos do senhor José. Esqueceste-te das estátuas com o nome das estações, do roseiral? Do mês de junho em que tudo era verde, nítido, claro? De trazeres pilhas de livros para o jardim? Que Antonio eras tu? Dos versinhos que escrevias? De ires ser escritor? Tão fácil ser escritor, não é verdade? Tão fácil respirar.
Do “Segundo Livro de Crônicas”
Talvez o melhor capítulo final da literatura brasileira:
Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do Céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
(Leia também: https://singularidadepoetica.art/2023/06/01/nelson-santander-dois-capitulos-perdidos-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-2/)
“Olhei para o céu, através da fumaça espessa com gordura humana, e Deus não estava lá. A fria, sufocante escuridão persiste para sempre e estamos sozinhos. Vivemos nossas vidas, por falta de algo melhor para fazer. Inventamos um motivo depois. Nascemos do esquecimento; temos filhos, destinados ao inferno como nós, caímos no esquecimento. Não há nada mais.
A existência é aleatória. Não há um padrão, exceto aquele que imaginamos após contemplá-la por tempo demais. Nenhum significado, exceto aquele que escolhemos impor. Este mundo sem direção não é moldado por vagas forças metafísicas. Não é Deus quem mata as crianças. Não é a sorte que as esquarteja ou o destino que as dá de comer aos cães. Somos nós. Só nós. As ruas fediam com o fogo. O vazio respirava pesado em meu coração, vertendo minhas ilusões em gelo, despedaçando-as. Renasci nesse momento, livre para rabiscar meu próprio padrão neste mundo moralmente vazio.”
in Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons
“Todas as fotos são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por cortar uma fatia deste momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo (…). A fotografia é simultaneamente uma pseudo-presença e um sinal de ausência.”
Susan Sontag,
em “Sobre Fotografia”