Linda Pastan – O Ordinário

Pode acontecer em um dia
de clima normal —
as flores de sempre reunidas,
ou folhas caídas
desgrenhando o gramado.
Você pode estar alimentando o cachorro,
ou tomando uma xícara de chá,
e então: o telegrama;
ou o telefonema;
ou a dor aguda percorrendo
todo o comprimento do seu
braço esquerdo, ou do dele.
E enquanto sua vida é mudada
para um trilho diferente
(a paisagem
através de janelas encardidas
é quase a mesma, embora
totalmente diferente) você se pergunta
por que o vento não
ruge e sopra como faz
tão convincentemente
em Lear, por exemplo.
É a patética falácia
que você almeja — as rosas
reduzidas a seus espinhos,
as folhas caídas,
itens para uma contagem de corpos.
E enquanto você se deita na cama
como uma efígie de si mesma,
é o ordinário
que vem salva-lo —
a xícara de chá de porcelana esperando
para ser lavada, o velhos cães
ganindo para sair.

Trad.: Nelson Santander

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The Ordinary

It may happen on a day
of ordinary weather—
the usual assembled flowers,
or fallen leaves
disheveling the grass.
You may be feeding the dog,
or sipping a cup of tea,
and then: the telegram;
or the phone call;
or the sharp pain traveling
the length of your
left arm, or his.
And as your life is switched
to a different track
(the landscape
through grimy windows
almost the same though
entirely different) you wonder
why the wind doesn’t
rage and blow as it does
so convincingly
in Lear, for instance.
It is pathetic fallacy
you long for—the roses
nothing but their thorns,
the downed leaves
subjects for a body count.
And as you lie in bed
like an effigy of yourself,
it is the ordinary
that comes to save you—
the china teacup waiting
to be washed, the old dogs
whining to go out.

Linda Pastan – Pilhagem: para uma jovem amiga

Em um dia tempestuoso de transição, de uma estação para a outra,
você falou sobre como foi ajudar sua mãe a fechar sua casa,
sobre as escolhas que teve de fazer — o que descartar,
o que manter — como se fosse sua própria infância
à espera de ser pilhada. Você conservou um tapete persa,
todo em vermelho e dourado, para nele pisar todos os dias,
mantendo vivo o passado sob seus pés;
aquelas bonecas russas com as quais você brincava
quando menina: avó, mãe, filha;
quatro cadeiras Bentwood desgarradas de sua mesa.
Eu ouvia, imaginando que seria a próxima a tentar
amontoar uma vida inteira de coisas
em um minguante universo de caixas.
Já comecei a desmantelar minha vida, jogando
fora cartas de pessoas que lembro ter amado,
escolhendo entre livros — este para ficar,
aquele para ir — como se eu fosse uma juíza
sentenciando alguns à morte, e o restante
ao purgatório da estante que se esvazia.
Talvez eu devesse simplesmente queimar tudo.
Mas não vivemos no que deixamos para trás?
No crepúsculo desbotado da Kodak? Em nossas facas
e colheres de prata oxidando na mesa eventual
de um neto? Eles não se tornaram
uma espécie de museu do além?
Os faraós estavam certos. Eles levaram
consigo todo seu mundo — vasos e baús,
estátuas douradas, joias — pilhados talvez,
mas não por mil anos.
A tumba de Nefertiti nunca foi encontrada.

Trad.: Nelson Santander

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Plunder: To a Young Friend

On a day of windy transition, one season to the next,
you spoke of helping your mother close her house,
of the choices you had to make—what to discard,
what to keep—as if it were your childhood itself
waiting to be plundered. You kept a Persian rug,
all reds and golds, to walk on every day,
keeping the past alive under your feet;
those nested Russian dolls you played with
as a girl: grandmother, mother, daughter;
four bentwood chairs wrenched from their table.
I listened, thinking I’d be next to try
to crowd a lifetime of things
into a shrinking universe of boxes.
I’ve started dismantling my life already, throwing
out letters from people I remember loving,
choosing among books—this one to stay,
that one to go—as if I were a judge
sentencing some to death, the rest
to the purgatory of the emptying shelf.
Perhaps I should simply burn it all.
But don’t we live on in what we’ve left behind?
In the fading twilight of Kodak? In our sterling
knives and spoons tarnishing on a grandchild’s
casual table? Don’t these become
a kind of museum of the afterlife?
The Pharaohs had it right. They took
their whole world with them—vases and chests,
gilded statues, jewels—plundered perhaps,
but not for a thousand years.
Nefertiti’s tomb has never been found.

