Garous Abdolmalekian – Molde

Molde

Teu vestido agitando ao vento.
Esta
é a única bandeira que adoro.

Trad.: Nelson Santander, a partir da versão em inglês vertida do persa por Idra Novey and Ahmad Nadalizadeh

Pattern

Your dress waving in the wind.
This
is the only flag I love.

trans. Idra Novey and Ahmad Nadalizadeh

Jorge Luis Borges – Everness

Só uma coisa há. É o esquecimento.
Deus, que salva o metal, salva a escória
E cifra na sua profética memória
as luas que serão e que hão sido.

Já tudo está. Os mil reflexos,
Que entre os dois crepúsculos do dia
Teu rosto foi deixando nos espelhos
e os que irá deixando ainda.

E tudo é uma parte do diverso
Cristal dessa memória, o universo;
Não têm fim seus árduos corredores

E as portas se fecham a teu passo,
Só do outro lado do ocaso
Verás os Arquétipos e Esplendores.

Trad.: Héctor Zanetti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016

Everness

Sólo una cosa no hay. Es el olvido.
Dios, que salva el metal, salva la escoria
Y cifra en su profética memoria
Las lunas que serán y que han sido.

Ya todo está. Los miles de reflejos,
Que entre los dos crepúsculos del día
Tu rostro fue dejando en los espejos
Y los que irá dejando todavía.

Y todo es una parte del diverso
Cristal de esa memoria, el universo;
No tienen fin sus arduos corredores

Y las puertas se cierran a tu paso,
Sólo del otro lado del ocaso
Verás los Arquetipos y Esplendores.

Hayan Charara — Mais velho

O solo, úmido de chuva, é mais velho que a grama que brota.
E, sombreando as pontas verdes do relvado, os carvalhos
de galhos frágeis que nunca caem
sobre o carteiro cruzando o gramado, são mais velhos
que a casa, e a casa,
em um bairro que já foi floresta, é mais velha que as crianças
que se recusam a comer vagem —
elas adoram doces, mas menos do que amam a mãe.
A menina é mais velha que o menino,
o menino é mais velho que o gato,
que não sabe dizer o que sabe
sobre idade, odeia os cactos no peitoril da janela —
conquistador noturno, ele arranha e arranha,
e quebra, depois marcha
em direção ao quarto, atravessa meu ventre e se detém
sobre meu peito — seu hálito quente e nariz úmido
jovens como a lua nova, pouco mais que crescente esta noite,
vinte e dois anos após sua morte. Oh,
mãe, sou mais velho agora do que a senhora jamais seria.

Trad.: Nelson Santander

Older

The dirt, damp with rain, is older than the sprouting grass.
And shadowing the grassy spikes, the oak trees
with brittle limbs that never fall
on the mailman walking across the lawn are older
than the house, and the house,
in a neighborhood once a forest, is older than the boy and girl
refusing to eat green beans—
they love candy, but less than they love their mother.
The girl is older than the boy,
the boy older than the cat, and the cat,
which cannot communicate what it knows
about age, hates the cactuses on the windowsill—
a conqueror in the night, he paws and paws,
and breaks, then marches
into the bedroom, across my stomach, and halts
on my chest—his warm breath and wet nose
young as the new moon, barely a crescent tonight,
twenty-two years after you died. O,
mother, I am older now than you ever would be.

Jorge Luis Borges – Cosmogonia

Nem treva nem caos. A treva
Requer olhos que vêem, como o som.
E o silêncio requer o ouvido,
O espelho, a forma que o povoa.
Nem o espaço nem o tempo. Nem sequer
Uma divindade que premedita
O silêncio anterior à primeira
Noite do tempo, que será infinita.
O grande rio de Heráclito o Escuro
Seu irrevogável curso não há empreendido,
Que do passado flui para o futuro,
Que do esquecimento flui para o esquecimento.
Algo que já padece. Algo que implora.
Depois a história universal. Agora.

Trad.: Héctor Zanetti

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016

Cosmogonia

Ni tiniebla ni caos. La tiniebla
Requiere ojos que ven, como el sonido
Y el silencio requieren el oído,
Y el espejo, la forma que lo puebla.
Ni el espacio ni el tiempo. Ni siquiera
Una divinidad que premedita
El silencio anterior a la primera
Noche del tiempo, que será infinita.
El gran río de Heráclito el Oscuro
Su irrevocable curso no ha emprendido,
Que del pasado fluye hacia el futuro,
Que del olvido fluye hacia el olvido.
Algo que ya padece. Algo que implora.
Después la historia universal. Ahora.

