Cassiano Ricardo – O Hipopótamo

Não adianta o rio lhe ofertar um espelho,
se ele não sabe de quem é a imagem
que o espelho reflete. Se ele pensa que a sua
imagem n’água é a de um outro hipopótamo.

A paisagem por volta tem algo de bíblico
pois é a água da criação, ainda viva,
como no primeiro dia. As árvores folhudas
guardam segredos a ninguém, jamais, contados.

São árvores virgens fotograficamente.
Milhões de borboletas voam em redor
da estrela diurna, as flores são douradas bocas
de uma lúbrica, gigantesca primavera.

Um céu vestido de azul-rei (mal brilha a alva),
completa a inenarrável beleza das coisas.
E eis que, foto-potamo-gráfico, o hipopótamo
emerge dágua e vem, rombudo, estragar tudo.

Tudo parecia em ordem, o céu pernalta,
as aves egípcias, os troncos que simulam
primitivas colunas de algum templo, a lisa
epiderme do rio enrolado na cauda.

Sim, o rio e as demais serpentes que aí moram
dormiam tranquilos, quando a enorme figura
do hipopótamo perturbou tudo e agitou
as cores, e inda fez as borboletas voarem,

elétricas, e as garças gritarem no abismo.
Porém ele, na glória de sua inconsciência,
nem sabe que desfez a alegria das coisas.
Pensa que tudo é festa e a natureza o aplaude.

Até que volta a calma e se refaz o espelho
maravilhoso. Mas, que adianta o espelho
se o que ele quer é a lama? se ele pensa que a sua
imagem n’água é de um outro hipopótamo?

Cassiano Ricardo – O Cacto

This is cactus land.
Here the stone images
are raised…
T. S. ELIOT

Vamos, todos, brincar de cacto
na areia da nossa tristeza.
Uma folha sobre outra,
em caminho do céu intacto.

Uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma folha sobre outra,
formaremos um grande cacto.

De cada braço, já no espaço,
nascerá mais um braço, e deste
outros braços, qual ramalhete
de flores para um só abraço.

Filhos da pedra e do pó,
fique aqui embaixo o nosso orgulho,
pisado sobre o pedregulho.
Formaremos, num corpo só,

(uma folha sobre outra,
uma folha sobre outra,
um braço a nascer de outro braço)
a nossa escada de Jacó.

Pra que torre de Babel
ou o Empire State, compacto,
se, uns nos ombros dos outros,
chegaremos ao céu, num cacto?

Uma folha sobre outra
e já uma árvore de feridas
por entre os anjos de azulejo
e as borboletas repetidas.

Que fique aqui embaixo a terra;
lá de cima nós tiraremos
uma grande fotografia
do seu rosto de ouro e prata.

Pra provar a Deus que a terra,
numa fotografia exata,
não é redonda, mas chata;
não é redonda, mas chata.

Pra provar, por B mais H,
que o homem, animal suicida,
já sabe fabricar estrelas…
Se é que Deus disto duvida.

Que iríamos fabricar luas
(se não fora, para Seu gáudio,
o espião nos ter furtado a fórmula)
mais bonitas do que as Suas.

Vamos, todos, brincar de cacto,
uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma foha sobre outra.

Vamos subir, de folha em folha,
mais alto do que vai o avião.
Lá onde os anjos jogam pedras
no cão da constelação.

Que outros usem avião a jato
pra uma viagem em linha reta;
nós, filhos da planície abjeta,
subiremos ao céu num cacto.

Uns nos obros dos outros,
injustiças sobre injustiças,
formaremos um verde pacto…
Vamos, todos, brincar de cacto.

Vamos, todos, brincar de cacto.

Cassiano Ricardo – Os Futuricidas

Cassiano Ricardo – 2ª Aula na Jaula

Cassiano Ricardo – Vociferação

  I

 Homem
 em Adão.
 Homem
em Cristo.
 Homem
 em globo.

  II

como salvar
  Deus?
nós faremos
  d’Ele
novamente o
 Autor de
 tudo:
do peixe, da
 ave, da
  cobra,
 da maçã,
do sapo, do
 rouxinol
 do sol.

 O
obrigaremos
  contudo
a suar san-
gue conosco,
  na guerra,
  na fome
  na peste
  na
  terra suja;

a engolir
    fogo
  como nós,
   no circo
  queimando
    boca
e estômago.

  Um Deus
que nos
   socorra.
Que não fuja;
  que morra
em nós.
   Quando
  qualquer
   de nós
  morra.

À semelhança
de qualquer
   de nós.

Deus mal-me-
  quer
Deus bem-me-
  quer

)horizontal
 vertical(

 no leito
na forca
  ou num
batiscafo.

  III

 Um Deus
de cabeça
 pra baixo

  Morcego
pendurado
  no teto
da igreja.

 Um Deus
antiazul.

 

Cassiano Ricardo – Gramática Visual de Cristo

1

“Cristo, terá sido
em vão teu sacri-
fício?
vê, o sangue escorre,
acre, no massacre
das ruas.”