Linda Pastan – A Turista

Fora de Nápoles,
vimos a entrada
para o submundo,
logo após comermos pizza
naquele lugar especial
e antes
de tomarmos a balsa
para Capri.
Poderíamos riscá-lo de nossa
lista de lugares para ver,
mas não havia nada
a ser visto.
Terra nua de atributos.
Ar incolor.
E ao nos lembrarmos de Odisseu
e sua jornada até aqui,
encontrando o fantasma
de sua mãe, morta há muito tempo,
nos sentimos logrados,
como se alguém
de nossa crescente lista
de amigos perdidos
devesse ter surgido
para nos cumprimentar.

Trad.: Nelson Santander

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The Tourist

We saw the entrance
to the underworld
outside of Naples,
just after eating pizza
at that special place
and before
boarding the ferry
to Capri.
We could tick it off
our list of sights to see,
but there was nothing
to see.
Ground bleached of features.
Colorless air.
And remembering Odysseus
and his journey here,
meeting the ghost
of his long dead mother,
we felt cheated,
as if someone
from our growing list
of lost friends
should have emerged
to greet us.

Linda Pastan – Trégua

Esta é para meu pai cirurgião, finalmente,
a quem tenho profanado poema após poema
por me punir com silêncio, por se importar demais
com o grau exato de amor e respeito
que meu eu adolescente permitia gotejar até ele.
Que, em uma de suas muitas depressões, pintou
naturezas-mortas sem fim (nosso apartamento exalando
a pincéis, terebintina e vegetais podres),
pintando a si mesmo de volta à sanidade.
Meu pai sabia “Evangeline”1 de cor
e pontuava suas cartas para mim com trechos
de poesia, embora nunca notasse a minha.
Ele inventava histórias para dormir que sempre terminavam com
“e então houve uma grande explosão…” mas
não herdei seu dom para enredos. Seus pacientes
o chamavam de carismático (suas piadas de médico, os aviõezinhos
com abaixadores de língua que ele fazia para as crianças)
e meus amigos compareceram ao funeral dele, dizendo
que sempre quiseram ter um pai como o meu.
Quão bem ele escondeu a arqueologia da dor.
Sua extensa família havia desaparecido na Polônia,
embora ele nunca falasse dela, e ele nunca
deixou de sofrer pelo meu irmão natimorto. Ele queria
muito um filho, e eu era apenas uma menina.
Haverá algum lugar no pós-vida onde ele possa ler
o que escrevo sobre ele? Talvez ele reconhecesse enfim
o quanto éramos parecidos em guardar ressentimentos;
em amar e se importar demais; em, de alguma forma,
nos pintarmos, com pincel ou caneta,
de volta ao tipo de trégua frágil com que pudéssemos conviver.

Trad.: Nelson Santander

  1. Evangeline (Evangeline: a Tale of Acadie) é um poema épico escrito por Henry Wadsworth Longfellow, publicado pela primeira vez em 1847. A obra narra a história de uma jovem chamada Evangeline e sua busca por seu amado Gabriel, do qual foi separada durante a deportação dos acadianos do Canadá no século XVIII. É um dos trabalhos mais conhecidos de Longfellow e um importante exemplo da literatura americana do século XIX. ↩︎

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Truce

This is for my surgeon father at last
whom I’ve desecrated in poem after poem
for punishing me with silence, for caring too much
about the exact degree of love and respect
my adolescent self let trickle down to him.
Who in one of his many depressions painted
still life after still life (our apartment rank
with brushes and turpentine and rotting vegetables)
painting himself back to sanity.
My father knew “Evangeline” by heart
and studded his letters to me with scraps
of poetry, though he never took note of mine.
He made up bedtime stories that always ended with
“and then there was an explosion…” but
I didn’t inherit his gift for plot. His patients
called him charismatic (his doctor jokes, the airplanes
he made out of tongue depressors for the children)
and my friends turned up at his funeral, saying
they’d always wanted a father like mine.
How well he hid the archeology of grief.
His extended family had disappeared in Poland,
though he never spoke of them, and he never
stopped grieving for my stillborn brother. He badly
wanted a son, and I was just a girl.
Is there somewhere in the afterlife where he can read
what I write about him? Maybe he’d acknowledge at last
how alike we were in holding grudges;
in loving and caring too much; in somehow
painting ourselves, with brush or pen,
back to the kind of fragile truce we could live with.

