Até1 e 2 na noite em que meu amigo morreu
depois de uma longa doença —
não vou usar a palavra
batalha,
pois o câncer havia desaparecido,
e depois voltou, como algum assassino de filmes de terror —
até naquela noite, a gata selvagem, aquela
branca e fofa e às vezes afável,
ainda cruzava nossa garagem, silenciosamente,
dos pinheiros do vizinho até nossos rododendros,
até naquela noite, ela procurava algum roedor
ou pássaro para aterrorizar e mutilar
e talvez até matar.
E eu, bebendo e sofrendo em nosso terraço,
fiquei chocado com o mundo e sua bruta recusa
em parar de ser o mundo,
e em seguida envergonhado,
não apenas pela minha própria ingenuidade (embora haja muito disso),
mas por minha inata patologia humana de acreditar
que importamos,
que alguém está nos ouvindo,
que a civilidade não é apenas algo que imaginamos
e não seguimos de fato, de qualquer modo.
Naquela noite,
eu queria que tudo fosse melhor do que é,
então fui até a geladeira, peguei o leite,
despejei em uma tigela pequena, que deixei na varanda,
e encontrei vazia na manhã seguinte.
Trad.: Nelson Santander
N. do T.:
1. O título do poema, “Red in Tooth And Claw”, provavelmente foi inspirado na expressão usada pelo poeta inglês Alfred Lord Tennyson em seu poema “In Memoriam A. H. H.”, de 1850 (“Who trusted God was love indeed / And love Creation’s final law— / Tho’ Nature, red in tooth and claw / With ravine, shriek’d against his creed—” Canto LVI), que questionava a compatibilidade entre o amor cristão e a indiferença da natureza. “Red in Tooth And Claw” é uma referência à natureza violenta e cruel do mundo natural, em que os animais predadores matam e devoram suas presas sem piedade. A tradução literal do título, como “Vermelho no Dente e na Garra”, obviamente não retrata o sentido geral da expressão. Por isso, valendo-me da lei não escrita de Giovanni Pontano – “traduttore, traditore” –, optei por traduzir o título para “Lei da Selva”, uma expressão bem conhecida em língua portuguesa, que se refere à situação em que os mais fortes e violentos dominam os mais fracos e pacíficos, sem respeitar nenhuma regra ou moral, assim como ocorre no mundo natural.
2. O poema “Red in Tooth and Claw” venceu o Rattle Poetry Prize 2019, do conhecido site de poemas Rattle . Sobre ele, comentou o autor naquela publicação: “Depois de ter vários amigos que morreram de câncer, estou cada vez mais desconfortável com a metáfora predominante que usamos para discutir a doença, seja câncer ou alguma outra enfermidade: a de que a experiência é uma espécie de guerra entre o paciente e o diagnóstico. Neste poema, esse desconforto se mistura com o luto e com a angústia existencial para formar algo como uma espécie de crise secular de fé (fé na natureza e fé na humanidade), e ainda não tenho certeza se o gesto no final, aquela tigela de leite, é uma resposta fraca ou convincente a essa crise — talvez ambos…”
Red In Tooth And Claw
Even on the night my friend died
after a long illness—
I won’t use the word
battle,
but the cancer was gone,
and then it came back, like some slasher film killer—
even on that night, the feral cat, the one
that’s white and fluffy and sometimes affectionate,
still crossed our driveway, quietly,
from our neighbor’s pines to our rhododendrons,
even on that night, she would look for some rodent
or bird to terrorize and mangle
and maybe fully kill.
And I, drinking and grieving on our deck,
was appalled by the world and its gross refusal
to stop being the world,
and then embarrassed
not just by my own naivety (though there’s plenty of that)
but by my innate human sickness that believes
we matter,
that someone is listening,
that civility isn’t just something we imagined
and don’t really follow anyway.
That night
I wanted everything to be better than it is,
so I went to the fridge, got out the milk,
poured it into a little bowl, which I left on the porch
and found empty the next morning.
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