Cristo espalmou a
mão
cobrindo os olhos
horizontalmente
pra não ver
a destruição
do ser

2

“Cristo,
vê os pequeninos
que tanto amaste
agora garotos
nos becos
como ratos dentro
de sapatos
rotos.”

Cristo escondeu,
de novo, a face,
como se chorasse
não querendo
que o vissem
chorar.

Gramática visual
a de Cristo;
“Não ver
é não ser visto.“

3

“Cristo,
ouve a imprecação
que sai da boca
dos famintos,
dos nus,
caídos na sarjeta
fria por onde
ninguém passa
mesmo por graça.”

Cristo se mantém
mudo
cotovelo ossudo
posto
em ângulo agudo
ocultando as rugas
do rosto.

Mudo, dizia tudo
cobrindo o olhar
verde
(Ver – ser cúmplice
Não ver – igual
a não ser visto.
Gramática visual
de Cristo)

4

Como se dissesse:
“Pudesse, arranca-
ria os olhos pelo
vídeo
(como Édipo)
à hora dos robôs
regougando
invadirem a furna-
urna-noturna
prá morte dupla:
(o suicídio/
deicídio)

“Que restará
do ‘amai-vos
uns aos outros’?
Só os laivos nos
lábios
dos que se beijam
hoje
de coração trocado.”

“Desço a persiana
da pálpebra
mas fica incendia-
do em mim o olho
d’alva interior
vendo tudo,”

“Deus e o Homem
comidos pelo fogo
de fulgorídeo
no mesmo ato
exato,
execrando.”

5

Nisto Cristo
parou de falar
vendando o rosto
e a barba
já hirsuta
braço em ângulo
agudo
sobre o olhar
verde.

Já fora do ar.

Cassiano Ricardo – Etc.

Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
(Fernando Pessoa)

 

Para que o mundo exista, existimos.
Pois seja.

Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.

O que é ignorado não existe.
O que é eterno também não existe.
A eternidade é uma forma de não existência.

Ao menos para nós o mundo não existiria
se não fosse existirmos.
Para mim, por exemplo, o mundo existe
porque ora estou alegre, ora sou triste.
Mas no fim vem a morte e… nos leva.
O seu poder é bem maior que o nosso;
porque é o da treva, e o nosso, esse não passa
de só dar existência ao que claramente já existe,
ao que só existe em razão dos nossos frágeis sentidos.
Que podemos ouvir, olhar, tocar, etc.

Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim… que foi? Um homem suicidou-se.
O dedo lhe está preso, ainda, no gatilho,
rígido como uma hora certa. Sem nenhum
arrependimento.

Muita gente reunida em redor do seu corpo.
Muitos rostos examinando o seu rosto.

Mas ele suicidou-se, apenas? Não é, isso, bem menos
do que ele fez?

Ele desceu violentamente a cortina da noite
sobre nossos rostos, que só continuam vivos
para nós.

O seu corpo ali está, presente a todos,
mas nós — que somos todos — já estamos ausentes.

Ele nos suprimiu.
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?

Ele desceu violentamente a cortina da noite.
Jogou ao chão a sua própria estátua.
Não aceitou a explicação da vida.
Fez qualquer coisa de mais belo e mais monstruoso.
Pois nem Deus (e Deus é Deus)
conseguirá, jamais, fazer o que ele fez: suicidar-se.

Ah, ele conserva ainda
na mão a arma com que apagou o sol e as estrelas.

Como dizer-se apenas: suicidou-se?

Agora virá a mulher e essa mulher o abraçará loucamente.
A esposa, e um anjo, a filha, lhe dirão palavras estranguladas.

Virá a ambulância. Alguém já chamou a polícia,
e haverá autópsia, etc.

Cassiano Ricardo – Missa de Corpo Presente

O seu corpo tão alvo, o seu corpo presente
é a coisa mais ausente, é uma ilusão
pensar que a rosa ou o fruto já colhidos
ainda soluçam desprendidos da haste.

O seu corpo é já um fruto neutro e frio.
Não obstante jovem, tem a mesma idade
de todos os que morreram antes, ou mesmo
na mais remota origem babilônica.

Todos os mortos tem a mesma idade.
Que me adiante chorar sobre a argila ainda tenra,
que esfriou não faz, senão, apenas um minuto?
Todo cadáver é uma coisa já longínqua.

Embora tenha esfriado apenas há um minuto
é algo que regressou súbita e automaticamente
à noite que existiu antes de Deus.
Todo cadáver é anterior ao sol e a Deus.

Mas por que sofro tanto? Não será justamente
por estar sendo vista, ser um corpo presente
aquela que voltou ao nunca ter nascido
e me deixou ausente, eternamente?

Aquela que voltou à fonte, ao horizonte
de quando antes de tudo e me deixou ausente
para que eu vá matando em mim sua presença
até morrê-la quanto o dia morre a estrela?