Kathy Fagan – Minha mãe

Minha mãe

não é um fantasma. Ela não me visita nem me assombra.
Gostaria de sonhar com ela, mas não sonho.

Em vez disso, ela me deixa coisas: um colar de contas
verdes de Mardi Gras no estacionamento,

uma moeda Mizpah dourada, uma mandala brilhante
que se perdeu de seu brinco. Coisas que uma pega pegaria

eu pego, sabendo inquestionavelmente
que são presentes dela; a alquimia, toda minha,

como se fôssemos meninas no shopping,
nos cobrindo de bijuterias baratas,

dizendo: Isso ficou lindo em você!
Nossos rostos em tão radiante harmonia

entre os metais espelhados que eu
já não sei qual de nós está viva.

Trad.: Nelson Santander

My Mother

is not a ghost. She doesn’t visit or haunt me.
I’d like to dream of her but do not.

Instead she leaves me things: a string of green
Mardi Gras beads in the parking lot,

a goldtone Mizpah coin, a shiny mandala
freed of its earring. Things a magpie might pick

up, I pick up, knowing unquestionably
they are gifts from her, the alchemy all mine,

as if we were girls together at the mall,
festooning ourselves in jewelry, the kind that’s 2

for 5, saying, That looks so good on you!
Our faces in such bright agreement

among the reflective metals, I
can no longer tell which one of us is alive.

Cassiano Ricardo – As Andorinhas de Antonio Nobre

—Nos
—fios
—ten
sos

—da
—pauta
—de me-
tal

—as
— an/
do/
ri/
nhas
—gri-
tam

—por
—fal/
ta/
—de u-
ma
—cl’a-
ve
—de
—sol

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016

Ellen Bryant Voigt – Prática

Chorar sem querer, acordar
à noite só para chorar, esperar
que o ponteiro do relógio
trema outra vez, empurrando
o dia dormente adiante —

será isso apenas prática?
Alguns creem no céu,
outros no descanso. Nós flutuaremos,
você disse. Depois
flutuaremos entre dois mundos —

cinco besouros de bronze
encaixados como colheres em uma
peônia, inebriados de desejo:
se eu voltasse como pássaro,
lembraria disso —

até que todos que amamos
estejam a salvo — foi o que você disse.

Trad.: Nelson Santander

Practice

To weep unbidden, to wake
at night in order to weep, to wait
for the whisker on the face of the clock
to twitch again, moving
the dumb day forward—

is this merely practice?
Some believe in heaven,
some in rest. We’ll float,
you said. Afterward
we’ll float between two worlds—

five bronze beetles
stacked like spoons in one
peony blossom, drugged by lust:
if I came back as a bird
I’d remember that—

until everyone we love
is safe is what you said.

Cassiano Ricardo – Dedicatória

I

Ao claro tempo, ao tempo
das metamorfoses,
não havia horizonte
na alegria do ser
e do acontecer.

Havia a graça aérea
com que as coisas brincavam
de ser e de não ser,
no jardim da matéria.

Hoje uma coisa passa
a ser outra coisa;
nascem anjos sem asa
dentro do dicionário;
um monstro, um dragão
em lugar de um canário.
Não pela alegria
da metamorfose.
Mas por deformação
de cada ser, ou flor,
em sua geometria.

II

Não te levarei,
ó azul, ó gentil aeromoça,
ao laranjal florido,
ao palácio do rei.

Não irás ver comigo
as Metamorfoses
de Ovídio e de outrora,
mas a vida que é o rosto
das mil e uma feições;
mas as deformações,
divindades de agora.

Não irás ver Júpiter
mudado em cisne, em t’ouro.
Nem Aretusa em fonte;
nem a deusa que um dia
passou a ser a ave
de uma constelação.

Irás ver comigo,
num espelho torto,
entre o número e a rosa
da vida numerosa,
o mundo onde ora estão
as tristes outras coisas
que hoje as coisas são.

(Que é a esperança? uma espera
no outro lado da esfera?
Ou um dado de fogo
numa mesa de jogo?)

III
E até que chegue o dia
das novas hamadríadas
cantarei os lunáticos
ao invés dos lusídadas.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016

Gösta Ågren – Alguns Poemas

O Segredo da Morte1

É um equívoco que se estabeleça
que só depois da vida a morte começa.
Quando a vida cessa
também a morte cessa.