Linda Pastan – Depois

Depois do mês
na Sicília,
a orla do oceano se desenrolando
em torno de nossos próprios
joelhos vulcânicos;
depois das ameixas escuras
que pulsavam como corações de contos de fadas
no cesto do lenhador;
da viagem nos braços de outro
onde éramos inocentes
como turistas
visitando paisagens familiares
pela primeira vez,

voltamos
para nossas antigas vidas
como para um monte de roupas
que deixamos no armário,
e, ou elas encolheram,
ou nós engordamos
com o creme espesso
da comodidade.
Mas logo nossos velhos pertences
clamam
como artefatos
que ainda não devem ser enterrados.
Somos reivindicados

por nossas louças, pela necessidade delas
de serem lavadas e secas
e guardadas;
por nosso colchão que, como uma esposa complacente,
se moldou
aos nossos corpos não esquecidos.
E na beira do gramado
nossas mortes nos esperam como animais domésticos.
Elas estiveram lá o tempo todo,
pacientes e amorosas.
Devemos nos apressar
ou poderemos perdê-las
na escuridão crescente.

Trad.: Nelson Santander

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After

After the month
in Sicily,
the ocean’s edge unravelling
around our own
volcanic knees;
after the dark plums
that throbbed like fairy-tale hearts
in the woodsman’s basket;
the voyage in another’s arms
where we were innocent
as tourists
visiting familiar landscapes
for the first time

we come back
to our old lives
as to a heap of clothes
we have left in our closet,
and either they have shrunk
or we have grown fat
on the risen cream
of ease.
But soon our old possessions
cry out
like artifacts
not to be buried yet.
We are claimed

by our dishes, by their need
to be washed and dried
and put away;
by our mattress which like a pliant wife
has shaped itself
to our remembered bodies.
And at the edge of the grass
our deaths wait like domestic animals.
They have been there all along,
patient and loving.
We must hurry
or we may miss them
in the swelling dark.

Linda Pastan – A obrigação de ser feliz

É mais onerosa
que os rituais de beleza
ou os afazeres domésticos, mais difícil que o amor.
Mas você espera isso de mim casualmente,
como espera que o sol
se levante, não apesar da chuva
ou das nuvens, mas por causa delas.

E assim eu sorrio, como se minha própria lealdade
à tristeza fosse um vício oculto —
aquele puxão para baixo em minha boca,
minha antiga suspeita de que saúde
e amor são breves irrelevâncias,
não mais que risadas no calor da noite
estranguladas ao amanhecer.

Felicidade. Tento erguê-la
em meus ombros estreitos novamente —
uma mochila pesada com moedas de ouro.
Tropeço pela casa,  
esbarro nas coisas.
Apenas o próprio Midas
entenderia.

Trad.: Nelson Santander

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The Obligation to Be Happy

It is more onerous
than the rites of beauty
or housework, harder than love.
But you expect it of me casually,
the way you expect the sun
to come up, not in spite of rain
or clouds but because of them.

And so I smile, as if my own fidelity
to sadness were a hidden vice—
that downward tug on my mouth,
my old suspicion that health
and love are brief irrelevancies,
no more than laughter in the warm dark
strangled at dawn.

Happiness. I try to hoist it
on my narrow shoulders again—
a knapsack heavy with gold coins.
I stumble around the house,  
bump into things.
Only Midas himself
would understand.