Se eu fosse Júpiter me converteria
em chuva de ouro sobre sua imagem.
Se eu fosse Glauco me transformaria
num peixe azul no índico da imemória.

De “João Torto e a Fábula”, nova edição, 1963, Livraria José Olympio Editora

Cassiano Ricardo – O Festim Terrestre

O olho de Polifemo
já depois de arrancado
ao gigante bêbado,
foi posto,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
sobre a alva mesa.

Tinha ainda a pupila
acesa.

E os doze convivas,
— doze fomes irmãs, —
todos ao mesmo tempo,
simultâneos como
figuras de uma orquestra,
vieram, graves, comer
o olho
de Polifemo,
em dourado molho.

Eram só matéria
exigindo a matéria.
Bocas rubras de vinho
num banquete com algo
de mágico
e de antropofágico.
Ah, era tanta a fome
que nem perceberam,
um minuto após,
pousar-lhes sobre o ombro
a mão de um anjo torto
que os fez diferentes
do que eram,
no banquete feroz.

De modo
que se olhassem pra dentro
do seu próprio ser,
não se conheceriam:
“quem são?”
de tão desfigurados
pela deformação.

E ao mesmo tempo iguais
uns aos outros,
era como se olhassem
num espelho morto.
Tão iguais de rosto
que já não poderiam
distinguir quais deles
eram eles mesmos
(se todos
tinham um só rosto).

Todos deformados
pela angústia, desnudos,
reduzidos a ângulos
agudos,
no instante decomposto
em que a fome era o fruto
do absoluto.

Fruto do chão bruto.

Fruto que tinha o gosto
do suor e da lágrima
que a língua bebe ao rosto.

Mas, o olho redondo,
comido alegremente,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
em campo de prata
(Pã ergue um brinde a Ulisses)
como comer se come
numa mesa de doidos,
continuou olhando
a todos.
Como se olhasse um bando
de doidos.

Não lhes matou a fome.

Então, na manhã clara,
como enormes figuras,
iguais e repetidas
de um baralho humano,
os doze convivas
repentinos e feéricos,
todos ao mesmo tempo,
automaticamente,
comeram — verdes potros —
uns os olhos dos outros.

Cassiano Ricardo – Evocação dos Mortos

Um dia conversarei com os meus mortos.
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão,
me contarão (sua) a minha história.
Não obstante a tua gélida memória.
Ah, os defuntos que ficaram atrás de mim fotograficamente,
agora juntos.
Não acredito que aquele menino fui eu…
Nem acreditarei que um dia fui menino, a não ser
[que a minha dúvida se desfaça numa lágrima de identidade.

Um dia conversarei com os meus mortos.
Com todos os que fui sucessivos.
Tão mortos que não os sinto mais, nem reconheço
senão por uma cicatriz.
Mas todos presos ao meu ainda estar vivo.
Como uma estranha multidão de mim mesmo.
Como figuras trágicas de uma comitiva obrigatória.
Como comparsas de uma mesma cena continuada
que os faz um só quando uns atrás dos outros,
cinematicamente.

Cemitério de plena e rútila perspectiva
por onde espio o outro lado das coisas.
Por onde me vejo, e vejo as coisas que conversam
atrás de mim, que estou defronte do teu horizonte.

Há uma hora em que o teu refúgio é o meu subterfúgio.
O meu desesperado subterfúgio.
Não só a certeza límpida que me dás de que ninguém me agredirá pelas costas.

A dor que sinto é de hoje
não as que senti ontem e morreram comigo.
O meu lamento de ontem é histórico e desbotado.
Um pássaro empalhado, ou um couro curtido.
Uma dor que passou cristaliza-se, por arte
da natureza, passou a ser um simples material para espelho.
Uma fotografia não sente a mais mínima dor.
Mesmo que doa em nós quando mais dói…
Os meus mortos já se esqueceram destas coisas.
Prova de que estão mortos e pra sempre enterrados
No teu cemitério que só é mais frio do que os outros
por ser de cristal.

(De cristal como é o copo onde a água é mais pura
porque adquire uma cintilação de estrela)

Abismo de onde vim, deixando atrás de mim
os outros que virão conversar comigo, mas de frente,
na tua inversão prodigiosa.

Não me será preciso o ritual que Ulisses observou
quando para invocar as cabeças dos mortos
degolou suas rezes e fez o sangue rubro escorrer numa cova
desembainhando a espada para conter tantas sombras
que lhe queriam falar a um só tempo.

(O primeiro foi Elpenor que ainda não tinha sido sepultado)
Antes, diante do teu cemitério,
não sou mais que Elpenor – um corpo por chorar e insepulto.

Dia virá em que a ciência cristalizará certo pranto para
[a fabricação de um espelho.
Então o parentesco lágrima com espelho
terá sua explicação.

Os mortos me trazem, cada um (sua) a cabeça,
que foi minha, na mão.
A multidão está reunida agora, como peixes
no fundo de uma primavera sub-marinha.