Não há jornada

A vida não é uma linha reta
entre esses poços cegos –
nascimento e morte; é
um momento à beira deles
antes que a eternidade se
reúna novamente.

Mas

Envelhecer não é
deixar algo para trás, mas
girar sob o pilar de nuvem
do presente e contemplar
a própria vida, um livro
ainda não lido. Tudo
o que ele contém
ainda está por vir!


De uma Conversa Definitiva

Meu amigo, é tão inútil
ter medo. Quando a morte chega,
ela é suave como a solitude2.
Uma tempestade de pássaros do norte
se move entre passado e futuro
rumo ao vento do sul, um anjo
caloroso e invisível que os acolhe
sem exigência ou vanglória.

Ainda Estou Aqui

Ela vinha, através do domingo
imóvel da velhice.
Lenço na cabeça, vestido longo,
ela vinha, uma grande ave
vestida. Ela se perguntava,
sob a luz do sol em frente ao galpão,
como deveria arranjar as coisas
para poder morrer. Eu devo
escrever sobre isso. Pois acontece
em toda parte, e não há
perguntas a responder. Mas perguntar
já é compreender. Apenas
as questões jamais formuladas
exigem respostas. Lembro-me
que suas mãos já não eram
parte dela. Ociosas,
jaziam em seu colo. Ela via
com os olhos apenas escuridão
e luz. Silêncio. Pensei:
o silêncio se arrasta
por seu corpo. Logo
alcançará o coração. Logo
estarei sozinho
aqui.

Lembrar

Lembrar é
deixar o futuro
intervir nos eventos.
Tudo está definido. Até
o caos ganha um nome. Ninguém
oferece resistência. O destino
devasta em vão.

Mãe, em um Dia de Outono

Uma tempestade ruge, confinada
em suas estreitas horas. Vermelho-sangue,
a palma da mão repousa sobre a floresta
de lanças. Sua morte foi
grande demais. O que aconteceu
apenas aconteceu. Era manhã
ou entardecer. Os pássaros tateavam
na superfície do céu. O verdadeiramente
grande não acontece; ele é.
Perto de minha mão que escreve,
estou sentado agora, paralisado
de saudade, mas sem tristeza.
Ela morreu, apenas morreu.
E a tempestade amaina;
está livre novamente.

Cinco Quilômetros

Tenho nove anos, e corro eternamente
para casa através da floresta. Suas
altas e escuras criaturas me
esperam. Faz trinta graus
abaixo de zero. Lá no alto,
as estrelas começam
a arder. Meu corpo se torna rígido
lentamente. Ele me envolve
como algo alheio. Um sapato
se rompe. Caminho no fogo
do frio; rezo pelo que
há de vir, mas todo tremor
congela em ferro quando aquele
imenso peito se abre
para o nada. Chego em casa
por fim, mas já é
tarde demais.

Ao Entardecer

Serei esquecido,
ele pensa. O esquecimento é
uma mãe abissal. Ninguém
o alcançará ali; ninguém
o esquecerá mais.

Trad.: Nelson Santander, a partir de versão em inglês vertida do sueco finlandês por David McDuff
  1. Gösta Ågren (1936-2020) foi um dos mais importantes poetas da Finlândia, escrevendo em sueco, idioma da minoria finlandesa-sueca. Nascido em Österbotten, na costa oeste finlandesa, atuou como escritor, crítico literário e editor. Sua poesia se caracteriza por uma profunda reflexão filosófica expressa em linguagem clara e concisa. Temas como tempo, morte, memória e existência são abordados através de imagens da natureza e da vida rural, criando textos de aparente simplicidade que revelam grande profundidade. Premiado com o prestigioso Prêmio Finlandia (1988) e o Prêmio Nórdico da Academia Sueca (2013), considerado um “pequeno Nobel”, Ågren produziu uma obra que dialoga com tradições existencialistas e a filosofia oriental, particularmente o budismo zen, embora sempre enraizada na experiência nórdica. Sua poesia econômica nas palavras, mas generosa nas ideias, explora paradoxos da condição humana: presença e ausência, permanência e impermanência, memória e esquecimento. Os poemas frequentemente partem de observações concretas do cotidiano para expandir-se em reflexões universais sobre o sentido da existência. ↩︎
  2. Optei por manter o termo “solitude” em vez de “solidão” para preservar a nuance do poema. No original sueco, Ågren usa a palavra “ensamhet” – um termo que pode designar tanto estados positivos quanto negativos de estar só. O tradutor para o inglês escolheu “solitude” (e não “loneliness”), interpretando que o poeta se referia a um estado sereno de isolamento. Esta distinção é crucial no contexto do poema, onde a morte é comparada a um estado de recolhimento tranquilo. Em português, “solitude” – embora menos comum – carrega essa mesma conotação de isolamento voluntário e contemplativo, diferentemente de “solidão”, que geralmente sugere desolação ou abandono. ↩︎
Death’s Secret

It is not true
that death begins after life.
When life stops
death also stops.