Linda Pastan – Terminal

Para cada partida
há uma chegada.
É a lei do machado,
cujo cabo foi uma árvore;
é o segredo
que o fogo guarda em si,
a fumaça se dissipando
em seu próprio rastro.
As folhas zarpam novamente —
uma frota inteira de pequenas velas
e ninguém sabe onde atracarão.
Das janelas dos trens, crianças acenam,
os anos pesando
em suas costas.
Mas em algum lugar, está se formando uma nuvem
que aqui florescerá em pétalas
de neve
e a luz de uma estrela
que começou a vir em nossa direção
há um milhão de anos,
chega afinal.

Trad.: Nelson Santander

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Terminal

For every departure
there is an arrival.
It is the law of the axe
whose handle was a tree
it is the secret
the fire caves in upon
whose smoke disappears
along its own trail.
The leaves push off again—
a whole fleet of small sails
and no one knows where they land.
Children wave from train windows
their years growing
heavy on their backs.
But somewhere a cloud is forming
that will flower here in petals
of snow
and light from a star
that started towards us
a million years ago
arrives at last.

Linda Pastan – Autorretrato aos 44

Como se tornaram
amigáveis e pouco exigentes
meus fracassos.
Arrastando cadeiras pela sala,
eles se sentam ao meu lado
como se fossem da família,
e de fato começamos
a nos parecer.
Um deles sempre põe
uma lenha na lareira
e, embora esteja úmida
e encha a sala de fumaça,
fico aquecida por um tempo,
e bêbada de bocejos
às vezes adormeço
sentada.

Trad.: Nelson Santander

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Self Portrait at 44

How friendly
my failures have become,
how undemanding.
Scraping chairs across the room
they sit down next to me
like family almost,
and indeed we have grown
to look alike.
One of them always puts
a log on the fire
and though it’s wet
and fouls the room
I am warm for awhile,
and drunk with yawning
I sometimes fall asleep
sitting up.

Linda Pastan – Partidas

Todas pareceram partir
ao mesmo tempo: tia Grace,
cujos rins declararam falência;
prima Rose, que alimentava
com açúcar o diabetes;
a amiga da vovó,
que adiou tanto sua ida
que pensamos que ela ficaria.

Foi como em um verão, anos atrás,
quando todas embarcaram em trens
e navios, usando chapéus com véus
e luvas apropriadas,
porque todo mundo estava indo
para algum lugar naquele ano,
e elas não queriam
ficar para trás.

Trad.: Nelson Santander

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Departures

They seemed to all take off
at once: Aunt Grace
whose kidneys closed shop;
Cousin Rose who fed sugar
to diabetes;
my grandmother’s friend
who postponed going so long
we thought she’d stay.

It was like the summer years ago
when they all set out on trains
and ships, wearing hats with veils
and the proper gloves,
because everybody was going
someplace that year,
and they didn’t want
to be left behind.

Linda Pastan – O que vemos por último

E se for verdade
que o que vemos por último
na vida
permanece gravado para sempre
em nossas pálpebras fechadas,
uma miniatura oval que se ajusta ao olho
como um daqueles pequenos retratos
emoldurados em folha de ouro
que minha avó mantinha
em sua lareira?

Meu pai, olhando fixamente
para o teto do hospital
enquanto morria,
teria apenas aquele mapa
de gesso trincado
para seguir
para sempre?
E para onde
tais marcos
acidentais poderiam levar?

Quando viajo de avião,
recuso todas as bandejas e revistas.
Contemplo acres
de nuvens sulcadas —
nossa suposição de céu.
Ou, muito abaixo, avisto
um ponto de janela iluminada,
e alguém escondido atrás dela
com flores, talvez, e pão
e velas para meus pés irremissíveis.

Trad.: Nelson Santander

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What we look at last

What if it’s true
that what we look at last
in life
remains engraved forever
on our closed lids,
a miniature oval to fit the eye
like one of those tiny portraits
framed in gold leaf
my grandmother kept
on her mantel?

Did my father staring
at the hospital ceiling
as he died
have only that map
of cracked plaster
to follow
forever,
and where
can such accidental
signposts lead?

When I travel by air
I refuse all trays and magazines.
I gaze at acres
of furrowed cloud—
our guess of heaven.
Or far below I see
a speck of lighted window,
someone hidden behind it
with flowers perhaps and bread
and candles for my unshriven feet.