There is no Journey

Life is not a straight line
between those blind wells
birth and death; it is
a moment by their verge
before eternity grows
together again.


But to

To grow old is not
to leave anything, but to
turn round under the present's
pillar of cloud and look out
across one's life, a book
still unread. All
that it contains
is yet to come!


From a Final Conversation

My friend, it is so pointless
to be afraid. When death comes,
it is mild as solitude.
A storm of birds from the north
moves between past and future
into the south wind, a warm,
invisible angel who receives them
without demand or victory.

Standing Here

Here she came, through the motion­
less Sunday of old age.
In headscarf and long dress
she came, a tall bird
of clothes. She wondered in
the sunshine outside the woodshed
how she should arrange things
so she could die. I must
write about this. For it happens
everywhere, and there are no
questions to answer. But to
ask is already insight. Only
those questions that are never asked
require answers. I remember
that her hands were no longer
part of her. Idle
they lay in her lap. She saw
with her eyes only darkness
and light. It was silent. I
thought: the silence is creeping
through her body. Soon
it will reach the heart. Soon
I will be alone
here.

To Remember

To remember is
to let the future
intervene in events.
Everything is settled. Even
chaos gets a name. No one
offers any resistance. Fate
wreaks havoc in vain.

Mother, One Autumn Day

A storm rages, locked up
in its narrow hours. Blood­red
the palm of the hand rests above the forest
of spears. Her death was
too great. What happened
only happened. It was morning
or evening. The birds fumbled
on the surface of the sky. The very
great does not happen; it is.
Near my writing hand
I sit now, motionless
with yearning, but without sorrow.
She died, only died.
And the storm abates;
it is free again.

Five Kilometres

Nine years old I run forever
home through the forest. Its
tall, dark creatures are waiting
for me. It is thirty
below zero. In the face
up there stars are beginning
to flame. My body grows slowly
severe. It surrounds me
like something else. A shoe
bursts. I walk in the fire
of the cold; I pray to what
will happen, but all shivering
freezes to iron when that
immense breast opens
on nothingness. I came home
at last, but it was
too late.

At Dusk

I will be forgotten,
he thinks. Oblivion is
a deep mother. No one
will touch you there; no one
will forget you any more.

Cassiano Ricardo – O hipopótamo

Não adianta o rio lhe ofertar um espelho,
se ele não sabe de quem é a imagem
que o espelho reflete. Se ele pensa que a sua
imagem n’água é a de um outro hipopótamo.

A paisagem por volta tem algo de bíblico
pois é a água da criação, ainda viva,
como no primeiro dia. As árvores folhudas
guardam segredos a ninguém, jamais, contados.

São árvores virgens fotograficamente.
Milhões de borboletas voam em redor
da estrela diurna, as flores são douradas bocas
de uma lúbrica, gigantesca primavera.

Um céu vestido de azul-rei (mal brilha a alva),
completa a inenarrável beleza das coisas.
E eis que, foto-potamo-gráfico, o hipopótamo
emerge dágua e vem, rombudo, estragar tudo.

Tudo parecia em ordem, o céu pernalta,
as aves egípcias, os troncos que simulam
primitivas colunas de algum templo, a lisa
epiderme do rio enrolado na cauda.

Sim, o rio e as demais serpentes que aí moram
dormiam tranquilos, quando a enorme figura
do hipopótamo perturbou tudo e agitou
as cores, e inda fez as borboletas voarem,

elétricas, e as garças gritarem no abismo.
Porém ele, na glória de sua inconsciência,
nem sabe que desfez a alegria das coisas.
Pensa que tudo é festa e a natureza o aplaude.

Até que volta a calma e se refaz o espelho
maravilhoso. Mas, que adianta o espelho
se o que ele quer é a lama? se ele pensa que a sua
imagem n’água é de um outro hipopótamo?

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016